quarta-feira, 8 de maio de 2024

O que eram as "drogas do sertão"

É bom começar explicando o que eram as chamadas "drogas do sertão": plantas às quais se atribuíam propriedades medicinais, ou utilidade como corantes, ou em perfumaria, ou ainda como condimento, e que podiam ser encontradas nas matas do Brasil. Em tempos em que a indústria química e farmacêutica, como a conhecemos, ainda estava longe de existir, esses artigos eram considerados muito valiosos, e constituíam-se em um ramo de negócios interessante para uso na própria colônia, bem como para exportação. 
A lista de drogas do sertão é quase infinita. Veremos uns poucos exemplos, para aclarar o assunto. O jesuíta André de Barros, escrevendo no Século XVII, afirmou: 
"nasce por aqueles matos salsaparrilha, a decantada quinaquina, baunilha, que em compridas e sucosas vagens é fruto de todas as aves e bichos apetecido, escapando pouco para os homens. Também se acha abutua, e a casca chamada preciosa. [...] São algumas árvores aromáticas ou balsâmicas, brotando de si preciosos óleos, como o de copaíba em abundância. [...]" (¹).
Também os Diálogos das Grandezas do Brasil (²), escritos no começo do Século XVII, fazem referência às drogas do sertão, especificamente no Diálogo Quarto, em que Brandônio diz:
"[...] também se acham [...] maravilhosas drogas, como são pimentas de muitas sortes e castas, grandes e pequenas, e ainda de outras que são doces no sabor; gengibre (³), o qual produz a terra em abundância [...]; outro fruto que se apanha de uma árvore chamada envira, de que usam muitas pessoas [...], por ser excelente droga, a qual usurpa para si o efeito que faz a pimenta, cravo e canela, com tingir como açafrão [...]" (⁴).
Vem, então, a resposta de Alviano:
"Drogas são essas que fariam grande proveito, quando se pusessem em uso, e se navegassem para as partes estrangeiras [...]" (⁵). 
Quando os Diálogos foram escritos, o comércio com o Oriente já vinha, há tempos, dando mostras de exaustão. A mentalidade colonial, portanto, procurava encontrar no Brasil, substitutos à altura, que despertassem interesse no mercado internacional e que, afinal, resultassem em lucro. As "drogas do sertão" formaram parte desse cenário.

(1) BARROS, André de S. J. Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus. Lisboa: Officina Sylviana, 1746, pp. 82 e 83.
(2) Autoria atribuída, com razoável probabilidade, a Ambrósio Fernandes Brandão.
(3) Originário do Oriente, foi trazido ao Brasil por colonizadores, onde se adaptou muito bem (talvez até bem demais). 
(4) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, pp. 226.
(5) Ibid., p. 227. 


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segunda-feira, 6 de maio de 2024

O que é um bom governo?

Tucídides (²) 
Já houve quem pensasse - e ainda há quem pense - que não deveria haver governo algum. Mas, como a ideia parece inexequível, ou ao menos improvável, fazendo com que governos sejam inevitáveis, lanço aqui a questão: o que é, afinal, um bom governo?
Entre os gregos da Antiguidade esse assunto já era debatido, e Tucídides, em sua História da Guerra do Peloponeso, Livro VI, mencionou que em um discurso, o ateniense Nísias teria declarado que, em uma cidade-Estado (¹), um bom governante seria aquele que trabalhasse pelo que fosse benéfico a seus concidadãos; não sendo isso possível, que, ao menos, nada fizesse intencionalmente que fosse contrário aos interesses da cidade. Convenhamos: já era um passo importante.
No Século XIX, o francês Arsène Isabelle, que viajou pela América do Sul, escreveu: "Parece-me que o governo que mais respeitar o direito natural, o direito público e o direito das gentes, deve ser o melhor de todos" (³).
Agora, é com vocês, que leem este blog: que opinião têm sobre a existência de governos e como devem (ou deveriam) ser?

(1) A Grécia do tempo de Tucídides era formada por cidades-Estado, cada uma com seu próprio governo e forças militares também próprias.
(2) Cf. HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 17. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(3) ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2006, p. 23.


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sexta-feira, 3 de maio de 2024

Fazendeiros que não moravam em fazendas

Período Regencial. Nada, ainda, de ferrovias - o transporte de mercadorias era feito por tropas de muares. Eram os pobres animais que tinham de conduzir, serra abaixo, até o porto de Santos, grande parte do que se produzia na Província de São Paulo e que se destinava à comercialização em outras Províncias ou no Exterior.
O fazendeiro, porém, rico senhor de terras, não morava em sua fazenda. Era, como se costuma dizer, absenteísta, para desgosto dos jovens estudantes que se assustam com o vocábulo. Não há motivo: designa, apenas, alguém que está ausente. Os fazendeiros, muitas, vezes, estavam mesmo, mas com um bom motivo. 
Embora o termo seja empregado frequentemente para fazendeiros do período áureo da exportação do café na segunda metade do Século XIX, não foi com eles que teve início o costume de residir na capital da Província, e não na fazenda. Nos dias do Período Regencial já era assim, conforme se pode ler nesta observação feita por Daniel P. Kidder (¹):
"Os subúrbios e os arredores de São Paulo são muito interessantes e neles encontram-se numerosas residências elegantes, cercadas de jardins. A cidade é o centro de convergência de toda a Província. Muitos dentre os fazendeiros mais abastados têm casas na cidade e só permanecem algum tempo na fazenda, pois, de São Paulo, podem melhor orientar a venda de suas safras, à medida que passam serra abaixo em demanda do mercado." (²) 
Portanto, o foco das atividades dos grandes fazendeiros estava na comercialização vantajosa, ficando para outros o cuidado com a produção. Era um modo de pensar a atividade agrícola, e tudo o que a ela se relacionava, muito diferente do que se verificara nos séculos precedentes. E, se já era assim nos dias da Regência, muito mais o seria quando a produção cafeeira de São Paulo crescesse e ganhasse o mundo, durante o Segundo Reinado. 

(1) Pastor e missionário metodista americano, Daniel P. Kidder esteve no Brasil entre 1837 e 1840. 
(2) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil, trad. Moacir N. Vasconcelos. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 198.


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quarta-feira, 1 de maio de 2024

Conservação do feijão e do milho em fazendas no Século XIX

Produzir alimentos é essencial; conservá-los, adequadamente, para que possam ser consumidos até que nova safra esteja disponível, é tão importante quanto a produção.
Em meados do Século XIX, era este o procedimento adotado em fazendas do Brasil, particularmente no Sudeste, para a conservação do feijão que fora colhido, segundo relato de Augustinho Rodrigues Cunha, em Arte da Cultura e Preparação do Café:
"[...] Em muitas fazendas costumam expor o feijão, principal alimento, ao sol todos os oito ou quinze dias, conforme o tempo tem sido mais ou menos úmido; em outras costumam misturar com cinza. [...]" (¹)
Mais ainda:
"Eu pude observar que o feijão guardado em sacos expostos à luz diáfana se conserva perfeitamente bem, e sabe-se que guardado em barricas se deteriora em muito pouco tempo, a ponto de não servir. [...]" (²)
Quanto ao milho, o mesmo autor observou:
"[...] O milho se conserva melhor quando é esbulhado e batido, do que guardado em espiga. [...]" (³)
Havia, pois, muito trabalho a fazer. Era preciso, também, todo o cuidado para que os grãos fossem estocados longe do alcance de ratos e outros animais que pudessem danificar a safra. 
No sudeste brasileiro, feijão e milho não eram importantes apenas para alimentação de famílias senhoriais ou para venda à população de áreas urbanas próximas. Eram, com alguns acréscimos, a alimentação habitual dos escravos. Milho, inclusive, era cultivado para alimentar os animais. A conservação de modo apropriado, sob contínua vigilância, era o preço que se pagava para que alimentos não viessem a faltar.

*****

Segundo uma técnica antiga muito empregada no Brasil, milho e feijão eram cultivados simultaneamente, em roças com carreiras alternadas. Isto se faz ainda hoje, em áreas de agricultura de subsistência. A foto abaixo mostra o cultivo simultâneo de milho e feijão em 1911 (⁴). 



(1) CUNHA, Augustinho Rodrigues. Arte da Cultura e Preparação do Café. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1844, p. 103.
(2) Ibid., p. 105.
(3) Ibid.
(4) OAKENFULL, J. C. Brazil in 1911. 3ª ed. London: Butler & Tanner, 1912. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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segunda-feira, 29 de abril de 2024

Como geógrafos da Antiguidade mediam grandes distâncias

"et civitas in quadro posita est et longitudo eius tanta est quanta et latitudo et mensus est civitatem de harundine per stadia duodecim milia longitudo et latitudo et altitudo eius aequalia sumt"
Apocalypsis Iohannis XXI, 16

A unidade de medida usual na Antiguidade, quando se tratava de grandes distâncias, era o estádio. Estrabão (¹) afirmou: "quando queremos viajar através de um território ou quando desejamos saber a extensão de uma estrada, procuramos descobrir o número de estádios que tem" (²).
Parece, pois, que havia um padrão de medida, e todas as distâncias por ele aferidas eram confiáveis. Mas não era assim. É que um estádio não significava a mesma coisa para todo mundo. Vejamos três exemplos:
  • Eratóstenes, aquele grande cientista da Antiguidade que calculou com precisão incrível para a época qual era a circunferência da Terra, teria usado um estádio equivalente a 157,5 metros;
  • O estádio usado pelos gregos equivalia a 176 metros, que era o comprimento da pista de competições em Olímpia (³);
  • Entre os romanos geralmente se usava um estádio equivalente a 185 metros - sim, geralmente, porque o estádio, por sua vez, era medido a partir de outra unidade menor, o pé.
Se tudo isso parece confuso, considerem, meus leitores, que o Sistema Internacional de unidades, adotado a partir da década de sessenta do século passado, nem por isso é, hoje, seguido em todo o mundo. A prevalência de medidas cujo uso é corriqueiro, mas que não fazem parte do SI, em países que simplesmente decidiram não adotá-lo, ainda impõe a obrigação de, uma vez ou outra, fazermos a conversão de medidas, manualmente ou com algum recurso eletrônico. Esse último, como se sabe, facilitou nossa vida, mas não estava disponível para os antigos gregos e romanos, que precisavam quebrar a cabeça quando, ao viajar, faziam a fatídica pergunta: qual a distância até lá?

(1) c. 63 a.C. - 24 d.C.
(2) ESTRABÃO. Geografia, Livro II. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Vê-se, portanto, como foi que "estádio" passou a significar, também, um local de competições esportivas.


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sexta-feira, 26 de abril de 2024

Rituais funerários em Atenas

Sólon determinou moderação nas lamentações pelos atenienses mortos


Atenienses contemporâneos de Sólon (¹) enterravam os mortos com a cabeça voltada para o Ocidente, ao contrário de outros gregos (²). Não era só: em Atenas era costume sepultar uma só pessoa em cada túmulo, enquanto outros gregos (³) não viam problema em enterrar três ou quatro pessoas na mesma sepultura. Talvez não houvesse muita lembrança desses detalhes, não fosse o fato de Plutarco tê-los mencionado em Vitae parallelae, ao escrever a biografia de Sólon, legislador ateniense, que conduziu os interesses de sua cidade na disputa contra os megarenses pela ilha de Salamina. 
Consta, também em Vitae parallelae, que com a ajuda de Epimênides de Creta, reputado um dos grandes sábios da época, Sólon teria introduzido algumas mudanças nos rituais funerários praticados em Atenas:
"Ordenou-se que nas homenagens prestadas aos mortos houvesse mais moderação, em lugar das lamentações exageradas que até então se faziam, como se muito choro pudesse, de algum modo, ser útil aos que haviam morrido." (⁴)
Isso não significa, contudo, que em qualquer caso os que morriam fossem sempre e necessariamente deixados em paz. Por ocasião de uma rebelião popular enfrentada por Sólon e outros líderes atenienses, os revoltosos foram condenados, em julgamento público, ao exílio - estavam obrigados a ir viver fora da Ática. Quanto aos rebeldes que haviam morrido na sedição, aplicou-se a mesma sentença: "Em julgamento público decidiu-se que, quanto aos rebeldes já sepultados, seus ossos fossem desenterrados e levados para fora dos limites da Ática" (⁵), a região da Grécia onde se encontrava Atenas. Vingança perversa? Não, apenas uma evidência de que, para um ateniense, a pior punição seria a imposição de estar longe de sua cidade, quer na vida, quer na morte. 
 
(1) Sólon morreu em c. 560 a.C.
(2) Os habitantes de Mégara, por exemplo, sepultavam os mortos com a cabeça direcionada ao Oriente, segundo Plutarco.
(3) Novamente, era o que acontecia em Mégara. 
(4) PLUTARCO, Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) Ibid. 


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quarta-feira, 24 de abril de 2024

Um escravo que restaurava livros

Havia falta de mão de obra qualificada no Brasil Colonial. Uma explicação para isso é que fidalgos (¹) estavam proibidos, pelas leis da época, de trabalhar nos chamados "ofícios mecânicos" (²), sob pena da perda da posição social que tanto valorizavam. Se eram abastados, colonizadores compravam escravos para o trabalho, mas, se não eram, viviam na maior penúria, ainda se achando nobres. 
Contudo, era justamente na escravidão que estava a origem da escassez de mão de obra qualificada, porque pessoas livres entendiam o trabalho como uma desonra, coisa deixada apenas para cativos, e, por isso, quase todos fugiam dele. Na tentativa de resolver o problema, dentro da lógica daquele tempo, havia proprietários de escravos que tratavam de ensinar ofícios aos cativos, e seu trabalho era, então, realizado tanto na propriedade do respectivo senhor, ou prestando serviço a outros. A remuneração, neste caso, era do proprietário, não do escravo (³).
Ora, ao lado desse cenário já pouco lisonjeiro, havia também uma carência acentuada de profissionais, mesmo em áreas não estigmatizadas socialmente, pelo simples fato de que algumas profissões exigiam uma qualificação difícil de ser obtida no Brasil. É curioso como, também nesses casos, a solução podia vir - era a lógica da época - mediante o treinamento de um ou mais escravos, sob a supervisão de pessoa habilitada. Foi o que aconteceu no Século XVIII no Mosteiro de São Bento no Rio de Janeiro, quando era abade ninguém menos que frei Gaspar da Madre de Deus, famoso por seus escritos relacionados à história do Brasil. 
Vamos explicar a situação: o ilustre abade, no exercício do cargo, queria melhorar a biblioteca do mosteiro, cujos livros, já muito gastos, precisavam, com urgência, da mão de um restaurador. Lê-se nos Anais do Rio de Janeiro, de Balthazar da Silva Lisboa:
"O seu amor pela ciência o obrigou a recolher um livreiro na casa da livraria (⁴) com avultado salário, para compor os livros danificados dos insetos, fazendo ensinar este ofício a um escravo [...]." (⁵)
Daí por diante esperava-se que o escravo fizesse a manutenção dos livros. Escravos, aliás, faziam a maior parte do trabalho dentro de quase todas as instituições religiosas e em suas diversas propriedades (⁶). Um procedimento análogo foi adotado algum tempo depois, quando frei Francisco de São José era abade no mesmo Mosteiro de São Bento e decidiu estabelecer uma enfermaria para os escravos:
"[...] Construiu uma boa e regular casa para enfermaria dos escravos, provendo-a de todo o necessário, além de colchões, lençóis, etc. Fez instruir em medicina um escravo da fazenda dos Campos, a quem deu livros e instrumentos de cirurgia, preparando a sua instrução o cirurgião do partido (⁷), para acudir na falta dos professores aos doentes." (⁸)
Ora, se recebeu livros, o escravo devia, pelo menos, saber ler, o que já era uma grande novidade naqueles dias.  

(1) Quase todos os colonizadores se achavam pertencentes à nobreza, embora muitos estivessem bem longe disso.
(2) Eram chamadas "ofícios mecânicos" as profissões que envolviam trabalho manual. São exemplos as de sapateiro, tecelão, pedreiro, carpinteiro e muitas outras. 
(3) Essa prática persistiu não só no Brasil Colonial, como foi muito comum inclusive durante o Império. Havia gente que vivia exclusivamente dos ganhos provenientes do aluguel de escravos treinados em algum ofício.
(4) Por livraria, entenda-se biblioteca.
(5) LISBOA, Balthazar da Silva. Anais do Rio de Janeiro, tomo VI. Rio de Janeiro: Seignot-Plancher, 1835, p. 354.
(6) A existência de cativos para o trabalho nos mosteiros, conventos e outros locais pertencentes às várias Ordens religiosas foi uma constante, não só durante os tempos coloniais, como mais tarde, em parte do Império. 
(7) "Partido", aqui, refere-se a uma grande área de cultivo.
(8) LISBOA, Balthazar da Silva. Op. cit., p. 362.


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