sexta-feira, 3 de maio de 2024

Fazendeiros que não moravam em fazendas

Período Regencial. Nada, ainda, de ferrovias - o transporte de mercadorias era feito por tropas de muares. Eram os pobres animais que tinham de conduzir, serra abaixo, até o porto de Santos, grande parte do que se produzia na Província de São Paulo e que se destinava à comercialização em outras Províncias ou no Exterior.
O fazendeiro, porém, rico senhor de terras, não morava em sua fazenda. Era, como se costuma dizer, absenteísta, para desgosto dos jovens estudantes que se assustam com o vocábulo. Não há motivo: designa, apenas, alguém que está ausente. Os fazendeiros, muitas, vezes, estavam mesmo, mas com um bom motivo. 
Embora o termo seja empregado frequentemente para fazendeiros do período áureo da exportação do café na segunda metade do Século XIX, não foi com eles que teve início o costume de residir na capital da Província, e não na fazenda. Nos dias do Período Regencial já era assim, conforme se pode ler nesta observação feita por Daniel P. Kidder (¹):
"Os subúrbios e os arredores de São Paulo são muito interessantes e neles encontram-se numerosas residências elegantes, cercadas de jardins. A cidade é o centro de convergência de toda a Província. Muitos dentre os fazendeiros mais abastados têm casas na cidade e só permanecem algum tempo na fazenda, pois, de São Paulo, podem melhor orientar a venda de suas safras, à medida que passam serra abaixo em demanda do mercado." (²) 
Portanto, o foco das atividades dos grandes fazendeiros estava na comercialização vantajosa, ficando para outros o cuidado com a produção. Era um modo de pensar a atividade agrícola, e tudo o que a ela se relacionava, muito diferente do que se verificara nos séculos precedentes. E, se já era assim nos dias da Regência, muito mais o seria quando a produção cafeeira de São Paulo crescesse e ganhasse o mundo, durante o Segundo Reinado. 

(1) Pastor e missionário metodista americano, Daniel P. Kidder esteve no Brasil entre 1837 e 1840. 
(2) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil, trad. Moacir N. Vasconcelos. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 198.


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quarta-feira, 1 de maio de 2024

Conservação do feijão e do milho em fazendas no Século XIX

Produzir alimentos é essencial; conservá-los, adequadamente, para que possam ser consumidos até que nova safra esteja disponível, é tão importante quanto a produção.
Em meados do Século XIX, era este o procedimento adotado em fazendas do Brasil, particularmente no Sudeste, para a conservação do feijão que fora colhido, segundo relato de Augustinho Rodrigues Cunha, em Arte da Cultura e Preparação do Café:
"[...] Em muitas fazendas costumam expor o feijão, principal alimento, ao sol todos os oito ou quinze dias, conforme o tempo tem sido mais ou menos úmido; em outras costumam misturar com cinza. [...]" (¹)
Mais ainda:
"Eu pude observar que o feijão guardado em sacos expostos à luz diáfana se conserva perfeitamente bem, e sabe-se que guardado em barricas se deteriora em muito pouco tempo, a ponto de não servir. [...]" (²)
Quanto ao milho, o mesmo autor observou:
"[...] O milho se conserva melhor quando é esbulhado e batido, do que guardado em espiga. [...]" (³)
Havia, pois, muito trabalho a fazer. Era preciso, também, todo o cuidado para que os grãos fossem estocados longe do alcance de ratos e outros animais que pudessem danificar a safra. 
No sudeste brasileiro, feijão e milho não eram importantes apenas para alimentação de famílias senhoriais ou para venda à população de áreas urbanas próximas. Eram, com alguns acréscimos, a alimentação habitual dos escravos. Milho, inclusive, era cultivado para alimentar os animais. A conservação de modo apropriado, sob contínua vigilância, era o preço que se pagava para que alimentos não viessem a faltar.

*****

Segundo uma técnica antiga muito empregada no Brasil, milho e feijão eram cultivados simultaneamente, em roças com carreiras alternadas. Isto se faz ainda hoje, em áreas de agricultura de subsistência. A foto abaixo mostra o cultivo simultâneo de milho e feijão em 1911 (⁴). 



(1) CUNHA, Augustinho Rodrigues. Arte da Cultura e Preparação do Café. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1844, p. 103.
(2) Ibid., p. 105.
(3) Ibid.
(4) OAKENFULL, J. C. Brazil in 1911. 3ª ed. London: Butler & Tanner, 1912. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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segunda-feira, 29 de abril de 2024

Como geógrafos da Antiguidade mediam grandes distâncias

"et civitas in quadro posita est et longitudo eius tanta est quanta et latitudo et mensus est civitatem de harundine per stadia duodecim milia longitudo et latitudo et altitudo eius aequalia sumt"
Apocalypsis Iohannis XXI, 16

A unidade de medida usual na Antiguidade, quando se tratava de grandes distâncias, era o estádio. Estrabão (¹) afirmou: "quando queremos viajar através de um território ou quando desejamos saber a extensão de uma estrada, procuramos descobrir o número de estádios que tem" (²).
Parece, pois, que havia um padrão de medida, e todas as distâncias por ele aferidas eram confiáveis. Mas não era assim. É que um estádio não significava a mesma coisa para todo mundo. Vejamos três exemplos:
  • Eratóstenes, aquele grande cientista da Antiguidade que calculou com precisão incrível para a época qual era a circunferência da Terra, teria usado um estádio equivalente a 157,5 metros;
  • O estádio usado pelos gregos equivalia a 176 metros, que era o comprimento da pista de competições em Olímpia (³);
  • Entre os romanos geralmente se usava um estádio equivalente a 185 metros - sim, geralmente, porque o estádio, por sua vez, era medido a partir de outra unidade menor, o pé.
Se tudo isso parece confuso, considerem, meus leitores, que o Sistema Internacional de unidades, adotado a partir da década de sessenta do século passado, nem por isso é, hoje, seguido em todo o mundo. A prevalência de medidas cujo uso é corriqueiro, mas que não fazem parte do SI, em países que simplesmente decidiram não adotá-lo, ainda impõe a obrigação de, uma vez ou outra, fazermos a conversão de medidas, manualmente ou com algum recurso eletrônico. Esse último, como se sabe, facilitou nossa vida, mas não estava disponível para os antigos gregos e romanos, que precisavam quebrar a cabeça quando, ao viajar, faziam a fatídica pergunta: qual a distância até lá?

(1) c. 63 a.C. - 24 d.C.
(2) ESTRABÃO. Geografia, Livro II. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Vê-se, portanto, como foi que "estádio" passou a significar, também, um local de competições esportivas.


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sexta-feira, 26 de abril de 2024

Rituais funerários em Atenas

Sólon determinou moderação nas lamentações pelos atenienses mortos


Atenienses contemporâneos de Sólon (¹) enterravam os mortos com a cabeça voltada para o Ocidente, ao contrário de outros gregos (²). Não era só: em Atenas era costume sepultar uma só pessoa em cada túmulo, enquanto outros gregos (³) não viam problema em enterrar três ou quatro pessoas na mesma sepultura. Talvez não houvesse muita lembrança desses detalhes, não fosse o fato de Plutarco tê-los mencionado em Vitae parallelae, ao escrever a biografia de Sólon, legislador ateniense, que conduziu os interesses de sua cidade na disputa contra os megarenses pela ilha de Salamina. 
Consta, também em Vitae parallelae, que com a ajuda de Epimênides de Creta, reputado um dos grandes sábios da época, Sólon teria introduzido algumas mudanças nos rituais funerários praticados em Atenas:
"Ordenou-se que nas homenagens prestadas aos mortos houvesse mais moderação, em lugar das lamentações exageradas que até então se faziam, como se muito choro pudesse, de algum modo, ser útil aos que haviam morrido." (⁴)
Isso não significa, contudo, que em qualquer caso os que morriam fossem sempre e necessariamente deixados em paz. Por ocasião de uma rebelião popular enfrentada por Sólon e outros líderes atenienses, os revoltosos foram condenados, em julgamento público, ao exílio - estavam obrigados a ir viver fora da Ática. Quanto aos rebeldes que haviam morrido na sedição, aplicou-se a mesma sentença: "Em julgamento público decidiu-se que, quanto aos rebeldes já sepultados, seus ossos fossem desenterrados e levados para fora dos limites da Ática" (⁵), a região da Grécia onde se encontrava Atenas. Vingança perversa? Não, apenas uma evidência de que, para um ateniense, a pior punição seria a imposição de estar longe de sua cidade, quer na vida, quer na morte. 
 
(1) Sólon morreu em c. 560 a.C.
(2) Os habitantes de Mégara, por exemplo, sepultavam os mortos com a cabeça direcionada ao Oriente, segundo Plutarco.
(3) Novamente, era o que acontecia em Mégara. 
(4) PLUTARCO, Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) Ibid. 


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quarta-feira, 24 de abril de 2024

Um escravo que restaurava livros

Havia falta de mão de obra qualificada no Brasil Colonial. Uma explicação para isso é que fidalgos (¹) estavam proibidos, pelas leis da época, de trabalhar nos chamados "ofícios mecânicos" (²), sob pena da perda da posição social que tanto valorizavam. Se eram abastados, colonizadores compravam escravos para o trabalho, mas, se não eram, viviam na maior penúria, ainda se achando nobres. 
Contudo, era justamente na escravidão que estava a origem da escassez de mão de obra qualificada, porque pessoas livres entendiam o trabalho como uma desonra, coisa deixada apenas para cativos, e, por isso, quase todos fugiam dele. Na tentativa de resolver o problema, dentro da lógica daquele tempo, havia proprietários de escravos que tratavam de ensinar ofícios aos cativos, e seu trabalho era, então, realizado tanto na propriedade do respectivo senhor, ou prestando serviço a outros. A remuneração, neste caso, era do proprietário, não do escravo (³).
Ora, ao lado desse cenário já pouco lisonjeiro, havia também uma carência acentuada de profissionais, mesmo em áreas não estigmatizadas socialmente, pelo simples fato de que algumas profissões exigiam uma qualificação difícil de ser obtida no Brasil. É curioso como, também nesses casos, a solução podia vir - era a lógica da época - mediante o treinamento de um ou mais escravos, sob a supervisão de pessoa habilitada. Foi o que aconteceu no Século XVIII no Mosteiro de São Bento no Rio de Janeiro, quando era abade ninguém menos que frei Gaspar da Madre de Deus, famoso por seus escritos relacionados à história do Brasil. 
Vamos explicar a situação: o ilustre abade, no exercício do cargo, queria melhorar a biblioteca do mosteiro, cujos livros, já muito gastos, precisavam, com urgência, da mão de um restaurador. Lê-se nos Anais do Rio de Janeiro, de Balthazar da Silva Lisboa:
"O seu amor pela ciência o obrigou a recolher um livreiro na casa da livraria (⁴) com avultado salário, para compor os livros danificados dos insetos, fazendo ensinar este ofício a um escravo [...]." (⁵)
Daí por diante esperava-se que o escravo fizesse a manutenção dos livros. Escravos, aliás, faziam a maior parte do trabalho dentro de quase todas as instituições religiosas e em suas diversas propriedades (⁶). Um procedimento análogo foi adotado algum tempo depois, quando frei Francisco de São José era abade no mesmo Mosteiro de São Bento e decidiu estabelecer uma enfermaria para os escravos:
"[...] Construiu uma boa e regular casa para enfermaria dos escravos, provendo-a de todo o necessário, além de colchões, lençóis, etc. Fez instruir em medicina um escravo da fazenda dos Campos, a quem deu livros e instrumentos de cirurgia, preparando a sua instrução o cirurgião do partido (⁷), para acudir na falta dos professores aos doentes." (⁸)
Ora, se recebeu livros, o escravo devia, pelo menos, saber ler, o que já era uma grande novidade naqueles dias.  

(1) Quase todos os colonizadores se achavam pertencentes à nobreza, embora muitos estivessem bem longe disso.
(2) Eram chamadas "ofícios mecânicos" as profissões que envolviam trabalho manual. São exemplos as de sapateiro, tecelão, pedreiro, carpinteiro e muitas outras. 
(3) Essa prática persistiu não só no Brasil Colonial, como foi muito comum inclusive durante o Império. Havia gente que vivia exclusivamente dos ganhos provenientes do aluguel de escravos treinados em algum ofício.
(4) Por livraria, entenda-se biblioteca.
(5) LISBOA, Balthazar da Silva. Anais do Rio de Janeiro, tomo VI. Rio de Janeiro: Seignot-Plancher, 1835, p. 354.
(6) A existência de cativos para o trabalho nos mosteiros, conventos e outros locais pertencentes às várias Ordens religiosas foi uma constante, não só durante os tempos coloniais, como mais tarde, em parte do Império. 
(7) "Partido", aqui, refere-se a uma grande área de cultivo.
(8) LISBOA, Balthazar da Silva. Op. cit., p. 362.


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segunda-feira, 22 de abril de 2024

Carretas ou carros de bois?

"Enfim o chiado dos carros, que se avizinhavam carregados de cana para o engenho, acabava de azoinar todos os ouvidos com aquele zunido agudo, incessante, desesperador, que nos martiriza e quase arromba os tímpanos, som de uma intensidade e aspereza tal, que não há no dicionário palavra assaz expressiva para significá-lo."
Bernardo Guimarães, Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais

Carro de bois (¹)

Os carros de bois foram imensamente populares no Brasil, até que novidades como as ferrovias e rodovias pavimentadas e veículos motorizados tornassem seu uso obsoleto. Apesar disso, há muita gente que ainda tem saudade deles, e nas festas folclóricas regionais não são incomuns os desfiles de carros de bois, a pretexto de manter a tradição.
Uma publicação datada exatamente de 1800, porém, questionava a conveniência dos carros de bois no Brasil, entendendo que carretas seriam melhores que eles:
"Ainda não lembrou a ninguém na Capitania do Rio de Janeiro o fazer uso da carreta, em lugar do carro, tendo a vantagem tão visível. As rodas do carro têm o trilho de uma a duas polegadas, com cinco a seis palmos de altura; o trilho das da carreta é de quatro a cinco polegadas, com nove a dez palmos de altura. Ora, num país de caminhos não calçados, pantanosos, é infinitamente melhor a carreta, cujas dão tanta folga aos animais, além de não se enterrarem tanto, e facilitarem o virar de um para outro lado, sem forcejar no cabeçalho; custando menos na sua construção por haver maior quantidade de madeiras que lhe sirvam, não precisar tanto ferro, e mesmo se pode fazer sem ele; e onde dois bois puxam mais sem tanta fadiga, que os seis do carro. [...]." (²)
A ideia de José Caetano Gomes, autor da Memória Sobre a Cultura e Produtos da Cana-de-Açúcar, era sugerir melhorias na produção açucareira no Brasil, com todos os elementos que envolvia - incluindo o transporte, em que entrava a questão da conveniência das carretas em lugar dos carros. Apesar disso, os carros de bois continuaram, por muito tempo, a ser largamente preferidos. Resistência às mudanças não é uma novidade, portanto. De qualquer modo, como ninguém havia ainda inventado algum meio de transporte que dispensasse os animais, com uma ou outra coisa não haveria vantagem para os bois, que teriam de continuar a fazer o trabalho pesado.

(1) CHAMBERLAIN, Tenente. Vistas e Costumes da Cidade e Arredores do Rio de Janeiro em 1819 - 1820. Rio de Janeiro / São Paulo: Livraria Kosmos Editora, 1943, p. 125.  A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) GOMES, José Caetano. Memória Sobre a Cultura e Produtos da Cana-de-Açúcar. Lisboa: Casa Literária do Arco do Cego, 1800, pp. 85 e 86. 


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sexta-feira, 19 de abril de 2024

Dia em que os antigos romanos não sacrificavam animais

A fundação lendária de Roma, aquela que teria sido obra dos gêmeos Rômulo e Remo no ano 753 a.C., era celebrada no dia 21 de abril, que no calendário romano se chamava o dia onze antes das calendas de maio. A mesma data, dita de modo diferente.
Nesse dia, ao fazer cerimônias nos templos, o povo romano tinha o cuidado de não matar animais porque, no dizer de Plutarco, "estavam certos de que naquele dia, por ser consagrado ao nascimento de Roma, não seria correto derramar sangue, e, por isso os sacrifícios deviam ser feitos com toda a pureza, sem a morte de qualquer criatura" (*).
Para a maioria dos povos da Antiguidade, sacrifícios de animais eram destinados a agradar aos deuses, ou para acalmá-los, quando se supunha que estavam furiosos. No caso dos romanos, assim como no de alguns outros povos, sacrifícios também eram ocasião para que sacerdotes examinassem as vísceras dos animais, a fim de descobrir supostas profecias. Não parece estranho que justamente Roma, que tanto valorizava as virtudes bélicas, e para quem derramar sangue de inimigos derrotados nunca foi um problema, decidisse não abater animais em sacrifício justamente no dia em que a fundação da cidade era celebrada?
É possível que, quanto a isso, houvesse ainda alguma influência remota das ideias do pacífico e religioso segundo rei lendário de Roma, Numa Pompílio, que teria instituído práticas de honra aos deuses que servissem para moderar a fúria dos primitivos romanos. Com o passar do tempo, os costumes mudaram, mas as tradições de aniversário de Roma devem ter permanecido, embora já não refletissem quem, de fato, os romanos se tornaram.

(*) PLUTARCO, Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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