quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Jornal das Senhoras - Publicação de mulheres para mulheres em um Brasil quase analfabeto

Em primeiro de janeiro de 1852 circulou o primeiro número do Jornal das Senhoras, cujas linhas iniciais diziam:
"Redigir um jornal é para muitos literatos o apogeu da suprema felicidade, já sou Redator, esta frasezinha dita com seus botões faz crescer dois palmos a qualquer indivíduo.
No círculo ilustrado o Redator é sempre recebido com certo prestígio do homem que em letra de imprensa pode dizer muita coisa, propícia ou fatal a alguém.
Noutra roda de gente que considera o progresso do gênero humano como uma heresia, e os literatos como uma casta de vadios, porque entendem que se possa cavar com uma enxada, porém o trabalho intelectual é para essa gente uma alocução em grego; e portanto o Redator é... é um vadio mesmo, um ente inútil.
Ora pois, uma Senhora à testa da redação de um jornal! que bicho de sete cabeças será?" (¹)
Seria, sim, porque no Brasil do século XIX ler era coisa para poucos; escrever, já nem se fala. Isso para os homens, a quem, pensava-se, até por interesse econômico, havia uma certa obrigação de desasnar. (²) Que dizer das mulheres?
Os dados são de arrepiar os cabelos. Veja, leitor, por si mesmo, os índices de analfabetismo na segunda metade do século XIX e início do século XX. Começamos com a população masculina:

ANO DE 1872
População masculina alfabetizada..................................1.013.055
População masculina analfabeta.....................................4.110.814 (80,2%)

ANO DE 1890
População masculina alfabetizada..................................1.385.854
População masculina analfabeta.....................................5.852.078 (80,9%)

ANO DE 1900
População masculina alfabetizada..................................2.726.621
População masculina analfabeta....................................6.132.905 (68,9%)

ANO DE 1920
População masculina alfabetizada.................................4.430.088
População masculina analfabeta...................................10.973.750 (71,1%)

Agora os dados relativos à população feminina:

ANO DE 1872
População feminina alfabetizada...................................551.426
População feminina analfabeta.....................................4.255.183 (88,5%)

ANO DE 1890
População feminina alfabetizada..................................734.705
População feminina analfabeta....................................6.361.278 (89,6%)

ANO DE 1900
População feminina alfabetizada.................................1.701.060
População feminina analfabeta....................................6.836.848 (80,1%)

ANO DE 1920
População feminina alfabetizada.................................3.023.289
População feminina analfabeta...................................12.168.498 (80,1%) (³)

Uma rápida consideração desses números nos mostra que o analfabetismo era absurdamente alto no Brasil da virada do século, independente do sexo. Não podemos deixar de considerar que os recenseamentos da época eram bastante precários, nem podemos omitir o fato de que a imigração intensa contribuía para fazer flutuar os índices de alfabetização. Ainda assim, se comparados aos índices de países vizinhos (Argentina e Uruguai, por exemplo), nas mesmas ocasiões, os do Brasil são absolutamente escandalosos. E, a despeito disso, é incrível como o progresso na escolarização era lento. Por quê?
Há que se ter em conta uma vasta gama de fatores, dentre os quais podemos considerar pelo menos dois: a maioria da população era rural, e não havia quase escolas "na roça", além do fato de que preconceitos de gênero impediam que meninas frequentassem as escolas existentes, muitas delas, aliás, só aceitando mesmo a matrícula de meninos. A chamada "coeducação dos sexos" era coisa restrita a umas poucas escolas estrangeiras que se haviam estabelecido no país. Conheço uma senhora, já quase centenária, que até hoje chora por não ter podido estudar. Os meninos da roça iam de charrete para a cidade próxima, onde havia uma escola, mas ela, uma menina, foi proibida pelos pais de ir, porque se considerava uma indecência que andasse em companhia dos guris.
Diante disso, leitor (e retomando o assunto do início da postagem), era mesmo uma loucura que alguém, em 1852, tivesse a ousadia de lançar uma revista para o público feminino (havia tão poucas leitoras possíveis!), principalmente tendo uma mulher como redatora. O Jornal das Senhoras circulou entre 1852 e 1855. Nada mal, se considerarmos que muitas publicações destinadas ao público masculino tinham vida muito mais breve. E, para sua diversão, vai aqui um pequeno trecho publicado há exatos 155 anos, no dia 2 de dezembro de 1855, tendo como título "Importância do Número 4"
"Certo dia, o quarto da semana, segundo conta o Corsaire, discutia-se em casa do Sr. Quatromães de Quiney sobre a importância dos números: uns davam a palma ao nº 3, outros ao nº 7. Enfim o Sr. Quatro-barbas levantou a voz e pleiteou a causa do nº 4. E na verdade não temos nós os 4 Evangelistas, os 4 pontos cardeais, os 4 filhos de Aymon, os 4 membros, as 4 idades da vida, as 4 partes invariáveis do discurso, as 4 estações, os 4 naipes no baralho de cartas e os 4 mosqueteiros de Alexandre Dumas? Além disso, não se acha provado que César morreu 44 anos antes da vinda de Cristo, que também morreu no 4º ano da ducentésima olimpíada?
Ia esquecendo os 4 elementos, com que os físicos modernos não se têm querido contentar, depois as 4 partes do mundo, a que os nossos geógrafos anexaram sem nosso consentimento uma quinta parte; há ainda o vinagre dos 4 ladrões. Os Cristãos têm as 4 têmporas, sem falarmos das nossas carruagens, que têm 4 rodas, dos animais que as puxam que têm 4 pés e de nossas mulheres, que às vezes fazem o diabo a 4, com o que, leitoras, não vos agasteis, de sorte que nos façais descer os degraus de vossa casa 4 a 4."

Expediente do primeiro número do Jornal das Senhoras, 1º de janeiro de 1852

(1) Ao que tudo indica, o Jornal das Senhoras foi a primeira publicação brasileira que, voltada para mulheres, tinha uma mulher como redatora.
(2) Desasnar foi, durante muito tempo, particularmente no período colonial, expressão corrente que designava o aprendizado de leitura, escrita e um pouco de aritmética.
(3) EDUCAÇÃO - Órgão da Directoria Geral da Instrucção Pública e da Sociedade de Educação, de São Paulo Volume 1, p. 101.

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