domingo, 24 de julho de 2011

A galinha mais importante da história do Brasil

Quem realizou o experimento que permitiu a descoberta da técnica de branqueamento do açúcar usada nos engenhos coloniais brasileiros? Um grande cientista? Um trabalhador experiente? Um senhor de engenho? Se Frei Vicente do Salvador estiver correto no relato que fez, não foi ninguém dessas personagens, e sim... uma galinha!
O processo, em si, é algo elaborado, mas a ideia é bem simples, conforme a descrição de Antonil. Colocado em formas de barro (para fazer os "pães-de-açúcar"), o açúcar era coberto de barro pelas escravas encarregadas desse trabalho:
"Cavam primeiro as quatro escravas purgadeiras com cavadores de ferro no meio da cara da forma (que é a parte superior) o açúcar já seco, e logo o tornam a igualar e entaipar muito bem com macetes; botam-lhe então o primeiro barro, tirando-o com um reminhol dos tachos, que vieram cheios dele do seu cocho, estando já amassado em sua conta, e com a palma da mão o estendem sobre toda a cara da forma, alto dois dedos. Ao segundo ou terceiro dia botam em riba do mesmo barro meio reminhol ou uma cuia e meia de água, e para que não caia no barro de pancada, e caindo faça covas no açúcar, recebem sobre a mão esquerda, chegada ao barro, a água, que botam com a direita igualmente sobre toda a superfície, e logo com a palma da mão direita mexem levemente o barro, de sorte que com os dedos não cheguem a bulir na cara do açúcar." (¹)
Continua a explicação do jesuíta:
"Como o açúcar vai purgando, assim se vai branqueando por seus grãos, a saber, mais na parte superior, menos na do meio, pouco na última e quase nada nos pés das formas, aos quais chamam cabuchos, e este menos purgado é o que se chama mascavado. Também como vai purgando, vai descendo o barro pouco a pouco dentro da forma, e se purgar bem devagar, descendo só meia mão, que chamam medida de chave, e vem a ser desde a raiz do dedo polegar até a ponta do dedo mostrador, a purgação será boa e de rendimento de mais açúcar, e forte; mas se purgar apressadamente, renderá pouco." (²)
E, finalmente, ensina Antonil:
"O primeiro barro, que se pôs na forma alto dois dedos, quando se tira já seco tem só altura de um dedo, que é depois de seis dias; quando se tira o segundo (que se botou com a mesma altura de dois dedos) depois de quinze dias, tem só meio dedo de altura. Acabando o açúcar de purgar, param também as lavagens, e três ou quatro dias depois da última, tira-se o segundo barro já seco, e depois do barro fora, dão-lhe mais oito dias para acabar de enxugar e escorrer, e então se pode tirar." (³)
Pois bem, leitor, que tem uma galinha a ver com tudo isso? É o que explica Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil, ao tratar do mesmo assunto, ou seja, de como a cana é moída e dela se extrai um caldo que se transforma em açúcar:
"...passada a cana por eles duas vezes larga todo o sumo sem ter necessidade [...] de outra coisa mais que cozer-se nas caldeiras, [...], e leva cada uma duas pipas pouco mais ou menos de mel (⁴), além de uns tachos grandes, em que se põem em ponto de açúcar, e se deita em formas de barro no tendal, donde as levam à casa de purgar [...] e lhes lançam um bolo de barro batido na boca, e depois daquele outro, com o açúcar se purga e faz alvíssimo, o que se fez por experiência de uma galinha, que acertou de saltar em uma forma com os pés cheios de barro, e ficando todo o mais açúcar pardo, viram só o lugar da pegada ficou branco."
É certo que, para crer nessa história, precisamos crer, antes de mais nada, no relato de Frei Vicente do Salvador. Mas, se isso for verdade, eis aí a galinha mais importante de toda a História do Brasil!

(1) Cultura e Opulência do Brasil Por Suas Drogas e Minas, pp. 83 e 84 na edição de 1711.
(2) Ibid., p. 85.
(3) Ibid., p. 86.
(4) Não o de abelhas, mas o caldo condensado de cana-de-açúcar.


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2 comentários:

  1. Adorei achar essa história da galinha, ouvi isso quando era criança na escola, já fazem mais de 30 anos.Hoje conto sobre essa historia e não tinha uma referência.

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