quinta-feira, 22 de março de 2012

Como os escravos cumprimentavam seus senhores

"Bom dia", "olá", "oi", "tudo bem?" são cumprimentos usuais no português do Brasil, ao menos para quem vive em 2012. Mas nem sempre foi assim, e cumprimentar era, antigamente, quase um cerimonial, que demarcava com clareza o status das pessoas envolvidas. Um episódio interessante relatado por Hércules Florence ilustra bem esse assunto, ao referir-se à chegada da Expedição Langsdorff, que percorreu boa parte do Brasil entre 1825 e 1829, à fazenda Buriti, em Mato Grosso, propriedade de Dona Antônia, uma senhora já mencionada neste blog na postagem "Passeio de Rede - Parte 2":
"O administrador, que era irmão dela [de D. Antônia], e o feitor adiantaram-se ao seu encontro, e os negros e negras que haviam ficado em casa se chegaram para dar o louvado.
"Dar louvado" é pôr as mãos juntas e pronunciar as seguintes palavras: "Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo", ao que responde o senhor: "Para sempre seja louvado" ou simplesmente "Para sempre". É o bons-dias do escravo para o amo, do filho para o pai, do afilhado para o padrinho, do aprendiz para o mestre. Os pretos, que estropiam todos os vocábulos portugueses, fizeram dessa frase uma corruptela que exprimem por esta bárbara palavra Vasucris.
Em São Paulo e Cuiabá dá-se louvado; no Rio de Janeiro pede-se a benção por este modo: "a benção?"." (*)
O "louvado" praticamente desapareceu; curiosamente, "pedir a benção" ainda persiste em muitos lugares, nos quais os costumes mais tradicionais  não foram varridos. Já quanto ao falar estropiado de muitos cativos, vale recordar que Hércules Florence percorreu o Brasil em um tempo no qual o tráfico de africanos era ainda muito intenso. Recém-chegados ao Brasil, ninguém imagine que os candidatos a escravos eram, primeiramente, encaminhados a algum curso básico de português para estrangeiros para, só depois, seguirem a seus postos de trabalho. A realidade do aprendizado da nova língua fazia-se sob o chicote do feitor ou a palmatória da senhora, servindo quase sempre de modelo o que se falava na senzala e também aprendido, portanto, sob as mesmas condições. Deixo o estudo do fenômeno para os linguistas, mas o caso é que reduções de expressões demasiado extensas costumam ocorrer em muitos idiomas (para comodidade de quem fala), não sendo, pois, exclusividade do universo dos escravos. Que se veja o mais vulgar dos exemplos, a simplificação da expressão "vossa mercê", que no português do Brasil acabou resultando em "você", com um curioso trânsito do tratamento formal para o mais íntimo e familiar. E note-se que na língua oral a coisa prosseguiu, havendo quem fale "ocê" e até "cê", mas nesse momento a redução se esgota, por absoluta falta de matéria-prima.
Resta assinalar ainda que, ao dizer "vasucris" em lugar de "louvado seja...", percebe-se que, com grande probabilidade, essa expressão não significava coisa alguma para os escravos, ou ao menos seu significado pleno lhes escapava. Era apenas um cumprimento, e mais nada. Surpreendente? Nem um pouco. Na lógica de grande parte dos senhores, os escravos vinham ao Brasil para trabalhar, e não para que aprendessem uma nova religião, embora hipocritamente a escravidão fosse justificada com a suposta doutrinação dos cativos. Quem iria esperar coisa diferente, se mesmo entre os livres a instrução religiosa era bastante escassa, reduzindo-se, para grande parte da população, ao memorizar de umas poucas rezas, entremeadas de crenças supersticiosas que os religiosos mais esclarecidos procuravam, em vão, extirpar?

(*) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 144.


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