domingo, 8 de abril de 2012

A catequese no Período Colonial e a participação dos indígenas nos rituais da Semana Santa

Muito se tem discutido sobre a legitimidade da catequese dos povos indígenas do Brasil Colônia, já que esse processo significou, por vezes, a supressão da maior parte da cultura original, mas, para efeitos desta postagem adotarei, simplesmente, a premissa de que ela ocorreu, o que é fato que não pode ser mudado. Então, nesse quadro, é inegável que, do ponto de vista dos missionários das várias ordens religiosas que empreenderam a catequese, o trabalho era penoso e seus resultados muitas vezes frustrantes, diante do enorme distanciamento entre as culturas que se encontravam (e/ou se chocavam).
Frei Vicente do Salvador, que escreveu na primeira metade do século XVII, relatou um episódio que é, a esse respeito, bastante esclarecedor, que mostra também como ele, um religioso,  interpretava o comportamento dos índios face aos ensinos e às cerimônias da Igreja:
"Só acodem todos com muita vontade nas festas em que há alguma cerimônia, porque são mui amigos de novidades, como dia de São João Batista, por causa das fogueiras e capelas, dia da Comemoração Geral dos defuntos, para ofertarem por eles, dia de Cinza e de Ramos e principalmente pelas Endoenças (¹), para se disciplinarem, porque o têm por valentia, e tanto é isto assim que um principal chamado Iniaoba, e depois de cristão Jorge de Albuquerque, estando ausente na Semana Santa, chegando à aldeia nas Oitavas da Páscoa (²), e dizendo-lhe os outros que se haviam disciplinado grandes e pequenos, se foi ter comigo, que então ali presidia, dizendo "como se havia de haver no mundo que se disciplinassem até os meninos e ele, sendo tão grande valente, como de feito era, ficasse com o seu sangue no corpo sem o derramar", respondi-lhe eu que todas as coisas tinham seu tempo e que nas Endoenças se haviam disciplinado em memória dos açoites que Cristo Senhor Nosso por nós havia padecido, mas que já agora se festejava sua gloriosa ressurreição com alegria, e nem com isto se aquietou, antes me pôs tantas instâncias, dizendo que ficaria desonrado e tido por fraco, que foi necessário dizer-lhe fizesse o que quisesse, com o que logo se foi açoitar rijamente por toda a aldeia, derramando tanto sangue das suas costas quanto os outros estavam, por festa, metendo de vinho nas ilhargas." (³)
Temos aqui, como se vê, um exemplo acabado do que é que resultava desse choque de duas culturas, a cristã-católica dos portugueses e a dos nativos do Brasil. Consideremos mais detalhadamente:
- Os indígenas tinham seu próprio modo de contar o tempo, muito diverso de empregado pelos catequistas europeus e, embora se possa afirmar que, nos dois casos havia um ciclo anual de festividades, para os nativos era estranha a noção de uma data previamente fixada, já que seu cômputo dependia de acontecimentos naturais, como era o amadurecimento de determinados frutos, que não tinha hora marcada para acontecer, ainda que se pudesse esperar para uma determinada época;
- Para os europeus a autoflagelação da liturgia da quinta-feira santa tinha pelo menos dois aspectos, o rememorativo (lembrando a flagelação de Jesus por soldados romanos) e o penitencial; já para os índios, suportar essa tortura autoimposta era prova conclusiva de valentia, de modo que mesmo os meninos queriam disso participar, evidenciando o quanto lhes era estranha a ideia que os padres a custo pretendiam inculcar-lhes;
- Finalmente, resta dizer que o interesse pelas festividades advinha, em parte, de ser essa uma expressão cujo caráter se podia entender, um ponto de contato, se assim se pode chamar, fosse de alegria, luto, solenidade. Malgrado os brilhantes esforços de muitos religiosos no sentido de compreender e estudar os idiomas indígenas, a língua era por certo uma barreira poderosa na comunicação - expressar em outra língua uma realidade desconhecida aos falantes nativos é tarefa das mais árduas, quando chega a ser passível de realização.

(1) Liturgia de Quinta-Feira Santa, quando se relembra a flagelação de Jesus antes da crucifixão.
(2) Domingo seguinte ao domingo de Páscoa.

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