domingo, 1 de abril de 2012

O bacalhau da Quaresma

Tratei, na postagem anterior, dos chamados "dias de peixe", nos quais, durante a Quaresma, já houve tempo em que a maioria das pessoas se abstinha de consumir carne, pelo menos em alguns países nos quais essa tradição religiosa era predominante. Então, meus leitores, servindo-nos ainda do livro  Arte do Cozinheiro e do Copeiro (¹), editado em Lisboa na primeira metade do século XIX e cujo autor se intitula "um amigo dos progressos da civilização", trataremos agora da verdadeira estrela da culinária da Quaresma, o bacalhau, isso para Portugal ou para países, como o Brasil, em que a influência da cozinha portuguesa foi e é marcante.
Comecemos com o óbvio, uma receita do tradicionalíssimo bolinho de bacalhau. Diz a Arte do Cozinheiro e do Copeiro:

Bolinho de Bacalhau
"Depois de bem remolhado [o bacalhau] cozei-o com muita água; tirai-o depois de ter dado duas fervuras, abafai-o e desfazei-o em escamas, tirando-lhe cuidadosamente todas as espinhas.
Deitai o bacalhau desfeito num gral de pedra e desfazei-o bem, ajuntando-lhe uma pouca de água da cozedura, até formar uma massa que passe no passador. Passai-o e ajuntai-lhe uma pouca de farinha, gemas de ovos batidas, salsa e cebola picada, tudo em justa proporção, de modo que façais uma massa grossa que possais tirar com a colher de ferro. Ponde uma sertã (²) ao lume com azeite, e quando este fumar e estiver bem quente, ide-lhe deitando meia colher de massa para cada bolinho, até encher a sertã. Virai-os, fritai-os e ponde-os a escorrer.
Servem-se com molho de vinagre diluído com uma gota de água e raminhos de salsa: quanto mais repassados estiverem deste molho, mais gostosos serão."

Então, senhores leitores, já podem sentir o aroma dos bolinhos que acabamos de fritar? O curioso é que nosso autor não para nas receitas (bacalhau ao forno, bacalhau guisado, bacalhau grelhado...). Passa a considerar que, apesar de muito saboroso, o bacalhau não é conveniente a todos, por se tratar, segundo ele, de um peixe de "fibra mui dura", apesar de ser "no interior do reino" (refere-se a Portugal, claro), "o peixe que há na quaresma e nos dias de jejum". Expõe, então, sua ideia mais exótica: o bacalhau traz uma despesa considerável, devendo ser substituído por gado bovino. Mas demos a palavra a ele mesmo, para que esclareça livremente seu raciocínio:
"Seria para desejar que, em vez de comprarmos todos os anos 3:500,000 cruzados de bacalhau, que vem a ser 291.666 moedas de ouro, equivalentes a 29.166 bois gordos e belos, reputados a dez moedas cada um, nós criássemos estes bois em nossas terras desertas, e que os comêssemos, bem entendido, depois de impetrar uma bula para isto."
A coisa chega a ser engraçada, até pela perspectiva de acabar envolvendo o papa na questão (para emitir a bula que viria a autorizar o consumo dos bois em lugar do bacalhau na quaresma). Hoje o consumo do bacalhau preocupa os ambientalistas - não haverá, em pouco tempo, peixe suficiente para sustentar o crescente consumo mundial - enquanto que os bois, além de precisarem de uma enorme e antiecológica quantidade de água, acabam sendo sacrificados para um consumo de carne que não é nada saudável. Diante disso, meus leitores, parece  que estamos a um passo de voltar à tal "sopa para dias de peixe" da postagem anterior!

(1) Obra já citada na postagem "Dias de peixe".
(2) Frigideira.


Veja também:

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