domingo, 19 de agosto de 2012

Os valores dos povos indígenas e as consequências do escambo

O comércio, em si, não é uma coisa má. Afinal de contas, quem é que é capaz de fazer, por si mesmo, tudo aquilo de que precisa, principalmente em sociedades altamente complexas como as que existem hoje?
Ocorre, porém, que o comércio pode, como todo  mundo sabe, ser fonte de (muitas) encrencas. O escambo, troca direta de uma mercadoria por outra, que se instaurou no Brasil com a chegada dos europeus, é um claro exemplo disso.
Até onde as fontes documentais de que dispomos nos informam, os povos indígenas do Brasil, pelas época do século XVI, não produziam, em geral, para troca. Comparados aos europeus, os índios dispunham de um número pequeno de artefatos, com os quais, no entanto, eram capazes de satisfazer às suas necessidades quotidianas. Um relato, de autoria do Padre Simão de Vasconcelos, nos conta que, perguntados pelo que tinham de maior valor, os nativos apontavam objetos que podiam carregar consigo, nada referindo de coisas que, para os europeus, eram tidas como importantes:
"Finalmente, acerca da bondade da terra se espraiavam mais: aqui mostravam com longas histórias e exemplos, as descrições das coisas que a seu modo tinham por de maior momento, como a de seus arcos e flechas, das penas com que se enfeitavam, das frutas agrestes que comiam e de que faziam seus vinhos; e eram das coisas que em seus olhos avultavam mais, deixando por de menos conta, a prata, o ouro, o âmbar e as pedras preciosas, às quais tem dado título de grandes, nossa real cobiça." (¹)
Porém...
Porém, com a chegada dos portugueses e o início do escambo, essa perspectiva passaria por uma transformação radical. Os índios, que produziam, quase sempre, apenas aquilo que era necessário ao seu próprio uso, passaram a ter interesse em produzir mais, sempre mais, para o "resgate", que é o nome que davam os portugueses a esse nascente comércio que instituíram. Em uma linguagem que certamente muitos de meus leitores conhecem bem, aquilo que antes tinha apenas valor de uso, passou a ter valor de troca. Ou seja, virou mercadoria.
Mas não foi só. A introdução de ferramentas de metal, uma inteira novidade para os indígenas, produziu alterações profundas na relação desses povos com a natureza. Apenas para exemplificar, machados fornecidos por europeus logo encontraram uso em derrubar facilmente enormes árvores que, arrastadas a simples depósitos no litoral - as feitorias - eram, depois da devida troca, embarcadas para muito longe.
Quando a expedição de Martim Afonso de Sousa veio ao Brasil, Pero Lopes anotou, em certa ocasião:
"Este dia vieram de terra, a nado, às naus, índios a perguntar-nos se queríamos brasil." (²)
Vê-se, nesse caso, que a iniciativa do escambo já não partia, necessariamente, dos portugueses. Os índios é que estavam, agora, interessados nas trocas.

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, pp. 85 e 86.
(2) Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa.


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