domingo, 24 de fevereiro de 2013

Cajus e cajueiros - Parte 4

O "vinho" de caju dos indígenas


"Em fazer várias castas de vinho são engenhosos. Parece certo que algum deus Baco passou a estas partes a ensinar-lhes tantas espécies dele, que alguns contam trinta e duas." (¹) Assim referiu-se o Padre Simão de Vasconcelos, autor das Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil, à excepcional habilidade de alguns povos indígenas em fabricar bebidas fermentadas (trinta e duas!), chamadas genericamente de "vinhos", das quais a mais soberba era justamente a que se elaborava com cajus.
Caju (²)
Demora-se o Padre em descrever algumas desses "vinhos", mas vamos, por hora, àquele que nos interessa: "...outros de caju, e deste em tanta quantidade, que podem encher-se muitas pipas, de cor a modo de palhete. Deste vi eu uma frasqueira, e se não fora certificado do que era, afirmara que era vinho de Portugal. Fazem-no da maneira seguinte: Espreme-se o caju em vasos, e nestes o deixam estar tanto tempo que ferva, escume e fermente, até ficar com sustância de vinho, mais ou menos azedo, segundo a quantidade do tempo. É este vinho entre eles estimado sobre todos os outros, e ser senhor de um destes cajuais para efeito dele é ter o morgado mais pingue." (³)
Não contente com essa descrição, voltaria o Padre Simão de Vasconcelos a tratar do mesmo assunto, na mesma obra, mais de cem páginas depois: "... e deles mesmos, quando maduros, tiram os vinhos mais preciosos seus, na maneira seguinte. Vão-se eles como à vindima, e conduzida grande quantidade, juntam-se logo os vinhateiros destros no ofício, enquanto estão frescos, e tirada a castanha vão espremendo poucos e poucos, ou às mãos, ou à força de certo gênero de prensa de palma, que chamam tipiti; e aparado o licor em alguidares, o vão lançando em grandes talhas que para isto obram e chamam igaçabas, onde como em lagar ferve e se torna em vinho puro e generoso; e é o que bebem com mais gosto e guardam largos tempos, e quanto mais velho, mais eficaz." (⁴)
Nota-se, facilmente, que nosso padre-escritor lança mão, ao descrever o processo de fabrico desse fermentado de caju, de toda uma linguagem que lembra o método de elaboração de vinho, esse sim de uvas, em Portugal. Não sabemos se, de algum modo, àquela altura (segunda metade do século XVII) não seriam os métodos indígenas já influenciados pelas técnicas dos colonizadores portugueses, nem se pode supor que todos os indígenas fizessem a mesma bebida e com o uso dos mesmos procedimentos. O que fica evidente, porém, é que o Padre era não apenas um bom conhecedor de vinhos, como já havia aprendido a apreciar o fermentado de cajus que os nativos preparavam. Afinal, como bom missionário, devia estar ciente da utilidade de adaptar-se aos costumes dos povos que se pretendia evangelizar...

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p.142.
(2) PISO/PIES, Willen et MARKGRAF, Georg. Historia naturalis Brasiliae. Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Op. cit., p. 143.
(4) Ibid., pp. 261 e 262.


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