domingo, 10 de fevereiro de 2013

Questões que se resolviam à força no Brasil Colonial

Encrencas entre colonizadores eram, no Brasil, pretexto de não poucas tragédias. Um desentendimento trivial, coisa de pouca monta, era visto, por vezes, como afronta à honra das partes envolvidas, motivo para que se resolvesse a "diferença" não através das instâncias de Justiça, mas pela força das armas.
José de Alencar, em As Minas de Prata, expressou esse fato muito bem, ainda que sua intenção fosse, a priori, fazer Literatura:
"O advogado era apenas um conciliador de partes; afora essa tarefa de nada servia; porque os embargos, os agravos e os recursos tinham sido substituídos por uma exceção peremptória não consignada no formulário dos praxistas - a adaga ou o arcabuz."
Um exemplo prático do que podia suceder é dado por Antonil em Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas, ao mencionar as desavenças resultantes do sentir-se alguém prejudicado por um proprietário de animais que os deixava soltos em canavial alheio:
"E posto que os lavradores se acomodem de qualquer modo a sofrer os furtos pequenos dos frutos do seu suor, veem-se às vezes obrigados de uma justa dor a matar porcos, cabras e bois que outros não tratam de divertir e guardar nos pastos cercados ou em parte mais remota, ainda depois de rogados e avisados que ponham cobro a este dano, donde se seguem queixas, inimizades e ódios, que se rematam com mortes ou com sanguinolentas e afrontosas vinganças. Por isso cada qual trate de defender os seus canaviais e de evitar ocasiões de outros se queixarem justamente do seu muito descuido, medindo os danos alheios com o sentimento dos próprios."(¹)
Caso similar aparece também no Compêndio Narrativo do Peregrino da América, em que alguém narra ao Peregrino toda a sua fúria e desejo de vingança contra um outro lavrador, que matou uma rês de sua propriedade, por ter-lhe invadido a lavoura:
"Com efeito vim de morada para este sítio, e nele tenho feito todas as benfeitorias que vedes. E como precisamente me seja necessário trazer algumas cabeças de gado vacum para o ministério da minha lavoura, e este (ainda que eu o traga apastorado) não pode andar sempre tão domado, que não suceda passar à fazenda deste homem, e por isso fazer-lhe algum dano, do qual me tem avisado algumas vezes, sucedeu hoje por descuido do pastor entrar-lhe o gado na fazenda, de que resultou mandar matar uma rês, e depois de me ter feito este acinte, me mandou dizer que a mandasse buscar e, senão, que me pagaria o seu valor. A este recado lhe respondi, que eu me pagaria pelo melhor meio que pudesse." (²)
E que é que pretendia fazer ao desafeto? Ele aproveita o ensejo da chegada do Peregrino, pedindo-lhe conselho de como melhor vingar-se:
"Agora vos peço que me digais o que devo obrar neste particular, para me vingar deste homem [...], porque é tal o ódio que lhe tenho, que o tomara ver destruído, pois me parece que, por ser mais rico e tanto o favorecer a fortuna, faz menos preço de minha pessoa." (³)
Basta, agora, explicar que na obra literária de Nuno Marques Pereira tudo se resolve bem, com ampla conciliação dos desafetos, em virtude da sábia interferência do Peregrino. Na vida real, porém, senhores leitores, as coisas costumavam sair bem diversas!
Não é que, necessariamente, a Justiça colonial se omitisse. Não era assim, pelo menos não na totalidade dos casos. A questão é que a Colônia era gigantesca, e os poucos magistrados não podiam dar conta, com a rapidez desejável, de todos os casos que lhes eram apresentados. Em algumas situações havia até a possibilidade de recurso ao Reino, condição em que um processo podia durar muitos anos... A conclusão disso tudo é que, aos belicosos colonizadores, parecia muito mais fácil resolver sua pendências por si mesmos, ou, quando muito, com a ajuda de seus escravos e empregados, aproveitando a ocasião para, mediante o uso da força, estabelecerem, com maior firmeza, sua dominação na área em que viviam. Daí resultavam mortes que, por sua vez, esperava-se que fossem vingadas pelas respectivas famílias, de modo que os conflitos que começavam pequenos, por causas mínimas, acabavam virando verdadeiros dramas shakespearianos, ainda que sem bailes de máscaras, sem casais de adolescentes apaixonados que se suicidassem, sem reconciliação.
Escrevendo já nos dias do Império, Hércules Florence apontaria, com precisão, algumas causas da impunidade (referia-se, especificamente, a um assassinato):
"No Brasil, veem-se muitas vezes crimes desta natureza ficarem impunes, não só porque suas vastas florestas dão seguro asilo aos delinquentes, como a justiça pública mostra-se frouxa ou falta de meios para se fazer respeitar, e a polícia é nula. Um homem, que comete um atentado, foge para outra Província, ali passeia sem rebuço e ninguém lhe toma contas.
Quanto aos que buscam refúgio nos matos, não admira que estejam fora do alcance da ação legal, pois os meios de que esta careceria seriam por demais dispendiosos, mas em relação aos que se homiziam em outras Províncias, a segurança de que vão gozar prova bem quanto é viciosa a administração." (⁴)

(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 42.
(2) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 339.
(3) Ibid., p. 340.
(4) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 17.


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