quarta-feira, 26 de junho de 2013

Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, Brasil

Ramo de pau-brasil

Segundo assinalado por Pero Vaz de Caminha, o nome atribuído inicialmente às terras "encontradas" por sua esquadra na América foi o de "Terra de Vera Cruz" ou "Ilha de Vera Cruz", conforme dois trechos de sua Carta a D. Manuel, dois quais um deles é este:
"Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra, primeiramente de um grande monte mui alto e redondo, e de outras serras mais baixas ao sul dele, e de terra chã com grandes arvoredos, ao qual monte alto o Capitão pôs nome "o Monte Pascoal" e à terra "a terra da Vera Cruz".
E aqui, o outro, já na conclusão do relato:
"Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto Seguro da vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500."
De passagem, observemos que essa ambiguidade na denominação, primeiro "Terra", depois "Ilha", reforça o fato de que os portugueses, assim como os demais navegantes da época, tinham ainda grande dificuldade em saber onde, exatamente, estavam. Em linhas gerais, pode-se dizer que eram capazes, com alguma imprecisão, é verdade, de determinarem a latitude; a longitude, porém, ainda levaria muito tempo para ser corretamente registrada.
Prossigamos.
Seja lá ilha ou terra, o nome inicial, de "Vera Cruz", logo foi substituído por "Santa Cruz", para, não muito mais tarde, tornar-se Brasil, bem a contragosto dos religiosos, como já veremos.
Em 1504, quando Fernando de Noronha recebeu a então chamada Ilha de São João, ainda se usava o nome de Terra de Santa Cruz, como se vê da correspondente Carta de Doação:
"A quantos esta nossa carta virem fazemos saber que havendo-nos respeito aos serviços que Fernando de Noronha, cavaleiro de nossa casa nos tem feito e esperamos ao diante dele receber, e querendo-lhe por isso fazer graça e mercê, temos por bem e nos apraz que vindo-se a povoar em algum tempo a nossa ilha de São João, que ele ora novamente achou e descobriu cinquenta léguas ao mar da nossa Terra de Santa Cruz, lhe darmos e fazermos mercê da Capitania dela em vida sua e de um seu filho..." (¹)
Porém, em 1511, quando se autorizou a vinda da Nau Bretoa às terras da América, já aparece o nome "Brasil", no próprio título de seu diário de bordo: "Livro da Nau Bretoa que vai para a terra do Brasil". E depois: "Livro do dia que partimos da cidade de Lisboa para o Brasil, até que tornamos a Portugal".
Duas décadas mais tarde, quando a expedição comandada por Martim Afonso de Sousa foi enviada à América, o nome de Brasil já devia ser coisa consolidada, pelo que se vê no documento através do qual o monarca lusitano estipulava os poderes do homem a quem confiara o mando:
"Dom João, a quantos esta minha carta de poder virem, faço saber que eu envio ora a Martim Afonso de Sousa, do meu Conselho, por Capitão-Mor da armada que envio à Terra do Brasil, e assim de todas as terras que ele dito, Martim Afonso, na dita terra achar e descobrir..." (²)
Tronco de pau-brasil
Pode parecer uma simplificação até útil, essa adoção do nome de Brasil em lugar de Ilha de Vera Cruz ou Terra de Santa Cruz. Aos olhos dos mais religiosos, fossem clérigos ou não, essa mudança foi sobremodo irritante. É o que se depreende do que escreveu Gândavo em obra datada de 1576 (³):
"Por onde não parece razão que lhe neguemos este nome e nem que nos esqueçamos dele tão indevidamente, por que lhe deu o vulgo mal considerado, depois que o pau da tinta começou a vir a estes reinos, ao qual chamaram "brasil" por ser vermelho e ter semelhança de brasa, e daqui ficou a terra com este nome de Brasil. Mas, para que nesta parte magoemos ao Demônio, que tanto trabalhou e trabalha por extinguir a memória da Santa Cruz e desterrá-la dos corações dos homens, mediante a qual somos redimidos e livrados do poder de sua tirania, tornemos-lhe a restituir seu nome e chamemos-lhe Província de Santa Cruz como em princípio [...], porque na verdade mais é destinar e melhor é nos ouvidos da gente cristã o nome de um pau em que se obrou o mistério de nossa redenção, que outro que não serve mais que de tingir panos ou coisas semelhantes." (⁴)
Quase um século mais tarde, o Padre Simão de Vasconcelos ainda lamentaria a tal mudança de nome:
"Aqui arvoraram aos 3 de maio (como querem alguns) (⁵) o primeiro troféu de portugueses que o Brasil viu, o estandarte da Santa Cruz, ao som de demonstrações de grandes alegrias e solenidade de missa, pregação e salvas de artilharia da Armada, pondo por nome à terra tão formosa, Terra de Santa Cruz, título que depois converteu a cobiça dos homens em Brasil, contentes do nome de outro pau bem diferente do da Cruz, e de efeitos bem diversos." (⁶)
Meus leitores sabem muito bem como, afinal, terminou essa "queda de braço". Não é necessário, pois, nenhuma outra explicação. Só resta imaginar como seria o grito dos torcedores no estádio, em dia de jogo da seleção brasileira, se o nome ainda fosse Terra de Santa Cruz. Séculos antes, portanto, as coisas se arranjaram melhor, ao menos para esse propósito, com o curto e incisivo nome: Brasil!
 
(1) Carta dada em 1504 e, a pedido do próprio Fernando de Noronha (também chamado "Fernão de Noronha"), confirmada em 1522. Veja-se que a expressão "nossa Ilha de São João, que ele ora novamente achou e descobriu", reforça o que acima foi dito sobre a imprecisão dos cálculos marítimos na época dos Grandes Descobrimentos. Uma terra descoberta podia ser facilmente perdida... e depois, novamente encontrada.
(2) Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa (1530 a 1532).
(3) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. 1576.
(4) Esqueceu-se Gândavo de mencionar que o pau-brasil tinha outros usos, igualmente importantes, sendo particularmente prezado na construção naval daquela época, para a confecção de partes de embarcações que requeriam madeira flexível, porém muito resistente. É pela mesma razão que se faz ainda hoje muito estimado dos que constroem ou tocam instrumentos de cordas de alto padrão, com emprego assinalado para arcos de violino.
(5) Nisto diverge da Carta de Caminha, já citada. A carta de Caminha menciona duas missas, celebradas, a primeira, no chamado "Domingo da Pascoela", ou seja, o domingo seguinte ao domingo de Páscoa, e a segunda, em 1º de maio de 1500, e deve ser a esta que se refere o Padre Vasconcelos, por ter sido nessa ocasião que a cruz e as armas de Portugal foram plantadas em terra. Entretanto, é bom lembrar que já houve quem discutisse essa questão de datas, tentando demonstrar que Caminha poderia ter errado nas datas que anotou em sua Carta.
(6) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668.


Veja também:

2 comentários:

  1. Sou leigo e apenas pergunto: Não houve uma alteração de dez dias no calendário? Aprendemos isso na escola.

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    1. Olá, Arauto, obrigada por sua visita ao blog.
      Sim, houve uma mudança no calendário, ocorrida em 1582, instituindo o que chamamos de Calendário Gregoriano. Por causa dos ajustes feitos nessa ocasião, dez dias "desapareceram", ou seja, a contagem saltou de 4 de outubro de 1582 (uma quinta-feira), para 15 de outubro de 1582 (sexta-feira). Como você pode notar, essa mudança não se relaciona ao problema citado na nota da postagem, porque o chamado Descobrimento do Brasil por portugueses ocorreu em 1500 - portanto, muito antes das reformas introduzidas pelo Calendário Gregoriano.

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