domingo, 4 de agosto de 2013

Peste Negra

Ratos, pulgas e uma doença que devastou a Europa medieval


A "Peste Negra" - peste bubônica - aterrorizou a Europa no Século XIV, embora nos subsequentes XV e XVI ela não deixasse de fazer eventuais aparições, não menos apavorantes, porém territorialmente mais restritas.
Vinda da Ásia, logo fez vítimas nas cidades portuárias, nas quais atracavam navios que traziam gente contaminada. Silenciosamente, os verdadeiros transmissores também desembarcavam: as pulgas dos ratos pretos (Rattus rattus), que infestavam as embarcações da época. (¹)
Declarada a peste, as autoridades faziam tudo o que podiam para impedir que a moléstia se propagasse, o que resultava em quase nenhum proveito, já que o "tudo" que se fazia estava totalmente errado. É que os europeus da época não faziam a mínima ideia de como, de fato, ocorria o contágio, e não podiam imaginar que as desprezíveis e incômodas pulgas eram as verdadeiras emissárias da pandemia.
Dentro das muralhas das imundas e fétidas cidades medievais, em que os mais básicos princípios de higiene eram desconhecidos, o estrago era enorme - alguns autores entendem que cerca de um terço da população europeia teria morrido durante a Peste Negra.
Contemporâneo a toda essa desgraça, o escritor Giovanni Boccaccio narrou em seu Decameron, com toda a clareza somente possível a uma testemunha ocular, o que ocorreu em Florença quando, em 1348, a peste manifestou-se na cidade. Nessa obra, um grupo de dez jovens, moças e rapazes, fugindo à contaminação, refugia-se no campo. Lá, para garantir algum entretenimento, passam os dias a contar histórias uns aos outros - aliás, histórias pra lá de licenciosas, verdadeiramente de arrepiar os cabelos, em se tratando de moral - para os padrões da época, naturalmente.
Pois bem, indo ao texto de Boccaccio, temos logo a descrição da chegada da peste e das providências que se tomaram, ainda que fracassadas, na tentativa de conservar saudável a população:
"No ano da encarnação de nosso Bendito Salvador de 1348, aquela notável mortandade apareceu na excelente cidade, assim como em todo o restante da Itália, cuja praga, por operação dos corpos superiores (²) ou, talvez, por nossas grandes iniquidades, foi, pela justa ira de Deus, enviada sobre nós, mortais. Alguns anos antes ela começara nas partes orientais, ceifando então inumerável quantidade de almas viventes. Estendeu-se de um lugar a outro até alcançar o Ocidente, chegando à dita cidade, onde nenhum conhecimento ou providência humana deixou de usar-se para a prevenção, fazendo-se todo o possível para afastá-la mediante diligentes funcionários para isso designados: nem a proibição da entrada de todas as pessoas doentes, nem toda a provisão diária para a conservação daqueles que estavam saudáveis, com incessantes orações e súplicas do povo devoto foram eficazes para manter distante a tão perigosa doença." (³)
Passa, então, a descrever os sintomas da enfermidade, conforme observou em seus dias:
"Por volta do princípio do ano, ela começou estranhamente, com o aparecimento de vários sintomas admiráveis, não como ocorrera nos lugares do Oriente, onde homens e mulheres por ela atingidos manifestavam os sinais de morte inevitável que se seguia ao sangramento do nariz. Aqui ela começou atingindo as crianças pequenas, tanto meninos como meninas, com o aparecimento de inchaços tanto nas axilas como na virilha, que eram do tamanho de uma maçã, em alguns casos, ou de um ovo, em outros [...]. Em breve espaço de tempo, as partes infectadas cresciam mortalmente, e então se espalhavam para todas as partes do corpo, depois do que, de acordo com a intensidade da doença, apareciam manchas negras ou azuladas, as quais podiam localizar-se nos braços ou nas coxas, ou em qualquer outra parte do corpo. Em alguns, as manchas eram poucas e grandes, e em outros, pequenas e numerosas.
Assim como o inchaço no princípio, as manchas eram um sinal certo de que a morte se aproximava [...]. Todos morriam, três dias depois do aparecimento dos primeiros sintomas [...], comumente sem qualquer febre ou outro acontecimento." (⁴)
Tratem de aguentar, leitores! O que vem a seguir é uma demonstração cabal de como a gente do Medievo não compreendia, em absoluto, como se dava o contágio, e o que é que ratos e pulgas tinham a ver com a peste:
"Esta pestilência era de tal força e violência que não somente as pessoas saudáveis que viam ou falavam com os doentes ou arrumavam suas roupas misericordiosamente para confortá-los arriscavam-se a contrair a doença, mas tocar as vestes ou qualquer alimento oferecido à pessoa enferma, ou qualquer coisa usada em seu serviço, semeava ou transferia a doença do enfermo para o saudável, de muito rara e estranha maneira. Entre tantas coisas absurdas, quero contar uma, que se os olhos de muitos (dentre os quais os meus) não houvessem visto, dificilmente eu teria coragem de escrever e muito menos acreditar, ainda que um homem digno de confiança me relatasse. Eu afirmo que a qualidade do contágio dessa pestilência era não só muito eficaz em passar de uma pessoa a outra, fosse homem ou mulher, mas ela depois se estendia, diante da vista de muitos, de tal modo que as roupas, ou qualquer outra coisa de qualquer um que morrera da doença, sendo tocadas ou postas sobre qualquer animal, independente da origem do morto, não somente contaminavam o dito animal, fosse cachorro, gato ou algum outro, mas também ele morria pouco tempo depois." (⁵)
Pulgas, pulgas, pulgas - pulgas!
Resta uma observação, algo mórbida, mas necessária. Pela época em que grassou a pandemia, a fome não era rara na Europa, em virtude de a produção de alimentos não acompanhar o crescimento populacional. A morte de tanta gente acabou por reduzir essa pressão, ainda que muitos trabalhadores da lavoura tenham acabado também nas valas comuns em que eram, às pressas, sepultadas muitas das vítimas da peste negra. Menos camponeses para trabalhar a terra, é verdade, mas também muito menos bocas para alimentar.

(1) Rattus rattus é o principal "hospedeiro" dessas pulgas, mas alguns outros roedores também podem fazê-lo.
(2) Era comum, na época, atribuir-se aos corpos celestes (planetas, estrelas e, em particular, cometas), a responsabilidade por grandes catástrofes.
(3) BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. Tradução de Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Ibid.
(5) Ibid.


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