domingo, 1 de setembro de 2013

Servos e escravos: qual a diferença?

Servos e escravos eram a mesma coisa? Há quem defenda que sim. Afinal, uns e outros tinham que trabalhar, trabalhar, trabalhar, não é mesmo? Mas as semelhanças não iam muito além disso.
Os servos, é preciso dizê-lo, tinham condições de sobrevivência bastante variáveis, de acordo com o lugar em que viviam. De um modo geral, porém, estavam ligados à terra, o que significa que não podiam deixá-la quando bem entendessem, nem podiam, livremente, mudar de senhor, procurando algum que lhes fosse mais agradável. Mudavam de senhor se a terra na qual viviam tivesse, por qualquer razão, um novo dono. E mais, sua condição era hereditária: quem nascia servinho, crescia servo e passava a vida toda como servo, sem ter a possibilidade de mudar de estrato social, e sua descendência seria sempre restrita à servidão.
Sim, essa não era uma perspectiva animadora. Mas não parava aí.
Os servos estavam obrigados a trabalhar um determinado número de dias a cada semana nas terras de seus respectivos senhores. Podiam ser dois, três ou mais dias, porém nos dias restantes trabalhavam para si mesmos e para a manutenção de suas famílias. Apesar de tudo, isso era para eles uma garantia importante, já que sempre tinham assegurado um pedaço de terra que cultivavam para o próprio sustento. E tanto isso é verdade que, que quando esse direito começou a ser desrespeitado, todo o sistema acabou ruindo. Cabe, no entanto, observar que, via de regra, as terras cultivadas para os senhores eram as melhores, ficando as inferiores reservadas aos servos. A humanidade não mudou tanto assim, como se vê.
Indo adiante, convém lembrar que, além do trabalho compulsório nas terras do senhor, estava o servo obrigado a pagar certos impostos. Exemplificando, se precisavam usar o moinho (que era propriedade do senhor), deviam pagar uma taxa. Valia o mesmo para outras instalações.
Porém...
Porém, nunca, nunca mesmo, um servo poderia ser vendido. Não era mercadoria. Não havia nada que pudesse ser chamado de um "mercado de servos". E é exatamente nisto que reside a grande diferença em relação aos escravos.
Um escravo estava obrigado a trabalhar, e isso tanto quanto seu senhor determinasse. Se, eventualmente, recebia um pequeno terreno para cultivar para si mesmo em suas mais do que escassas horas de folga, era, com frequência, na intenção de que desse menos despesas ao seu "proprietário". Não foi sem causa que Antonil escreveu que, no Brasil, para manter escravos eram necessários PPP:
"No Brasil costumam dizer que para o escravo são necessários três PPP, a saber, pau, pão e pano. E posto que comecem mal, principiando pelo castigo, que é o pau, contudo prouvera a Deus que tão abundante fosse o comer e o vestir como muitas vezes é o castigo, dado por qualquer causa pouco provada ou levantada, e com instrumentos de muito rigor, ainda quando os crimes são certos, de que se não usa nem com os brutos animais, fazendo algum senhor mais caso de um cavalo que de meia dúzia de escravos, pois o cavalo é servido e tem quem lhe busque capim, tem pano para o suor e sela e freio dourado." (¹)
Mas, principalmente, um escravo era, sim, mercadoria. Era vendido, comprado, outra vez vendido, talvez novamente comprado, conforme os desejos ou o humor dos senhores. Houve tempo, em se tratando do Brasil, que nesse comprar e vender escravos não havia qualquer respeito a algum vínculo familiar ou afetivo que os escravizados pudessem ter entre si, e não me refiro apenas aos escravos de origem africana, já que a mesma coisa pode ser dita em relação aos indígenas reduzidos à escravidão pelos colonizadores. Se quisermos referir em poucas palavras qual era a condição do escravo, basta dizer que, para os senhores e para a legislação que vigorava, os escravos eram tidos como "coisas", tais como eram os móveis de uma casa ou os animais de carga. E, para que não reste nenhuma dúvida quanto à veracidade desse fato, vou citar alguns exemplos extraídos da legislação portuguesa, as célebres Ordenações do Reino (²) que, é bom lembrar, não valiam somente em Portugal - eram também vigentes no Brasil.
Lê-se no Terceiro Livro das Ordenações, Título LIII:
"Se o autor demandar uma herdade ou casa, deve declarar nos artigos o lugar certo [...]. E se demandar um escravo, cavalo ou outra coisa móvel ou se movente, deve declarar os sinais certos ou qualidades dela [...]."
Novamente no Livro Terceiro, aparece "escravo" em uma lista de possíveis litígios (conforme o Título LXXXII, § 1):
"E se for contenda sobre algum escravo, besta ou navio, e pendendo a instância da apelação morresse o escravo ou besta, ou perecesse o navio, não deixarão por tanto de ir pelo feito em diante [...]."
Agora no Livro Quarto, Título I, § 2, quando se expressa a questão da compra e/ou venda de escravo e outras mercadorias:
"Assim como se o vendedor vendesse um tonel de vinho ou de azeite, ou um escravo ou uma besta, e o comprador comprasse essa coisa, contentando-se dela a tempo certo, em tal caso, se durando o dito tempo, o comprador for dela contente, valerá a venda e será firme [...]."
Creio, meus leitores, que já temos o suficiente para demonstrar que escravo, ao contrário de servo, era, legalmente, mercadoria. Essa era, portanto, a maior e  mais brutal diferença entre um e outro.

(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 26.
(2) Ordenações do Reino, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.


Veja também:

Um comentário:

  1. O ser humano é capaz de feitos atrozes, não é mesmo?
    O seu post está brilhante. Claro, bem fundamentado, sem cair em exageros académicos. Perfeito para qualquer "leigo" ler e entender.
    Bravíssimo Marta.
    Beijinho, uma doce semana
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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