domingo, 19 de janeiro de 2014

As tropas de muares e seus tropeiros

Como eram transportadas mercadorias no Brasil antes da existência de estradas de ferro

"De longe e visto de perfil, o rochedo parecia um tropeiro, derreado sobre o pescoço da mula e carregando às costas sua maca de viagem."
                                                                                     José de Alencar, O Tronco do Ipê

Antes das ferrovias (que só compareceram ao Brasil na segunda metade do Século XIX), praticamente todo o transporte de cargas era feito por mulas, arregimentadas em grupos mais ou menos numerosos - as "tropas" - e conduzidas por gente livre ou escrava, mas especializada nesse tipo de transporte - os tropeiros.
As estradas que então havia eram péssimas, e isso é o melhor que se pode dizer sobre elas, pouco faltando para que fossem intransitáveis. No entanto, as mulas, animais resistentes e de custo relativamente baixo, conseguiam enfrentar bem as agruras dos caminhos cheios de lama ou poeira, levando mercadorias de uma região a outra, como era o caso das que seguiam para abastecer as Minas, ou daquelas destinadas à exportação e que, portanto, iam do interior para o litoral.
Referindo-se a às mercadorias que, desde Minas Gerais seguiam para o Rio de Janeiro, o Padre Ayres de Casal escreveu:
"Exporta-se, desta Província, sola, couros de veado e de outros animais selváticos, algodão tecido e em lã, tabaco, café, frutas, açúcar, queijos, carne de porco, rapaduras, pedra-sabão, pedraria, salitre, marmelada. Quase tudo é conduzido à Metrópole em bestas, das quais se encontram comboios de cem e maior número, repartidas em récuas de sete cada uma, e governada por um homem, levando de retorno sal, fazendas secas e molhados." (¹)
Um pouco mais tarde, Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff, escreveu, referindo-se aos dias nos quais esteve em Cubatão:
"Durante os oito dias que lá fiquei, vi diariamente chegar três a quatro tropas de animais e outras tantas partirem.
Cada tropa compõe-se no geral de quarenta a oitenta bestas de carga, guiadas por um tropeiro e divididas em lotes de oito animais que caminham sob a direção de um camarada ." (²)
Os números são um pouco diferentes dos apresentados por Ayres de Casal, mas, de qualquer modo, relatam um padrão geral no que se refere à quantidade de animais e de homens que compunham uma tropa comum.
É o próprio Florence quem nos dá uma lista das coisas que essas tropas, vindas de São Paulo, carregavam rumo ao litoral, ou, de retorno, levavam tanto para a capital da Província como para outras localidades:
"As tropas, ao descerem de São Paulo, vêm carregadas de açúcar bruto, toicinho e aguardente de cana e voltam levando sal, vinhos portugueses, fardos de mercadorias, vidros, ferragens, etc." (³)
Comparem os leitores as duas listas de mercadorias - a de Minas Gerais, relatada por Ayres de Casal, e a de São Paulo, feita por Hércules Florence - e terão uma boa ideia do que se produzia em ambas as Províncias na época. É bom lembrar que, nesse tempo, o café ainda não era, por assim dizer, a estrela da economia brasileira. Viria a ser, logo depois.

Caravana de tropeiros, de acordo com gravura de M. Rugendas (⁴)

Ocupados assim em tanger animais e zelar pela segurança das cargas, seria natural esperar que tropeiros não tivessem muito tempo para outros afazeres. Alguns, no entanto, conseguiam. Há um caso interessante registrado pelo Príncipe Adalberto da Prússia, que esteve no Brasil em 1842, referente a um sujeito por ele contratado como tropeiro que, ao lado de sua ocupação normal, encarregava-se de reportar a chegada dos "navios negreiros", embarcações que traziam africanos escravizados:
"Antônio, um português nato, tinha tido durante o governo de D. Miguel de fugir para os Açores, de onde mais tarde se transferira para o Brasil num navio baleeiro. Desde sua chegada a este país, seu trabalho era, assim que chegava um navio negreiro a S. João da Barra, partir a cavalo para o Rio e levar a notícia ao seu proprietário; ninguém portanto podia conhecer este caminho melhor do que ele que, segundo afirmava, já o tinha percorrido muitas vezes em três dias." (⁵)

(1) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica  vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 363.
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 3.
(3) Ibid.
(4) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) ADALBERTO, Príncipe da Prússia. Brasil: Amazônia - Xingu. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 160.


Veja também:

9 comentários:

  1. eu tenho oitenta anos e viajava com o meu pai conduzindo a sua tropa de mulas que era onze mulas, gostaria que foce descrito os tipos e os nomes dos arriamento usado nas mulas e os utensílios que levavam nas bruacas que eram duas em cada tropa , para levar alimento e utensílios para o preparação da alimentação.que quase sempre era feijão tropeiro ou arros tropeiro,

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    1. Olá, José da Silva Caburé, obrigada por sua visita ao blog.
      Vejo que você tem muita coisa para contar! Se quiser, escreva mais aqui no espaço para comentários, sobre sua experiência como tropeiro; será um prazer publicar para que outros leitores possam ver.
      Há, aqui no blog História & Outras Histórias, várias outras postagens sobre o trabalho dos tropeiros, que talvez você possa gostar de ler. Elas tratam essencialmente de tropas e tropeiros do Século XIX, antes que fossem construídas ferrovias para o transporte de carga. Outras postagens virão. Aguardo mais participações suas.

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  2. Boa tarde, gostaria de saber onde posso encontrar informacoes sobre os tropeiros que saiam de Cruz Alta-RS e seguiam rumo a Sorocaba-Sp para venda de seus animais.
    Sou trineta de tropeiros e pesquiso tudo sobre a familia da minha mae, pergunto: Exista alguma lista que se possa consultar? Onde achar informacoes sobre as tropas.

    Grata
    Tania

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    1. Olá, Tânia,

      Quanto aos tropeiros de Cruz Alta, você já tentou contato com os CTGs de lá? (CTG Rodeio da Saudade, CTG Querência da Serra). Talvez eles possam indicar alguma fonte para as informações que você quer.

      Para uma visão geral sobre o tropeirismo (inclusive direcionado à feira de Sorocaba), talvez você possa tentar a leitura de "Tropas em Marcha: o Mercado de Animais de Carga no Centro-Sul do Brasil Imperial" (o autor é Carlos Eduardo Suprinyak) e "Tropas e Tropeiros na Formação do Brasil" (de José Alípio Goulart).

      Obrigada por sua visita ao blog. Desejo sorte a você em suas pesquisas. 😉

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  3. Adão de Suosa Lina foi dos últimos tropeiros do Piaui 1972.Era uma coisa que eu gostava era de tropear.Os tropeiros nordestinos era pobres andavam apé. Alguns eram comerciantes. mas se comparando com os do sudeste e sul eram pobres. Sem Luxo e mordomias. Adão tem material para um livro que gostaria de escrever editá-lo, mas não pode pagar, nem uma tiragem pequena pequena.

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    1. O mercado editorial tem enfrentado turbulências, mas é possível que esse senhor encontre alguma editora que tenha interesse no livro que gostaria de publicar. O assunto é muito interessante.

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  4. TROPEIRA, FAZENDEIRA SP SÉC. XXI.

    No tempo do café com leite, mineração, Minas e São Paulo eram parceiros na economia e na política. Século XIX.
    Ramalho era tropeiro alugado, com uma pequena tropa de burros. Fazia carretos para um fazendeiro de Vale do Paraíba, Taubaté SP. Tinha dois ajudantes que, também eram tropeiros, mas alugados. Casado e com cinco filhos pequenos, três meninos e duas meninas. Viajava sempre sem descanço nem férias.
    Pois ganhava pelo que produzia. 15 dias para ida e volta, de Taubaté até Andradas, Ouro Fino, Pico do Gavião, MG. Certo dia Ramalho caiu morto deu infarto, deixando mulher com filharada e a tropa parada. Regina sua mulher, pediu ao fazendeiro, que lhe desse o serviço que o marido fazia.
    Inicialmente, o fazendeiro cismou, mas como era bom patrão; contratou Regina para tropear no mesmo caminho que Ramalho fazia. Ela continuou com os empregados, que já conheciam a estrada e eram de confiança do falecido marido.
    Foram muitos anos, nessa lida vai e volta, pelo mesmo caminho, onde criou laços de amizade.
    O fazendeiro ficou viúvo e casou com Regina. Ela já havia dado aos filhos boa formação. Dois engenheiros, um advogado, uma médica, uma professora.
    Regina deixou a vida de tropeira e passou a ser fazendeira. Um bom exemplo de coragem e determinação. Porque não ficou só chorando foi à luta e Deus a ajudou. Seu novo marido, era um homem bom e só tinha dois filhos, que o ajudavam na fazenda; quase não estudaram. Os filhos de Regina eram bem mais preparados. De tropeira viúva, com filhos, passou a ser dona da Fazenda Aliança de Regina & Romão.

    Mais um relato, da vida tropeira, esta do Sudeste.

    NHOZINHO XV.

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  5. Meus textos são tipo Crônica, coisa vivida por mim quando tropeiro no Piauí outros são ficção.
    Adão de Sousa Lina Embu Das Artes SP.

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