quarta-feira, 11 de junho de 2014

As ocas, habitações coletivas dos indígenas do Brasil

Tendo percorrido as missões jesuíticas na Bahia durante a década de oitenta do Século XVI, o Padre Fernão Cardim escreveu um interessante relato, a ser entregue ao Provincial da Ordem em Portugal, no qual inclui informações preciosas sobre um mundo que ia desaparecendo à medida que a colonização avançava: o dos povos indígenas sem nenhuma influência do contato com europeus.
Assim, descreve, por exemplo, como era uma habitação coletiva dos indígenas, antes que os nativos fossem aldeados em missões, sob a liderança dos padres da Companhia:
"Moravam os índios antes da sua conversão, em aldeias, em umas ocas ou casas mui compridas, de duzentos, trezentos ou quatrocentos palmos, e cinquenta de largo, pouco mais ou menos, fundadas sobre grandes esteios de madeiras, com as paredes de palha ou de taipa de mão, cobertas de pindoba, que é certo gênero de palma que veda bem água, e dura três ou quatro anos; cada casa destas tem dois ou três buracos sem portas nem fecho [...]." (¹)
Não tendo os índios sua própria escrita, não deixaram relatos próprios. Temos, portanto, que contar apenas com relatos de europeus. Os jesuítas, porém, estavam, nesse sentido, em situação privilegiada, já que tinham maior contato com a população nativa que outros colonizadores e, embora não deixassem de fazer suas descrições sob a ótica de europeus e religiosos, podem ser considerados confiáveis em muito do que escreveram. Não podemos, todavia, supor que todos os povos indígenas tivessem o mesmo tipo de moradia - a descrição de Cardim refere-se, naturalmente, apenas àquilo que ele conhecia.
Um fato que se destaca nessa descrição de uma oca, feita pelo Padre Cardim, é que, como habitação, não podia durar muito. Ora, sendo os índios nômades, isso não era um grande problema, pois fariam outra(s) quando se mudassem; ou já se mudavam porque as habitações se estragavam?
Segue o depoimento de Cardim, com uma descrição do interior das habitações indígenas que conheceu:
"Dentro nelas vivem logo cem ou duzentas pessoas, cada casal em seu rancho, sem repartimento nenhum, e moram duma parte e outra, ficando grande largura pelo meio, e todos ficam como em comunidade, e entrando na casa se vê quanto nela está, porque estão todos à vista uns dos outros, sem repartimento nem divisão; e como a gente é muita, costumam ter fogo de dia e de noite, verão e inverno, porque o fogo é sua roupa, e eles são mui coitados sem fogo." (²)
Pode sorrir, leitor; essas expressões antigas são, às vezes, muito divertidas. Mas prossigamos.

Ritual de sepultamento em aldeia indígena, vendo-se nela as longas ocas (⁵)

Para os europeus foi surpreendente constatar que os indígenas tinham poucas coisas que consideravam suas próprias - as armas estavam entre os poucos pertences individuais. Quase tudo era de uso coletivo e, por isso, de difícil compreensão para os colonizadores. A própria vida em comunidade, tão diversa daquela experimentada na Europa sob o conceito da propriedade privada, causava espanto, como podemos facilmente depreender do que escreveu Cardim:
"Parece a casa um inferno ou labirinto, uns cantam, outros choram, outros comem, outros fazem farinhas e vinhos, etc. e toda a casa arde em fogos; porém é tanta a conformidade entre eles, que em todo ano não há uma peleja, e com não terem nada fechado não há furtos; se fora outra qualquer nação, não puderam viver da maneira que vivem sem muitos queixumes, desgostos e ainda mortes, o que se não acha entre eles." (³)
Nos aldeamentos dos jesuítas na Bahia essas moradias foram preservadas, conforme assevera Cardim: "Este costume das casas guardam também agora depois de cristãos" (⁴). Não foi o que ocorreu nas reduções no sul do Brasil, nas quais os índios aldeados eram levados a viver segundo uma estrutura quase monástica, habitando cada casal uma pequena casa que era parte de uma aldeia onde toda a rotina se regulava pela estrita disciplina dos padres.

(1) CARDIM, Pe. Fernão, S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, p. 36.
(2) Ibid..
(3) Ibid., pp. 36 e 37.
(4) Ibid.,, p. 37.
(5) STADEN, Hans. Zwei Reisen nach Brasilien. Marburg: 1557. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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