sexta-feira, 13 de junho de 2014

Duas aranhas na literatura brasileira

Não sei quantas aranhas aparecem na literatura brasileira; tampouco sei se as há personagens importantes ou insignificantes. Só sei que conheço duas. Vamos a elas.
Vem a primeira de ninguém menos que Machado de Assis, em Quincas Borba:
"Que sabe a aranha a respeito de Mozart? Nada; entretanto, ouve com prazer uma sonata do mestre."
Ouve? Talvez por preguiça de mover-se a outro lugar; talvez goste. Como saber se Machado tinha razão?
Já a segunda aranha (que também, por suposto, nada devia saber de Mozart, nem de músico algum...), aparece em Os Bruzundangas, de Lima Barreto. Ora, na Bruzundanga, país fictício com notáveis semelhanças com um outro bem real, uma aranha deu-se à veleidade de fazer teia no gabinete de um ministro de Estado - pretexto para o autor discorrer sobre a enorme importância de um secretário de ministro de Estado:
"Creio que as aranhas, tanto as daqui como as da Bruzundanga, não têm em grande conta o cargo de Ministro de Estado. É de lastimar que insetos [sic] de tanto talento desconheçam a importância de tão sublimado bímano; entretanto, não está nos poderes humanos obrigá-las a respeitar o que respeitamos, senão devíamos fazê-lo, para que tais aracnídeos não procedessem como um deles procedeu irreverentemente com um ministro da Bruzundanga."
Sim, sim, sim, aranhas são classificadas entre os aracnídeos, não entre os insetos, embora tanto aracnídeos como insetos sejam artrópodes. Uma vez salvo o patrimônio lineano, é hora de abrir passagem a Lima Barreto para que venha nos contar o tal incidente:
"Caso foi que uma aranha comum, totalmente despida de qualquer notoriedade entre as aranhas, completamente sem destaque entre as suas iguais, teve o desaforo de pôr-se a tecer a sua teia no próprio teto do gabinete de um ministro da Bruzundanga e bem por cima de sua majestosa cadeira.
Houve, quando o trabalho ia adiantado, não sei que espécie de cataclismo, próprio ao universo das aranhas; e, tão forte foi ele, que um bom pedaço de labor do engenhoso articulado veio a cair em cima da sobrecasaca da poderosa autoridade da República da Bruzundanga.
Apesar do seu imenso poder e da sua forte visão de seguro guia de povos, o grave ministro não deu conta do desrespeito - involuntário, é verdade, mas desrespeito - de que acabava de ser objeto, por parte de uma miserável aranha, hedionda e minúscula.
Mas, não dando pelo fato, tratou de tomar o coupé para ir ao despacho coletivo, levando tão estranha condecoração nas costas, quando o secretário, chapéu na mão, todo mesuroso, pedindo licença, tirou a prova da indignidade do bichinho das vestes do seu amo. E ele já entrava no carro!...
[...] Ah!, Os secretários de ministro! Como são úteis!"
Lima Barreto escreveu nos tempos da República Velha, nos tempos em que a Capital (do Brasil, não da Bruzundanga) estava junto ao mar, nos tempos em que ministro de Estado tomava "coupé para ir ao despacho coletivo". Na Bruzundanga, é claro!
Como veem, senhores leitores, eram mesmo outros tempos.
Quase onipresentes, no entanto, as aranhas continuam a ouvir Mozart (talvez com menos frequência, infelizmente) e, cem anos mais tarde, talvez ainda sejam bastante atrevidas parar irem tecer suas moradias em lugares insólitos.


Veja também:

2 comentários:

  1. Que interessante, aranhas que apreciam Mozart. Hoje em dia terão poucas oportunidades para tal! Não conheço o segundo autor, mas gostei do estilo narrativo.
    Beijinho, uma doce semana
    Ruthia d'O Berço do Mundo

    P.S. Só suporto aranhas na literatura, felizmente é muito raro encontrar uma real

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    Respostas
    1. Sei de gente que tem aranhas como "animais de estimação". Por aqui, aranhas só em matas, com exceção das que são chamadas aranhas de jardim. Vivem em gramados, são pequenas e não trazem qualquer perigo. Parece que elas não gostam muito de áreas urbanas.
      No entanto, se houvesse alguma aranha doméstica que apreciasse Mozart, eu me encarregaria de tocar para ela... :-)))
      Mau, mau, acho que não vem nenhuma para não ter que me ouvir tocar.

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