sexta-feira, 20 de junho de 2014

O cofre do Juizado de Órfãos

As Ordenações do Reino - legislação portuguesa compilada e publicada no início do Século XVII - determinavam que, se um homem morresse e deixasse herdeiros ainda legalmente menores, podiam ficar os bens a cargo da mãe, se esta, segundo os magistrados, tivesse capacidade para tanto. Se não fosse esse o caso, era então indicado um tutor, que se encarregaria de gerir os negócios dos herdeiros até que, ainda segundo as leis da época, chegassem à idade de fazê-lo por si mesmos.
Ocorre que, às vezes, entendiam os magistrados que era mais adequado converter os bens em dinheiro, que deveria ser aplicado para assegurar que o patrimônio dos órfãos não sofresse dano. É aí que entra o tal cofre ou arca do Juizado de Órfãos. Dizia o Livro Primeiro das Ordenações, no Título LXXXVIII, § 31 (¹):
"Mandamos que o dinheiro dos órfãos se deposite em uma arca com três chaves, em poder de um depositário, pessoa abonada, que haverá em cada cidade, vila e concelho." (²)
E prosseguia, com mais detalhes, no § 32:
"... E mandará fazer à custa do dinheiro dos órfãos uma arca com três chaves de diferentes guardas, das quais terá o Juiz dos Órfãos uma, o Depositário outra e o Escrivão dos Órfãos outra; [...] E o escrivão que tiver a dita chave, terá na arca dois livros, um para a receita e outro para a despesa do dinheiro que se houver de meter e tirar dela, os quais livros serão encadernados e de tantas folhas e intitulados um como o outro, e as folhas serão contadas e assinadas, segundo forma de nossas Ordenações, sob as penas nelas conteúdas, e serão assinadas pelo provedor da Comarca, os quais livros não se tirarão da arca, senão quando se neles houver de escrever."
Em São Paulo, nos tempos do Brasil Colonial, as mesmas Ordenações deveriam estar em vigor (às vezes, acontecia...). Portanto, tinha São Paulo seu próprio cofre do Juizado de Órfãos, com suas três chaves, de acordo com Pedro Taques de Almeida Paes Leme (³), pelos menos a partir de começos do Século XVIII:
"João Dias da Silva, foi nobre cidadão de São Paulo, em cuja república teve grande parte e voto respeitoso nas matérias do governo civil ou do real serviço, tratando-se por assembleia. Foi juiz de órfãos por provisão de Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, pela qual tomou posse em 16 de julho de 1711, e estando servindo teve provisão régia para servir até haver proprietário, e nela se faz menção de ser o dito João Dias o que mandou fazer cofre de três chaves para segurança dos órfãos."
Ora, sucede que, em grande parte do Brasil daqueles tempos, havia um problema crônico de falta de dinheiro amoedado, que obrigava a população a viver fazendo trocas diretas de mercadorias. Um grave inconveniente, é claro, que tornava o acesso ao Cofre dos Órfãos, onde havia "dinheiro de verdade", um privilégio muito disputado. É o que conta Affonso de E. Taunay:
"O pouco dinheiro amoedado se concentrava nas mãos de alguns argentários e no cofre de órfãos, cujo papel na vida econômica do burgo pode ser comparado servatis servandis ao dos estabelecimentos bancários hodiernos.
Quase sempre os bens dos herdeiros menores são vendidos em praça, a fim de se evitarem "descaminhos e defraudos", e o produto aplicado em empréstimos vencendo juros de 8% ao ano. Obrigava o prestamista sua pessoa e bens móveis e de raiz havidos e por haver, comprometendo-se a pagar a dívida ao pé do juízo, no cabo e fim de um ano, sem contradição alguma e sem a isto pôr dúvida nem embargo algum. Os empréstimos exigiam ainda a garantia pessoal de um fiador e principal pagador. Tão disputado o numerário que nunca permanecia no cofre do juízo, aparecendo logo quem o pretendesse." (⁴)
Vê-se, pois, que do dinheiro dos órfãos era feito um grande negócio, principalmente em São Paulo, na qual a morte de homens com filhos menores não era nada incomum. Metiam-se os pais interior adentro para apresamento de índios ou procura de ouro, e muitas vezes tudo o que voltava eram os ossos em um saco de couro, para sepultamento em alguma igreja; a morte de mulheres no parto era coisa corriqueira, de modo que, ao longo da vida, não raro um homem casava-se várias vezes, e seguia tendo filhos enquanto conseguia, o que resultava, eventualmente, em homens bastante velhos com filhos muito pequenos e, daí, uma orfandade precoce; as doenças, na época, levavam muita gente à morte por absoluta falta de tratamento. Disso se conclui que o número de órfãos não era assim tão exíguo. Por outro lado, como deveria ser pobre a povoação em que uma parte substancial do dinheiro amoedado disponível provinha, muitas vezes, do Cofre do Juizado de Órfãos!

(1) Ordenações do Reino, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) Concelho (sim, com "c"), nome dado à divisão municipal portuguesa.
(3) De acordo com a Nobiliarchia Paulistana.
(4) TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 115.


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