segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Um cardápio pra lá de estranho

Alguns itens curiosos incluídos na alimentação dos missionários jesuítas que viviam no Brasil durante o Século XVI



Anchieta no Brasil, representado
 entre animais (¹)
É certo que europeus que andaram pelo Brasil no Século XVI tiveram que engolir, literalmente, muita coisa estranha, e isso por um fator bem simples: sobrevivência. Muitos dos antigos hábitos e costumes lusitanos quanto à alimentação ficaram no Reino, já que em terras brasílicas quase nada se achava que parecesse com a comida dos portugueses. Com o tempo, diversos cultivos europeus foram adaptados à América, e animais criados para abate, como bois, cabras, ovelhas e porcos, foram trazidos e multiplicados nos domínios coloniais.
Mas enquanto isso não acontecia...
Enquanto isso não acontecia, colonizadores, marinheiros, funcionários públicos, condenados ao degredo,  missionários (particularmente os jesuítas), com criatividade e, por vezes, com inspiração nos hábitos indígenas, trataram de desenvolver o que poderíamos chamar de "cardápio colonial de emergência". Gostaram do nome, leitores? Aceito sugestões de quem tiver uma ideia melhor, mas, com base em uma carta escrita por José de Anchieta, estando ele em São Vicente no final de maio de 1560, passo a mostrar em que consistiam, vez por outra, as especialidades culinárias de quem estava determinado a sobreviver no Novo Mundo. 

1. Onças
"Encontram-se também entre nós as panteras, das quais há duas variedades: umas são cor de veado, menores essas e mais bravias; outras são malhadas e pintadas de várias cores, destas encontram-se em todos os lugares. Os machos, pelo menos, excedem no tamanho a um carneiro, embora grande, pois as fêmeas são menores. São em tudo semelhantes aos gatos e boas para se comerem, o que experimentamos algumas vezes (...)." (²)

2. Tamanduás
"Há também outro animal de feio aspecto, a que os índios chamam tamanduá. (...) Tem o pescoço comprido e fino, cabeça pequena e mui desproporcionada ao tamanho do corpo, boca redonda, tendo a medida de um ou, quando muito, dois anéis, a língua distendida tem o comprimento de três palmos só na porção que pode sair fora da boca, sem contar a que fica para dentro (que eu medi), a qual costuma, pondo-a para fora, estender nas covas das formigas, e logo que estas a enchem por todos os lados, ele a recolhe para dentro da boca, e esta é a sua refeição ordinária (...). É saborosíssimo; dirias que é carne de vaca, sendo todavia mais mole e macia." (³)

3 . Macacos
"Há uma infinita multidão de macacos, dos quais se contam quatro variedades [sic], todas elas mui próprias para se comer, o que muitas vezes provamos; é comida mui saudável para doentes [sic!]." (⁴)

4. Tatus
"Existe também outro animal muito comum entre nós, chamam-no tatu, que habita pelos campos em covas subterrâneas, e quase semelhante aos lagartos pela cauda e cabeça [sic]. (...) É de delicioso sabor." (⁵)

5. Papagaios
"Os papagaios são mais comuns aqui do que os corvos, e de diferentes espécies, todos bons para se comerem (...)." (⁶)

Muitos outros autores, tanto do Século XVI como dos subsequentes, relataram, em seus escritos, estes e outros usos alimentares, mas acredito que os que foram citados aqui já são suficientes como amostragem.
É evidente que no Século XVI não havia na Terra de Santa Cruz/Brasil nenhuma entidade ou órgão público em defesa da fauna nativa, tampouco estavam os colonizadores preocupados com a eventual extinção de algumas espécies, até porque, no Continente Americano, tudo se dizia "infinito". Portanto, na falta da alimentação habitual, não havia muito escrúpulo em mandar para a panela qualquer coisa que parecesse estar em condições virar comida, fosse ela boa ou má.

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Vida do Venerável Padre José de Anchieta. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1672. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S. J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 116.
(3) Ibid., p. 118.
(4) Ibid., p. 120.
(5) Ibid., pp. 120 e 121.

2 comentários:

  1. A expressão cardápio colonial de emergência é magistral e não merece substituição. Quando a fome aperta, a criatividade aumenta.
    Abraço, um doce Setembro, o mês de todos os recomeços
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    Respostas
    1. Hahaha, foi preciso muita criatividade. Mas sobreviveram e, naquele contexto, era o que mais importava.

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