quarta-feira, 21 de outubro de 2015

A primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil

O Brasil, ao contrário do que aconteceu na América Espanhola, nunca teve um tribunal fixo do Santo Ofício da Inquisição. Seria perda de tempo: o vasto território colonial era escassamente habitado, e cada pequeno núcleo de colonos ficava, em geral, muito longe de qualquer outro. Por isso, a presença do Santo Ofício em terras do Brasil aconteceu através das chamadas "Visitações" que, de um modo muito simples, podem ser descritas como uma versão ambulante do Tribunal, com uma estrutura mínima de funcionários: bastava haver um visitador, um notário e um meirinho. Quando comparadas à complexa estrutura inquisitorial estabelecida em Portugal e Espanha, as Visitações eram o que havia de mais modesto.
Ora, a primeira Visitação, tendo à frente o visitador Heitor Furtado de Mendonça, principiou na Bahia, na época capital do Brasil português, com a publicação dos chamados Editos da Fé e da Graça em 28 de julho de 1591. A população da Cidade do Salvador e adjacências, reunida na Sé, em cerimônia religiosa que se reputava de comparecimento obrigatório, foi informada de que tinha trinta dias de prazo para confissões e acusações. Mandava-se também que todos os livros existentes na cidade e/ou listas de livros das bibliotecas (!) fossem apresentados ao inquisidor, que pretendia verificar se não havia algum que constasse no Index Librorum Prohibitorum...
Para quem vive no Século XXI isso tudo pode parecer um grande absurdo; na época, tinha início uma temporada de medo para a população. As pessoas corriam a confessar mesmo coisas irrisórias, temendo que, antes disso, alguém fizesse uma denúncia do suposto crime contra a fé. Seria longo demais expor aqui toda a lista de confissões, mas vale a pena mencionar alguns casos, para que os leitores tenham uma ideia nítida de coisas que ocorriam no Brasil no final do Século XVI:
  • O primeiro a aparecer diante do visitador foi um padre, que confessou ter praticado "tocamentos desonestos" com umas quarenta pessoas (esse indivíduo foi citado em muitas outras confissões);
  • Várias pessoas apareceram para confessar ou acusar alguém de "práticas judaizantes", tais como não usar banha de porco ou mudar a roupa de cama e mesmo tomar banho antes do sábado;
  • Uma pessoa confessou ter dito que "não devia nada a ninguém, nem a Deus";
  • Um mestre de açúcar confessou que, sendo casado na Madeira, viera ao Brasil e casara de novo;
  • Uma mulher declarou ter comido abacaxi antes de receber a comunhão;
  • Um estudante de dezessete anos confessou ter-se envolvido com o padre que fizera a primeira confissão (o visitador perguntou ao rapaz se mais alguém sabia do caso);
  • Um homem confessou ter dito que não acreditava no Evangelho de S. João;
  • Um padre mameluco confessou ter tido envolvimento sexual com duas escravas de seis ou sete anos [sic!!!];
  • Duas mulheres confessaram relacionamento homoafetivo;
  • Um homem que fora prisioneiro de ingleses confessou que, "por medo", havia presenciado serviços religiosos protestantes;
  • Uma pessoa alegou que "por curiosidade", entrara em uma sinagoga;
  • Um estudante confessou que ouvira dizer e repetira que "dormir homem com mulher não era pecado";
  • Um rapaz confessou que tivera práticas sexuais com três pessoas: um seu irmão, um mameluco e um homem que iria ser ordenado ao sacerdócio;
  • Várias pessoas confessaram blasfêmias, assim como práticas rotuladas como feitiçaria.
Essas confissões aparecem nos registros da Visitação a Salvador e adjacências. O visitador e seus ajudantes foram, posteriormente, ao Recôncavo Baiano, e vale dizer que, em linhas gerais, as confissões versaram lá sobre os mesmos temas. Terríveis tempos, esses, quando, por medo de prisão, tortura e mesmo de uma morte cruel, as pessoas corriam a revelar, diante de um burocrata da Igreja a quem se conferiam poderes quase ilimitados, assuntos que, em sua maioria, não deveriam sair dos limites da vida privada.


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