quarta-feira, 2 de março de 2016

Daguerreótipos

"O procurador vivera até ali na ignorância do que podia valer a pintura, salvo para fazer alguns retratos, e isto mesmo nem era já aplicação sensata depois do daguerreótipo, então em plena posse de ambos os mundos."
Machado de Assis, Silvestre

Nos anos trinta do Século XIX havia uma porção de gente fazendo experimentos cujo objetivo era a criação de técnicas que permitissem o registro de imagens - aquilo a que hoje, genericamente, chamamos fotografia. Sim, tratava-se de capturar a luz que entrava em uma caixa através um pequenino orifício (câmara escura), mas o grande problema da época era achar um modo de gravar a imagem produzida, tornando-a permanente. 
Um desses pesquisadores foi Louis-Jacques-Mandé Daguerre, que, entre 1837 e 1838, desenvolveu o método de revelação com mercúrio de placas de prata iodadas, conhecido como daguerreotipia. As imagens assim obtidas foram, por consequência, chamadas "daguerreótipos". O processo de Daguerre, mediante longa exposição (às vezes, até quinze minutos) produzia uma imagem "em positivo", mas avanços posteriores permitiram uma redução significativa no tempo de exposição e a reprodução das imagens sobre papel. Para os padrões da época, o resultado era considerado muito bom.
O fato é que, com este ou com outros métodos, a nascente fotografia despertava grande interesse; virou moda, e até símbolo de distinção social, fazer-se retratar mediante um daguerreótipo. 
O Almanaque Laemmert de 1854 trazia o seguinte anúncio, relativo a uma "Oficina de Daguerreótipo" existente no Rio de Janeiro, capital do Império do Brasil:
"Este estabelecimento, dirigido pelo distinto artista A. Verre, é o único nesta Corte, para dar aos retratos sobre papel e marfim, esse brilho no colorido, esse bem acabado no trabalho que mostra à primeira vista o talento do retratista e a obra tocada por mãos de mestre: a oficina está aberta todos os dias das 10 horas da manhã às 3 da tarde." (¹)


Após essa generosa exibição de modéstia, será útil recordar que a mesma edição do Almanaque trazia ainda como anunciantes outros três estabelecimentos dedicados à fotografia, sendo um deles também na rua do Ouvidor (como o do Sr. A. Verre), outro na rua dos Latoeiros e o último na rua dos Ourives.
Muitos profissionais que trabalhavam em estúdios fotográficos no Brasil do Século XIX eram estrangeiros. O pintor François Biard, que esteve no Brasil entre 1858 e 1859, considerou que aprender fotografia seria útil para ajudá-lo a registrar imagens do País, sempre que não pudesse fazê-lo com pincéis e tintas. Assim, arranjou um equipamento e tratou de começar seus experimentos, que se revelaram um tanto desastrados, a princípio, mas que, afinal, acabaram sendo bastante produtivos. (²). Enquanto viajava, andava à procura de fotógrafos, para, através deles, travar contato com novas técnicas ou adquirir material fotográfico (o que, naquele tempo, significava mais ou menos o mesmo que dispor de um laboratório de química). Numa dessas ocasiões, anotou em seu registro de viagem (³):
"Vim a conhecer, por intermédio do Sr. Costa, um francês que chegara de Lima; era relojoeiro e tirava daguerreótipos." (⁴) 

François Biard fotografando (⁵)
O que há de muito interessante sobre este relato é que o encontro ocorreu em Manaus, que era, então, uma pequenina povoação, antes que o surto de exportação de borracha fizesse dela um centro importante às margens do rio Negro. Ou seja, era uma prova acabada de que a fotografia gerava interesse, fazia muitos adeptos, dava lucro e suscitava um novo ramo artístico, mesmo em pequenas localidades. 

O pintor François Biard tendo, à esquerda, seu equipamento de fotografia (⁶)

(1) LAEMMERT, Eduardo. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1854. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1854, p. 522.
(2) Biard conjecturava que, em alguns pontos da floresta amazônica, o seu equipamento de fotografia provavelmente era o primeiro que chegava.
(3) Os desenhos em (5) e (6) são de E. Riou, a partir de esboços do próprio Biard.
(4) BIARD, Auguste François. Dois Anos no Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 164.
(5) BIARD, François. Deux Années au Brésil. Paris: Hachette, 1862, p. 569.
(6) Ibid., p. 333.


Veja também:

2 comentários:

  1. O que uma pessoa aqui aprende, Marta. E sem ser necessário daguerreotipar. :)
    Gratíssimo.

    Uma boa semana :)

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    Respostas
    1. Convenhamos: fotografia era, antigamente, um enorme trabalho, para não dizer uma aventura. A era digital tornou as coisas mais fáceis, de modo que até fazemos fotos com a aparência dos antigos daguerreótipos. Sem toda aquela complicação, é certo.

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