domingo, 17 de outubro de 2010

Árvores antigas, monumentos verdes - Parte 2

"As florestas cintilavam. Gigantescos paus-d'arco bracejavam por entre as árvores vizinhas para mostrar bem alto a sua coroa de oiro; mas as palmeiras não se deixavam vencer e reagiam vitoriosamente por entre a espessura da mata, agitando no ar o seu penacho indígena; a gameleira brava procurava erguer a cabeça engrinaldada de heras e parasitas; pinheiros seculares, cedros mais velhos que a religião, paineiras, angicos, perobas, todos os gigantes da selva, pelejavam para sobressair!"
Aluísio Azevedo, O Homem

Árvore em praça na cidade de
São Pedro - SP
Chama-se dendrocronologia ao método de datação baseado no estudo dos anéis que constituem o tronco de uma árvore. Essa técnica pode ser utilizada com diversos objetivos, em várias ciências, incluindo-se o fato de que, fornecendo informações sobre as condições climáticas de uma determinada época, permite aos historiadores entender melhor os acontecimentos. Se sabemos, por exemplo, que em certa década houve poucas chuvas, presume-se que as colheitas tenham sido prejudicadas e podemos acrescentar elementos novos ao estudo das revoltas sociais do período, particularmente em casos nos quais a documentação escrita é escassa ou inexistente. Não se trata de determinismo, é só uma ferramenta a mais (aliás, muito útil) para a análise da complexa trama que engloba os eventos da saga humana na Terra.
Mudando de assunto, ou nem tanto, quando olhamos à nossa volta vemos árvores de proporções "normais", para os nossos padrões, mas que poderiam ser consideradas bem nanicas pelo que se via no Brasil há alguns séculos. Em sua obra Til, José de Alencar assim descreve as matas originais no interior de São Paulo:
"Ficava no seio de uma bela floresta virgem, porventura a mais vasta e frondosa, das que então contava a província de S. Paulo, e foram convertidas a ferro e fogo em campos de cultura. Daquela que borda as margens do Piracicaba, e vai morrer nos campos de Ipu, ainda restam grandes matas, cortadas de roças e cafezais. Mas dificilmente se encontram já aqueles gigantes da selva brasileira, cujos troncos enormes deram as grandes canoas, que serviram à exploração de Mato Grosso." (¹)
O próprio Alencar, escrevendo na segunda metade do século XIX, menciona que essa descrição tem como base a Corographia Brazilica, afirmando que "Mediam essas canoas, segundo Ayres do Casal, 80 palmos de comprimento, 7 1/2 de largura, e 5 de altura".
Exagero, talvez? Teriam efetivamente as matas brasileiras árvores de tais dimensões que possibilitassem, individualmente, a construção de canoas tão avantajadas? Um outro testemunho parece dizer que não. Em Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829 encontramos estas duas ilustrações de Hércules Florence: (²)

Trabalhadores cortam árvore de grandes dimensões para fazer uma canoa (segundo H. Florence)

Trabalhadores fazem canoa com o tronco de uma única árvore (H. Florence)

Árvore arrancada para a construção de rodovia,
interior de São Paulo
Por suposto há, ainda, árvores gigantescas nas matas brasileiras. Mas nas regiões mais urbanizadas, particularmente no Sudeste, sua desaparição não é recente. Tendo feito suas viagens entre 1816 e 1822, Saint-Hilaire escreveu, falando de certo lugar do Vale do Paraíba, próximo a Guaratinguetá:
"À esquerda da colina onde fica situada a cidade, existe outra, coberta ainda de mata virgem, e acima dela, à beira do mesmo rio, algumas cabanas esparsas, entremeadas de cerrados grupos de bananeiras e laranjeiras. A terceira colina eleva-se à esquerda da cidade. Era antigamente, como a primeira, coberta de mata, dela se cortou parte. Substituíram-na por engenho e plantações." (³)
Não discuto aqui questões, por certo justíssimas, da preservação e do manejo sustentável de florestas. Muito menos imagino que nunca uma árvore possa ou deva ser cortada. Há necessidade de lavouras para atender à demanda por alimentos. A ideia foi mostrar que o "cenário vegetal" do Brasil já foi, em um tempo historicamente não muito longo, bem diverso do que se vê atualmente, propondo maior cuidado na preservação do que chamei de "monumentos verdes" - árvores muitas vezes centenárias, sobreviventes de antigas matas, que ousaram coexistir em meio à urbanização, ou espécimes cultivados que, pela sua longevidade e beleza, tornaram-se patrimônio das comunidades em que cresceram. Servem, no mínimo, para recordar o que já perdemos, e, sendo mortais, como nós, são mais instrutivas que monumentos de pedra, erigidos para dar uma falsa impressão de imortalidade para apenas uns poucos dentre os homens.

(1) ALENCAR, José de Til, vol. 1. Rio de Janeiro: Garnier, 1872, pp. 37 e 38.
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília, Ed. do Senado Federal, 2007, pp. 235 e 236.
(3) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. do Senado Federal, 2002, pp. 80 e 81.

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