terça-feira, 30 de novembro de 2010

Mulheres no mercado de trabalho e questionamentos sobre a inteligência feminina

Se observarmos a História do Brasil, verificaremos que, em se tratando de mulheres pobres ou escravas, nunca houve muito questionamento quanto à sua óbvia utilização como mão de obra, fosse o país uma colônia ou, já nação independente, império. O mesmo pode ser dito em relação à mulher imigrante. O diferencial está em relação às mulheres de uma certa posição social e econômica, do que poderíamos talvez chamar de "elite branca" (com milhões de aspas). Dessas, esperava-se, em geral, que fossem essencialmente "esposas e mães", repetindo o suposto modelo de incontáveis gerações, ou seja, contribuindo para preservar o status quo.
Mas, você que se interessa por História, sabe muito bem que tudo muda. E, nesse sentido, a mudança veio, ainda que a reboque, no Brasil da primeira metade do século XX. A Primeira Guerra Mundial foi, na maior parte da Europa e nos Estados Unidos, um marco decisivo em termos de inserção da mulher no mercado de trabalho. Compreende-se: por estarem os homens no front, havia vagas precisando, desesperadamente, de que alguém as ocupasse. Com o fim do conflito, pelo menos no caso dos Estados Unidos, a expansão econômica de parte dos anos vinte garantiu que o processo não fosse revertido. E, se a crise pós 1929 significou o fim de muitos postos de trabalho tanto para homens como para mulheres, a subsequente eclosão da Segunda Guerra Mundial consolidaria a atuação profissional das mulheres. Pelo menos, na parte mais industrializada do planeta.
Por aqui a coisa corria com uma certa desconfiança, num ritmo, digamos, mais lento. Mas acontecia. O que suscitava, na imprensa, vez por outra, alguma referência maldosa, pelo menos segundo o julgamento a partir de nossas concepções atuais. Quer ver? Vão aqui duas "anedotas", uma publicada em 1918 e outra um ano após, em 1919:

"- Escute, meu caro, ficarei contentíssima de me tornar sua esposa, mas com o que não me conformo é com deixar o meu emprego. Atualmente eu ganho trezentos mil réis por mês.
- Não, não, minha querida, não precisa deixar emprego... Assim viveremos melhor...
- Por quê?
- Eu deixo o meu. Eu ganho somente 150!" (¹)

Vale a observação de que, na época, muitos porta-vozes do conservadorismo argumentavam que, se as mulheres trabalhassem fora de casa, seria o fim do casamento, e chegavam até a, de certa forma, ameaçar as jovens com esse "fantasma"... Curiosamente, as mulheres pobres trabalhavam há muito tempo, e nem por isso haviam deixado de se casar. É fato consumado que o discurso conservador tende a ganhar força em épocas de estagnação econômica, perdendo parte de seu sentido em momentos de exuberância do mercado de trabalho. Mas vamos adiante. Segunda anedota:

"Um esfarrapado subiu a um primeiro andar, onde está instalado um consultório médico. Bateu à porta, e veio abrir-lha uma senhora.
- Ó minha senhora! era uma grande caridade que me fazia, se me pedisse, para mim ao sr. doutor, um par de calças velhas, que já não lhe fizessem faltas!
- O sr. doutor sou eu, respondeu, sorrindo, a médica." (²)

Ah, leitor, mas isso é leve. Aberração mesmo é isto aqui:


Olhe, leitor, e olhe bem.  Tem alguma ideia sobre o que seja essa engenhoca? Vou ajudá-lo. Diz a legenda:
"Aparelho destinado a medir a capacidade cerebral das mulheres." (³)
Sim, você leu corretamente. Não tenho mais nada a dizer.

(1) A CIGARRA, 24 de dezembro de 1918.
(2) A CIGARRA, 1º de dezembro de 1919.
(3) A CIGARRA, 1ª quinzena de novembro de 1932.

Observação importante: Comentários de caráter sexista estão, desde já, polidamente rejeitados.



Veja também:

domingo, 28 de novembro de 2010

Futebol no Brasil no início do Século XX - Jogadas um pouco desastradas

Chega-se hoje, leitor, à última postagem desta série sobre futebol no Brasil no início do século XX, na qual veremos umas poucas jogadas um tanto estranhas. Nada de ilusões - esses lances desastrados não eram apanágio apenas dos primeiros futebolistas. Basta ter a paciência de assistir a qualquer partida de equipes menos brilhantes e veremos coisa parecida. Mas vamos às  três fotos, que ocuparam toda uma página em A Cigarra, edição de 29 de agosto de 1914:


Vê-se, antes de mais nada, o título: "As Peripécias do Foot-Ball". Dizia a legenda: "Interessantes instantâneos tirados no Velódromo Paulistano, por ocasião dos "matches" disputados pelos diversos clubs filiados à "Associação Paulista dos Sports Athleticos", com a "Squadra Representativa Italiana" e nos quais se apreciam curiosas posições."
Já fizemos referência em postagem anterior à visita da Squadra Representativa Italiana ao Brasil. Resta, numa breve análise, constatar que, se o futebol crescera muito desde o primeiro campeonato paulista (em 1902), a ponto de ocupar páginas inteiras de revistas importantes, inegavelmente ainda despertava um certo estranhamento, ao menos em parte do público, pelas jogadas algo bizarras. Mas não estaria aí um pouquinho da graça do esporte?


quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Futebol no Brasil no início do Século XX - Corrida de touros?

É verdade que o público estava, no início do século XX, acostumado a atividades esportivas tais como remo, canoagem, esgrima ou hipismo, nas quais havia pouco ou nenhum contato físico; é verdade, também, que o futebol, com seus praticantes disputando cada jogada intensamente e com  muito contato, podia causar alguma estranheza nas plateias menos habituadas à modalidade. Todavia, o que lemos nesta pequena notícia que transcrevo, a seguir, dá uma ideia do que podia andar acontecendo em algumas partidas. Veja, leitor, começa como quase todas as notinhas futebolísticas da época:
"O match São Bento versus Ypiranga atraiu ao Velódromo numerosa e seleta concorrência.
Tratava-se do encontro entre duas equipes poderosas e havia dúvida quanto ao resultado. O match ia dar trabalho aos torcedores. Durante todo o jogo os dois clubs se portaram valorosamente. Foi uma constante alternativa, em que a vitória pairou ora sobre um, ora sobre outro club. O resultado foi um empate entre as duas equipes. Durante o match, os jogadores que mais se distinguiram foram: do São Bento, Irineu, José Pedro e Montenegro; do Ypiranga, Friedenreich, Alencar e Xavier. Este último podia ter sido o maior auxílio para a sua equipe, se abandonasse o jogo pessoal, que é pouco produtivo."
Não, não acaba aqui. Leia mais:
"Quanto aos incidentes desagradáveis dois dois últimos matches estamos certos que não mais se repetirão.
É preciso não permitir que o jogo de foot-ball se transforme em corrida de touros." (¹)
Corrida de touros? Quem escreveu em 1914 não cuidou em dizer o que teria motivado essa observação, já que o assunto devia ser voz corrente - nós, em 2010, é que não sabemos o que realmente aconteceu. Teria sido algum desentendimento entre torcedores? Ou a "tourada" teria corrido solta dentro das "quatro linhas"?
Bem, não temos certeza, mas podemos ao menos conjecturar o que significaria, logo no início da notícia, dizer que o match atraiu "numerosa e seleta concorrência". Talvez fosse um modo de dizer que, nas partidas anteriores, houvera problemas porque o público não era adequado... Ou seria ironia?
Esses fatos davam sobejos motivos aos detratores do futebol. Lima Barreto, que já mencionei em uma postagem anterior, escreveu:
"Nos bondes, nos cafés, nos trens não se discutia senão futebol. Nas famílias, em suas conversas íntimas, só se tratava do jogo de pontapés. As moças eram conhecidas como sendo torcedoras de tal ou qual clube. Nas segundas-feiras, os jornais, no noticiário policial, traziam notícias de conflitos e rolos nos campos de tão estúpido jogo; mas, nas seções especiais, afiavam a pena, procuravam epítetos e entoavam toscas odes aos vencedores dos desafios." (²)
E mais:
"Sendo assim, o nosso Conselho Municipal derrama-se, esparrama-se, derrete-se em favores aos moços de mais de quarenta anos que se dão ao sacrifício de dar pontapés numa bola, para desenvolvimento dos respectivos mollets e gáudio das damas gentis que, assistindo-lhes as performances aprendem ao mesmo tempo o calão dos bairros escusos, com cujos termos os animam nas pugnas. É verdade que essas singulares vestais dos nossos modernos coliseus, às vezes, engalfinham-se no correr da luta. É que elas têm partido: uma é pelo leão do Atlas e a outra é pelo retiário." (³)
E com esse engalfinhar-se das damas (ou seriam vestais?), termino a postagem, apenas dizendo que Lima Barreto, que morreu em 1922, não viu quase nada em se tratando de mau comportamento de atletas e torcedores. Não viu o público de estádios completamente lotados a berrar contra as respeitáveis mamães dos árbitros, dos atletas e dos treinadores, não viu torcidas em fúria invadindo gramados, cercando ônibus de jogadores ou atirando pedras nos adeptos de outros times, não viu tiroteios às portas das praças de esportes, não viu jogadores demonstrando, para agredir oponentes, habilidades dignas de outras modalidades. Teria ficando assombrado com tudo isso. Talvez esboçasse um "não falei?".
Mas também não viu o congraçamento de países, em muitos casos adversários em tudo o mais, disputando civilizadamente competições esportivas, não viu o papel educativo que as atividades esportivas desempenhariam, nem mesmo a importância que o futebol acabaria tendo, no Brasil, em termos de construção de algum tipo de identidade nacional, por frágil que seja. Como em quase tudo, temos pelo menos dois lados nessa história, é apenas uma questão de escolha e ponto de vista.

(1) A CIGARRA, 15 de junho de 1914.
(2) LIMA BARRETO. Marginália
(3) LIMA BARRETO. Vida Urbana  - publicado originalmente em ABC, 26 de agosto de 1922.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Futebol no Brasil no início do Século XX - Os uniformes dos jogadores

Se, na postagem anterior, vimos os trajes usados pelos torcedores, nesta trataremos dos uniformes com que os atletas desfilavam suas habilidades a cada partida. Não, não imagine as atuais grifes esportivas (que, diga-se de passagem, demoraram a ter suas marcas estampadas nas camisas e demais peças do vestuário típico da modalidade); ainda assim, um "estilo" estava claramente a desenvolver-se. É só observar:


"O team do Fluminense Foot-Ball Club que disputou no Velódromo desta capital, um match interestadual com o Club Athletico Paulistano, vencendo-o por dois goals a um." (¹)


"Aspectos do Velódromo Paulistano, por ocasião de um dos matches disputados entre a "Squadra Representativa Italiana" e um dos clubes filiados à Associação Paulista dos Sports Athleticos. Vê-se, no centro, o "team" italiano." (²)


"Instantâneos tirados no Velódromo Paulistano por ocasião dos últimos matches disputados entre a "Squadra Representativa Italiana" e os clubs filiados à Associação Paulista dos Sports Athleticos. Vê-se no centro o valoroso scratch Paulistano e Scottish Wanders, que bateu o team italiano duas vezes, a última das quais por cinco a um." (²)


"O team do "Torino Foot-Ball Club", que se bateu, nesta capital, com os clubs filiados à Liga Paulista de Foot-Ball, saindo vencedor em todos os "matches" que disputou aqui." (²)

Eis aí, leitor, o fato de que, em 1914, quando vir da Europa ao Brasil significava, necessariamente, uma demorada viagem de navio, estavam algumas equipes brasileiras a jogar partidas internacionais, recebendo a visita de times importantes, com resultados não de todo maus, isso sem falar dos jogos entre equipes de diferentes Estados, lançando as bases de famosas rivalidades que ainda persistem. Ah, quanto aos uniformes, é bom saber que, pouco a pouco, os calções foram ficando mais curtos, até que, no início da década de 1990, com a introdução do uso sob o calção de uma bermuda térmica colante, chamada cool-flex (que poderia evitar lesões musculares), esse encurtamento foi detido, fazendo com que os calções voltassem a ter o comprimento próximo aos joelhos dos jogadores. Nesse caso, além de estética, a mudança foi também tecnológica, como muitas outras que ocorreram nas camisas, meiões, chuteiras e equipamentos de proteção, resultando em aperfeiçoamento das condições para a prática do esporte.

(1) A CIGARRA, 15 de junho de 1914.
(2) A CIGARRA, 29 de agosto de 1914.


domingo, 21 de novembro de 2010

Futebol no Brasil no início do Século XX - Os torcedores

"- Papai, você me dá cinco mil-réis, para eu ir hoje ao futebol?
O velho olhou o filho. Olhou a sua adolescência estúpida e forte, olhou seu mau feitio de cabeça; olhou bem aquele último fruto direto de sua carne e de seu sangue; e não se lembrou do pai. Respondeu:
- Dou, meu filho. Dentro em pouco, você terá."
Lima Barreto, Histórias e Sonhos

Esta postagem irá revelar a você, leitor, que traje seria apropriado para assistir a um "match" em 1914 - fica como orientação, para o caso de alguma viagem no tempo... Observe estas imagens, publicadas em um número de "A Cigarra":
A legenda diz: "Aspectos das arquibancadas do Velódromo, por ocasião dos últimos matches de foot-ball ali realizados pela Associação Paulista de Sports Athleticos. Fotografias tiradas especialmente para "A Cigarra"."
Senhoras, senhores, moças, rapazes, meninas e meninos, todos bem compostos, usando os imprescindíveis chapéus (até com plumas...), tendo os olhos colados na bola que não vemos na foto, mas bem podemos imaginar. Mas, como já disse em postagem anterior, não devemos nos enganar com essas imagens impecáveis divulgadas para a "boa sociedade", supondo que toda gente assistia às partidas com a mais irreprochável conduta. Aliás, havia quem não tivesse opinião das mais favoráveis sobre o novo esporte. Que se veja, sobre isso, o que escreveu Lima Barreto:
"Das coisas elegantes que as elegâncias cariocas podem fornecer ao observador imparcial, não há nenhuma tão interessante como uma partida de football.
É um espetáculo da maior delicadeza em que a alta e a baixa sociedade cariocas revelam a sua cultura e educação." (*)
É claro que o autor está sendo irônico; basta prosseguir na leitura, notando o que o escandalizado escritor afirma sobre a conduta das senhoras torcedoras:
"As senhoras que assistem, merecem então todo o nosso respeito.
Elas se entusiasmam de tal modo que esquecem todas as conveniências.
São as chamadas “torcedoras” e o que é mais apreciável nelas, é o vocabulário.
Rico no calão, veemente e colorido, o seu fraseado só pede meças ao dos humildes carroceiros do cais do porto.
Poderia dar alguns exemplos, mas tinha que os dar em sânscrito.
Em português ou mesmo em latim, eles desafiariam a honestidade: e é, por um, que me abstenho de toda e qualquer citação elucidativa." (*)
Ora, meu leitor, malgrado os desafetos, é preciso dizer que o futebol ia ganhando público, começava a tornar-se espetáculo, podia cobrar ingressos e, paulatinamente, abandonar os modos britânicos para fazer-se brasileiro.
A propósito, essa curiosa especiação, o surgimento de um jeito brasileiro de jogar, em parte pela distância física e de comunicação em relação ao centro originador do esporte, traria ainda resultados excelentes. Era inútil invectivar jogadores e torcedores. A mania de chutar bola caíra, irreversivelmente, no gosto do povo, ocupando espaço cada vez maior na imprensa e levando cada vez mais gente aos locais de prática.

(*) Lima Barreto. "Vida Urbana" (artigo publicado originalmente em CARETA, no dia 4 de outubro de 1919).


quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Futebol no Brasil no início do Século XX - A final do Campeonato Paulista de 1903 (Parte 2)

Na postagem anterior tratei de como foi divulgada a partida final do Campeonato Paulista de Futebol de 1903. É bom explicar que o campeonato tivera sua primeira edição no ano anterior, 1902. Chega a hora, porém, da grande final de 1903. A edição da última semana de outubro da revista Vida Paulista anunciava o "match", como então se dizia, para o Velódromo Paulistano, que desde 1901 recebia jogos de futebol. Entretanto o número seguinte relata a partida acontecendo no "Parque da Antarctica". Havia, na época, poucos lugares para a prática de futebol em São Paulo, e um dos mais convenientes era o campo que existia em uma área de esporte e lazer pertencente à Companhia Antarctica Paulista, por isso mesmo chamado de "Parque da Antarctica". Isto soa familiar? O caso é que, no início do século, a empresa proprietária alugava o campo de futebol para as equipes que começavam a surgir e não tinham um local apropriado para mandar seus jogos, e eis porque a final do campeonato de 1903 também acabou sendo jogada lá. A título de informação, esse campo de futebol foi definitivamente vendido ao Palestra Itália em 1920.
Voltemos à final, apreciando o relato publicado na revista Vida Paulista, Ano 1, nº 8, de novembro de 1903:

"Como prevíamos, foi um verdadeiro sucesso o match de desempate do campeonato deste ano.
Domingo passado, às 3 e meia horas da tarde, entravam, no campo do Parque da Antarctica, os valorosos teams do São Paulo Athetic e do Athletico Paulistano, sendo recebidos com uma prolongada salva de palmas.
Dado começo ao jogo pelo referee sr. Friese, o team do Athletic mostrou logo a sua superioridade ao adversário. Um ataque fortíssimo muito bem combinado entre Miller, Pool e Boyes; uma defesa maravilhosa, admiravelmente sustentada por Jeffery, Robinson e Hoddkis.
No Paulistano não se notava o mesmo: o ataque esteve indeciso e fraco, salvando-se apenas Ibanez e Sampaio, que muito trabalharam, a defesa concentrava-se toda, quase que exclusivamente em Geraldo, que jogou extraordinariamente bem, merecendo, por assim dizer, as honras do dia. Mais de uma vez salvou brilhantemente o seu goal.
Apesar dessa superioridade visível do team do Athletic, o Paulistano conseguiu marcar um goal no primeiro half-time, sem que o conseguisse o Athletic.
Foi um verdadeiro delírio, quando o Paulistano marcou o goal!
Palmas, vivas e bravos, ecoavam de todos os pontos do Parque, completamente cheio de espectadores.
De momento a momento ouvia-se o canto de guerra do Paulistano, como que animando e encorajando seus jogadores a prosseguirem na luta travada.
O Athletic não esmoreceu. No segundo half-time, o jogo foi todo seu. O ataque fortaleceu-se e a defesa foi mais vigorosa. Pool conseguiu marcar dois goals para o seu team, sendo entusiasticamente aplaudido.
E assim terminou esse memorável match com a vitória do Athletic por dois goals a um.
Terminado o jogo, foi entregue a taça ao sr. Charles Miller, captaim (sic) do Athletic, em meio de uma entusiástica salva de palmas."

Então, leitor, finda a partida, é tempo para nossos comentários.
1) Muito educados os torcedores que, em 1903, aplaudiram a entrada de ambas as equipes, não? É quase inacreditável, mas no campo do Velódromo Paulistano havia uma placa em que se lia "Proibido Vaiar".
2) Note o juiz (referee) e o capitão (captain!) sendo chamados de "sr." (senhor)!
3) Perceba que não há referência a jogadores de meio-campo - só se fala em atacantes e defensores, o que demonstra, talvez, a pouca intimidade do articulista com questões futebolísticas, além de, por suposto, indicar alguma coisa sobre as táticas da época. É claro que as designações das posições ocupadas pelos jogadores, totalmente em inglês, podiam bem servir de orientação para os neófitos no esporte. Aliás, a narrativa toda da partida nos deixa com aquela sensação de quem lê redações escolares do tipo "Festa de Aniversário", "Férias na Fazenda do Vovô" ou "Final de Semana na Praia".
4) Muito interessantes os atletas citados: no São Paulo Athetic todos têm nomes britânicos, enquanto que no Paulistano menciona-se Ibanez, Sampaio e Geraldo. Presume-se que esse fato acrescentasse alguma pimenta ao espetáculo.
5) "Delirante" a descrição das comemorações relacionadas ao gol do Paulistano. "Palmas, vivas e bravos" parecem antes relacionados a um espetáculo operístico que a um jogo de futebol, pelo menos de acordo com nossos hábitos do século XXI.
6) Vem o ponto culminante, quando novamente a plateia dá uma demonstração de civilidade, aplaudindo a premiação, quando Charles Miller (o famoso "dono da bola"), recebe a taça, por ser o capitão de sua equipe.
Teriam as coisas acontecido mesmo assim? Ou estava a imprensa divulgando apenas o que se considerava apropriado, aquilo que pessoas refinadas esperavam ler em sua publicação favorita? Seja lá como for, logo veremos que nem tudo no nascente futebol se fazia com aplausos e polidas expressões de encorajamento. O esporte iria bem depressa conquistar multidões de adeptos em todo o Brasil, e os costumes dos torcedores passariam, gradualmente, por considerável mudança. Mas isso já é assunto para uma outra postagem.


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terça-feira, 16 de novembro de 2010

Futebol no Brasil no início do Século XX - A final do Campeonato Paulista de 1903 (Parte 1)

Esta pequena série será, como o título indica, sobre futebol. Em 1903, leitor, o campeonato (em São Paulo) estava terminando. Mas, naqueles dias, o futebol ainda não era o esporte absolutamente popular que conhecemos. Foi ganhando espaço aos poucos. A elite paulistana tinha outros interesses, de modo que campeonatos de esgrima, regatas (no rio Tietê ou no mar, em Santos) ou corridas de cavalos eram mais apaixonantes. Não obstante, o "foot-ball" já começava a conquistar espaço, literalmente, nas páginas de revistas e jornais. Espaço reduzido, é verdade, quase sempre constituído por pequenas notas em algum canto de página, numa linguagem algo desajeitada, por causa dos muitos termos ainda em inglês, ou de eventuais tentativas de adaptação.
O que temos aqui é uma noticiazinha que apareceu na revista Vida Paulista, Ano 1, nº 7, de outubro de 1903:

"Está terminado o campeonato de 1903.
Como no ano passado os gloriosos teams do São Paulo Athletic Club e do Club Athletico Paulistano, têm de jogar um match de desempate para a conquista da taça, pois ambos os teams estão com 13 pontos.
Realiza-se amanhã, às 3 e meia horas da tarde, no Velódromo, esse interessante match, do qual falaremos no próximo número."

Observe o total de pontos conquistados - ele revela muito sobre o número de equipes que deviam disputar a competição. Observe também o local da partida - o velódromo. Não há, além disso, na linguagem de quem escreve, a empolgação que estamos acostumados a observar às vésperas de uma final.
Não, o futebol ainda não era para as multidões de torcedores. Isso fica evidente pela necessidade de dar ao público a informação da hora e do local da última partida do campeonato, e nós bem sabemos que, quando as pessoas estão realmente interessadas em alguma coisa, falam disso o tempo todo e quase não conseguem mudar de assunto. Quem é que já viu um torcedor realmente apaixonado precisando comprar um jornal ou revista para saber onde e a que horas seu time vai jogar?
Ficou curioso quanto ao resultado da "final"? Disso tratar-se-á na próxima postagem!

domingo, 14 de novembro de 2010

Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós!

Aprendemos, quando crianças, que fadas ou bruxas podem usar determinadas palavras mágicas que, apenas pronunciadas, têm o poder de "fazer acontecer" qualquer coisa que se queira. Quando crescemos, temos a difícil tarefa de desaprender tudo isso. A duras penas, percebemos que é preciso muito mais que palavras mágicas para que aquilo que desejamos venha a ser realidade. Entretanto, é curioso observar que, em se tratando de política, parece haver muita gente crescida que ainda acredita em palavras mágicas - é só ver as listas de "eu prometo que...", "eu farei...", ou ainda "no meu governo..." que proliferam nas campanhas eleitorais. Resta saber se os crentes em contos de fadas são eleitores ou candidatos, ou se há entre eles um verdadeiro e misterioso pacto do faz-de-conta.
No belíssimo poema "O Navio Negreiro", de 1869, o jovem Castro Alves (que não jogava no time do faz-de-conta) escreveu:

"Existe um povo que a bandeira empresta
Pra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E a deixa transformar-se nessa festa,
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio, Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que da liberdade após a guerra
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!..."

Reconheço que, para o leitor contemporâneo, a linguagem pode, talvez, soar difícil. Mas, em essência, o que o poeta afirma é que a bandeira do Brasil, com toda a beleza natural que representa, encontra-se, no momento em que escreve, manchada pela infâmia da escravidão. E, num arroubo de coragem, chega a dizer que melhor teria sido ver a bandeira despedaçada na guerra (da Independência, provavelmente), que tê-la agora transformada em mortalha para os escravizados, já que o objetivo do poema é descrever a brutalidade do tráfico de africanos e o horror do quotidiano em um tumbeiro, ou seja, em um navio da "carreira da África".
Como se sabe, a escravidão foi formalmente abolida em maio de 1888. No ano seguinte, em 15 de novembro, proclamou-se a República. Eis que, no contexto dessa nova ordem política, adotou-se um Hino à Proclamação da República, com letra de José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque e música de Leopoldo Américo Miguez. Para efeitos práticos, a data de publicação do Hino no Diário Oficial foi a de 21 de janeiro de 1890, ou seja, pouco mais de dois meses após a proclamação da República e pouco menos de dois anos após a Abolição.
Na segunda estrofe do Hino, encontram-se estas palavras:

"Nós nem cremos que escravos outrora,
Tenha havido em tão nobre país
Hoje o rubro lampejo da aurora,
Acha irmãos, não tiranos hostis.
Somos todos iguais, ao futuro
Saberemos unidos levar,
Nosso augusto estandarte, que puro,
Brilha avante, da Pátria no altar."

Para mim, há aqui um evidente diálogo entre o poema de Castro Alves e as palavras do Hino à Proclamação da República. Se Castro Alves invectiva a escravidão e todo o seu sistema de práticas cruéis, o Hino afirma ser a escravidão uma memória remota, substituída pela igualdade republicana. Se o Poeta dos Escravos lamenta a bandeira maculada pela escravidão, a letra de Medeiros e Albuquerque atesta a purificação do pavilhão nacional, obviamente em virtude também do advento do regime republicano.
Diga-me, leitor, seria possível em tão pouco tempo produzir-se uma tão radical mudança? Seria a proclamação da República o fiat lux da Pátria?
Entendo que, em seu entusiástico idealismo republicano, o autor quisesse, à força das palavras, mudar o País, banir até os mais tênues vestígios da escravidão, ver a nação constituir-se em uma autêntica fraternidade de cidadãos, habilitando-a a produzir um futuro brilhante. Belo intento, não há dúvida, que a maturidade política (semelhantemente ao que ocorre em termos de maturidade psicológica), tem demonstrado ser impossível só com palavras. Neste caso, a famosa expressão "sangue, suor e lágrimas" pode ser exata expressão da realidade. Prova disso é que o sonho continua algo distante mas, felizmente, não ao ponto de tornar-se impossível alcançá-lo.


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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

E as estações ferroviárias? Como estão?

Recentemente escrevi neste blog sobre uma das maiores empresas fabricantes de locomotivas no século XIX e primeira metade do século XX, a Baldwin Locomotive Works. Volto ao assunto das ferrovias para um pequeno relatório do que tenho observado em termos de preservação das estações ferroviárias, pelo menos no que se refere ao Estado de São Paulo.
Como se sabe, as ferrovias foram privatizadas e, no momento, as sobreviventes são utilizadas para transporte de carga. Com isso, os antigos prédios das estações ferroviárias começaram a receber usos diferentes. Em alguns casos, o fato de esses edifícios serem tidos como patrimônio histórico foi levado em conta, mas em outros pode-se dizer que o abandono é total. Ainda assim, o conceito de patrimônio histórico nem sempre é bem compreendido. Há, por suposto, uma grande diferença entre restauração e reforma de um prédio. No primeiro caso, a conservação é feita segundo técnicas que estejam em conformidade com a edificação original; no segundo, tenta-se manter a aparência, sem muito cuidado em preservar as características primitivas. O resultado não poderia ser outro: com o uso de técnicas e materiais estranhos aos métodos de construção antigamente empregados, tem-se resultados algo esquisitos, embora bem intencionados.
Em linhas gerais, as estações têm sido usadas como centros culturais (felizmente, é o caso mais comum), ou para atividades comerciais, ou como depósitos, ou como moradia, ou ainda... como coisa nenhuma. Com tamanha "diversidade", como fazer um balanço da situação?
Leitor, para isso, você é o melhor juiz. Abaixo está um pequeno vídeo, com imagens de algumas das estações ferroviárias que visitei. Veja e forme sua opinião a respeito. Se você está lendo esta postagem em um leitor de feeds ou por e-mail, acesse: Estações ferroviárias em São Paulo e Minas Gerais.


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terça-feira, 9 de novembro de 2010

"Couros de jacaré" - Uma lição inesquecível

Dizemos que uma pessoa que muda facilmente de ideia é volúvel, e não costumamos atribuir um sentido positivo à palavra. Mas, às vezes, mudar de opinião é uma coisa muito boa. Vou dar um exemplo interessante.
Era o ano de 1926 e, mais especificamente, o mês de dezembro. Nessa ocasião circulava o vigésimo-quarto número da Revista Escolar, "Orgam da Directoria Geral da Instrucção Pública", destinada, portanto a professores e outros profissionais da educação.
Pois bem, uma das seções da revista chamava-se justamente "Lições de Coisas", e propunha-se a ser uma orientação prática de como professores poderiam lecionar determinados assuntos. Ora, leitor, indo logo ao que interessa, encontramos nas páginas 37, 38 e 39 uma lição com o insólito título "Couros de Jacaré". Não será preciso morrer de curiosidade, leia o trecho que transcrevo abaixo:

"Professora. - Que está você falando aí, Leonor?
Aluna. - Eu estou contando a Luísa que a Maria tem uns sapatos novos, de couro de jacaré!
A. - Será verdade?
A. - Custa a crer!
P. - Nunca devemos duvidar, sem mais nem menos, da palavra dos outros. Demais a mais, o jacaré fornece, mesmo, excelente couro.
A. - Esses sapatos devem ter custado bem caro!
P. - O couro de jacaré é, realmente, caro.
A. - Então, vale a pena criar jacarés!
P. - Essa é uma indústria nova, e da qual o Brasil poderia tirar muito proveito.
A. - Criando jacarés para aproveitar os couros?
P. - Não seria preciso nem criá-los. Temos jacarés em quantidade.
A. - Onde?
P. - Seis variedades de jacarés infestam, aos milhares, as margens do Amazonas e seus afluentes.
A. - Já ouvi mesmo contar que nessas regiões há muito jacaré.
P. - Os seringueiros dessas paragens fazem-lhes caça matando-os às centenas.
A. - E não acabam?
P. - Não, porque nascem aos milhares, multiplicam-se abundantemente.
A. - Por que os matam?
P. - Os jacarés circundam as barracas dessa pobre gente, devorando aves e animais domésticos. Bezerros e novilhas são sacrificados por essas terríveis feras.
A. - Que horror!"

E segue nesse mesmo tom, pelas páginas seguintes. 
Vamos exercitar a técnica de resumo: Couro de jacaré é muito lucrativo e, como há jacarés demais no Brasil, podemos caçá-los e ganhar dinheiro com isso, sem nenhuma preocupação, porque os jacarés nascem em grande quantidade e são animais nocivos, que prejudicam os seringueiros. Que tal? Que horror!
De onde veio essa mentalidade predatória? Sem dúvida, do hábito colonial de pilhar, para a Metrópole, tudo o que de valioso houvesse na Colônia. Triste é ver que, em 1926, portanto mais de cem anos após a independência, essa noção de que a natureza estava à disposição, para ser explorada sem maiores preocupações, não apenas ainda existia mas, grande absurdo, era ensinada.
Orgulhosamente, assumimos que nossa geração mudou de ideia e, ninguém que seja mentalmente saudável, daria agora uma aula desse tipo. Temos boas leis de proteção à fauna, que podem, todavia, ser aperfeiçoadas, e estamos, de um modo geral, preocupados em algum nível com problemas ambientais. Do alto de nossa pretensa superioridade, olhamos para o passado esquecendo que, por vezes à nossa volta, a devastação campeia alegremente, quase sem ser molestada. Repito, temos boas leis - é tudo uma questão de fazê-las cumprir. E, exigir isso é, também, uma questão de cidadania.


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domingo, 7 de novembro de 2010

Milhares de locomotivas - Parte 3

Nas duas postagens anteriores tratei brevemente da história da Baldwin Locomotive Works. Agora veremos como essa empresa relacionou-se com a expansão ferroviária no Brasil.
Conforme todo mundo sabe, o Brasil foi colonizado por Portugal. Acontece que a pequena nação ibérica tornou-se algo dependente da economia britânica e, como colônia, o Brasil foi fortemente atingido por esse fato (que se veja, sobre isso, o famoso "Tratado de Comércio e Navegação" de 1810). Mesmo tendo alcançado a independência política em 1822, o Brasil permaneceu sob a influência dominante da economia inglesa ao longo do século XIX e, por essa razão, quando as ferrovias começaram a cortar as regiões produtoras de café, viu-se logo a chegada de locomotivas a vapor provenientes da Inglaterra. Até mesmo outros equipamentos, igualmente associados à exportação cafeeira, vinham de lá, como é o caso das balanças para pesagem das sacas de café.
A despeito disso, a Baldwin Locomotive Works (que era americana), fez negócios no Brasil. Apenas como amostra, o livro History of the Baldwin Locomotive Works 1831 - 1920 apresenta,  na página 75, uma locomotiva feita especificamente para a Ferrovia D. Pedro II, no ano de 1885. Curiosamente, ela é denominada "Decapod", pois tem dez rodas.


Outra locomotiva destinada ao Brasil aparece em Illustrated Catalogue of Narrow-Gauge Locomotives, ed. de 1885, p. 20:


Não pretendo fazer uma listagem exaustiva dos negócios da Baldwin no Brasil, mas no já citado History of the Baldwin Locomotive Works podem ser encontradas as seguintes referências:
Na página 58, afirma-se que os primeiros negócios no Brasil datam de 1862-1863;
Na página 64, são mencionadas três locomotivas fornecidas para a Ferrovia União Valenciana (RJ);
Na página 68, há referência a uma locomotiva tipo "Mogul", denominada "Príncipe do Grão-Pará", fornecida para a ferrovia D. Pedro II, no ano de 1876;
Na página 74, é citada uma encomenda de três locomotivas pela ferrovia Cantagalo feita em 1882, que foi entregue no ano seguinte. A viagem inaugural deu-se em 17 de outubro de 1883, cobrindo oito quilômetros até Boca do Mato, com velocidade de 24 quilômetros por hora - muito interessante!
Na página 75 há referência à já citada  "Decapod" da Ferrovia D. Pedro II;
Na página 77, finalmente, é relatada a entrega de duas máquinas a vapor para ferrovia urbana no Brasil, uma para a "Corcovado Railway", entre 1888 e 1889, outra para a Ferrovia Príncipe do Grão-Pará.

Locomotiva destinada à ferrovia urbana "Corcovado Railway"

Seguramente houve outras encomendas, já que o catálogo que consultei relata locomotivas até 1885, e eu encontrei em Jaguariúna, S.P.,  duas locomotivas do mesmo fabricante, porém de datas posteriores:


Estão aí, como se pode ver, as identificações, respectivamente, da locomotiva 37.710, de 1912, e da locomotiva 54.058, de 1920. Essas informações são muito relevantes, principalmente para quem tem interesse pelas antigas ferrovias brasileiras, mas é preciso ir além.
Antes de mais nada, esses dados mostram que a maré da economia mundial estava já começando a mudar. O centro econômico do mundo deixaria, em pouco, de ser a Europa, para mudar-se para os Estados Unidos. E os negócios que o governo do Brasil fazia no exterior eram um reflexo disso.
Mas há um outro aspecto a ser considerado: não teria passado pela cabeça de ninguém fabricar locomotivas por aqui mesmo? É claro que sim! Várias foram as tentativas, algumas até muito bem-sucedidas. No entanto, jamais alguém, nesse tempo, tornou-se o fundador de uma empresa similar à Baldwin Locomotive Works. Por quê?
Leitor, o assunto é complexo, mas, dentre outras causas, destacam-se:
1) A malha ferroviária brasileira era infinitamente menor que a americana, por exemplo, o que já explica a inexistência de um mercado interno considerável;
2) A falta de mão de obra nacional qualificada para o trabalho em um ramo de atividade que exigiria amplo conhecimento (as ferrovias aqui instaladas geralmente traziam técnicos estrangeiros para trabalhar);
3) A ideia de que era mais rápido, fácil e prático importar (que ainda persiste em alguns setores até hoje);
4) A noção de que, ao fim e ao cabo, o produto importado era sempre melhor (outro conceito muito antigo que ainda perdura, vindo desde o tempo em que prevalecia o pensamento de que tudo o que prestava era "do reino"...).
Vamos concluir: em muitos setores da economia brasileira tudo isso é, felizmente, passado. Mas é preocupante que, na mentalidade popular, importado seja sinônimo de qualidade e, mais que isso, que em alguns ramos tenhamos falta de trabalhadores devidamente treinados. Há, portanto, tantos anos depois das primeiras ferrovias, muito trabalho a fazer, inclusive no que se refere à infraestrutura de transportes.


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quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Milhares de locomotivas - Parte 2

Se você leu Milhares de Locomotivas - Parte 1, talvez tenha ficado a pensar nas causas do crescimento fenomenal da produção de locomotivas pela empresa americana Baldwin, ao longo da segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX. Ora, não é assim tão complicado explicar o fenômeno:
a) A expansão dos Estados Unidos para o Oeste demandava a construção de ferrovias, capazes de ligar o país de costa a costa e, para isso, muitas locomotivas eram necessárias;
b) Nota-se que o crescimento na produção acentuou-se após a chamada Guerra da Secessão, o que aponta para o fato de a guerra ter posto fim às disputas relacionadas aos melhoramentos internos prioritários, no sentido de que o "Norte" industrial já não encontrava obstáculos às suas pretensões em fortalecer o mercado interno, para o que a existência de meios de transporte confiáveis era fundamental, a fim de que a produção pudesse ser enviada a todo o país;
c) A industrialização nos Estados Unidos colocou esse país como um importante produtor e exportador, começando a fazer frente à Inglaterra em questões relacionadas à busca de mercados consumidores no exterior - uma parte muito importante da produção da Baldwin Locomotive Works era destinada ao mercado externo, e isso desde o século XIX;
d) Finalmente, foi política da empresa apoiar maciçamente o esforço de guerra dos Aliados durante a primeira guerra mundial, fornecendo mais de 5000 locomotivas, além de outros equipamentos.

A fábrica de locomotivas Baldwin, de acordo com  
Illustrated Catalogue of Narrow-Gauge Locomotives de 1885
Entretanto, meu leitor, após o final da Primeira Grande Guerra as coisas não marcharam tão bem. A concorrência aumentou e a empresa começou a enfrentar problemas pela preferência por locomotivas a diesel de outro fabricante. Ainda assim, manteve-se no mercado e, durante a Segunda Guerra Mundial, novamente forneceu armamentos para os Aliados, tais como os tanques Sherman.
Mas era o fim. A empresa que contara as locomotivas aos milhares fabricou a última em 1956.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Milhares de locomotivas - Parte 1

Esta notícia apareceu na edição de 30 de março de 1914 da revista A Cigarra:

QUARENTA MIL LOCOMOTIVAS
Não se trata de nenhuma exposição colossal, em que tivessem de ser reunidas 40.000 locomotivas. Trata-se das locomotivas construídas pela grande usina Baldwin, de Philadelphia, que há pouco tempo celebrou com festas a construção da locomotiva com que se completava a bela cifra de 40.000, construídas pela fábrica.
Foi em 1882 [sic] que a fábrica Baldwin construiu a sua primeira locomotiva. Em 1862 já haviam sido construídas mil. Em 1880, 5.000. A máquina nº 10.000 começou a rodar em 1889, e a nº 20.000 em 1902.
Desde então, vai sendo rápida a profusão. Nestes últimos anos, a Companhia Baldwin chegou a duplicar a sua produção até 1902. Hoje, a média de sua produção é de três a quatro locomotivas por dia.
A máquina nº 40.000, que acaba de sair das usinas Baldwin, de Philadelphia, é uma possante locomotiva do tipo "Pacific" pesando oitenta e seis toneladas - e é destinada aos trens rápidos da Pensylvania Railroad."

A locomotiva nº 1 de Baldwin, conhecida
como "Old Ironsides"
Percebe-se logo, leitor, que há algo errado com os dados apresentados, mas não se preocupe, vamos corrigi-los. Em History of the Baldwin Locomotive Works 1831 - 1920 (*), explica-se que empresa fabricante de locomotivas Baldwin foi fundada por um hábil trabalhador chamado Matthias W. Baldwin que, em 23 de novembro de 1832, colocou para funcionar sua primeira locomotiva a vapor, denominada Old Ironsides que, aliás, consta haver trabalhado muito bem durante vinte anos. Portanto, a data correta para a primeira locomotiva é 1832 e não 1882, como noticiou A Cigarra.
Mr. Baldwin morreu em 1866, deixando um negócio solidamente estabelecido - até a data de sua morte a empresa já havia fabricado mais de 1500 locomotivas. E não parou por aí. A mesma obra que citei apresenta, na página 142, estas informações:

Locomotiva nº 1: concluída em 1832;
Locomotiva nº 1.000: fabricada em 1861;
Locomotiva nº 10.000: fabricada em 1889;
Locomotiva nº 20.000: fabricada em 1902;
Locomotiva nº 30.000: fabricada em 1907;
Locomotiva nº 40.000: fabricada em 1913;
Locomotiva nº 50.000: fabricada em 1918.

Vê-se facilmente que foram necessários vinte e nove anos para as primeiras mil locomotivas e vinte e oito para as dez mil primeiras. Entretanto, para fabricar dez mil entre as vinte e trinta mil primeiras, foram necessários somente cinco anos. Houve, pois, uma autêntica explosão na demanda por novas máquinas que, a despeito de tornar-se mais contida em certos períodos, não chegava a causar muitos problemas ao fabricante, que atendia também à produção de bondes e materiais diversos para ferrovias. Era, na época, um negócio muito sólido.

(*) History of the Baldwin Locomotive Works 1831 - 1920 - Illustrated Catalogue of Narrow-Gauge Locomotives 3ª ed. Philadelphia: Lippingott, 1885.


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