terça-feira, 30 de agosto de 2011

Uma receita inusitada de mingau

Mingau, quem não sabe? É aquela comidinha molenga, preparada geralmente para a alimentação de crianças pequenas. Pode ser recomendável também para adultos que, por estarem doentes, não consigam ingerir alimento sólido. Claro, há adultos perfeitamente saudáveis que também apreciam, é só uma questão de gosto. Pode-se fazer mingau com uma variedade de ingredientes, a critério de quem o prepara, mas este de hoje é, não só inusitado, como explica a própria origem da palavra.
Vamos por um instante ao século XVI, quando nosso já conhecido Hans Staden, em sua segunda viagem ao Brasil, acabou prisioneiro dos tupinambás.
Pois bem, a ideia dos tupinambás era que seu prisioneiro fosse homenageado com uma grande festança, na qual seria... devorado. Entretanto, Hans Staden conseguiu ir retardando o tal banquete, até ser finalmente resgatado, podendo retornar à Europa. Enquanto isso, foi fazendo suas observações sobre o modo de vida de seus "hospedeiros", que mais tarde relatou em um livro (¹).
O que agora veremos é o que tudo isso tem a ver com mingau.
Tupinambás em festa, preparando
e servindo "mingau" (³)
Hans Staden observou que as índias, ao prepararem por cozimento qualquer comida, fosse de carne ou peixe, tinham o costume de sempre adicionar pimenta verde, deixando tudo no fogo até que um caldo se formasse. A esse caldo, com aspecto mais ou menos de uma sopa, é que se dava o nome de mingau, sendo bebido sempre em cuias feitas com as cascas de um fruto nativo, a purunga ou porongo. Até aqui, nada exageradamente estranho, não?
Mais adiante em sua narrativa, Hans Staden conta como era sacrificado o prisioneiro que alimentaria a tribo. O encarregado de abatê-lo batia em sua sua cabeça com uma pesadíssima maça (²), o que resultava em partir o crânio, fazendo partes dos cérebro saltarem para fora. Continue a ler!
Em seguida, as mulheres arrastavam o corpo para próximo do fogo, onde era devidamente esquartejado para que, das partes, se fizesse um tipo de churrasco, a que se chamava, segundo Hans Staden, Mockaein (talvez moquém).
E o mingau? Ora, os intestinos eram separados, deles sendo feita uma sopa, o famoso mingau, que se usava servir às mulheres e crianças.

(1) Zwei Reisen nach Brasilien, publicado em Marburg, c. 1557.
(2) Arma indígena, semelhante a uma clava.
(3) Imagem de acordo com a edição de Marburg (editada para facilitar a visualização neste blog).


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domingo, 28 de agosto de 2011

O que se fazia com o bagaço da cana nos engenhos coloniais

Há um certo consenso de que a fase inicial da colonização do Brasil se fez sem muito cuidado quanto à conservação dos recursos naturais. Pero Vaz de Caminha, em seu relatório sobre a nova terra encontrada, escreveu: "As águas são muitas; infinitas", e, "os arvoredos são muitos e grandes, e de infinitas espécies". Toda essa fartura, ainda mais espantosa aos olhos de quem vinha de Portugal, territorialmente tão pequeno, pode ter até parecido inesgotável. Há quem relate que árvores inteiras eram derrubadas apenas para facilitar a colheita de uns poucos frutos.
Essa atitude descuidada, no entanto, não tardaria a evidenciar seus péssimos resultados, de modo que já no século XVII providências foram tomadas no sentido de impedir a construção de engenhos de cana-de-açúcar muito próximos uns dos outros, pois poderia faltar madeira para abastecê-los (¹). E, ao a Coroa portuguesa enviar seus representantes ao Brasil, nas últimas décadas do mesmo século, já se lhes fazia a recomendação de que zelassem pela conservação das matas, pois o pau-brasil, observava-se,  ia desaparecendo de áreas onde fora abundante.
Porém, não deve imaginar o leitor que uma política baseada em "reduzir, reutilizar, reciclar" estivesse a caminho. Longe disso! Exemplificando o quanto a questão ambiental era, sob muitos aspectos, ainda ignorada, basta considerar o que era feito do que sobrava no processo produtivo açucareiro - o bagaço da cana-de-açúcar.
Para compreender o que ocorria, será bom interrogar quem tudo viu por si mesmo, o jesuíta André João Antonil (²). Além de investigar o assunto, registrou todo o procedimento habitual na produção de açúcar em Cultura e Opulência do Brasil Por Suas Drogas e Minas. Tal era a precisão do relato que o governo luso, depois de uma breve permissão para que a obra circulasse, mandou apreendê-la e destruí-la, pelo receio de que viesse a facilitar o trabalho de eventuais concorrentes na produção de açúcar, além, é claro, de excitar a cobiça de outras potências. Mas vamos ao que disse Antonil.
Ao tratar do trabalho que se fazia na parte mais perigosa de um engenho, a moenda, Antonil explica que havia pelo menos uma escrava encarregada de remover o bagaço de cana, após a moagem:
"... e outra finalmente para botar fora o bagaço, ou no rio, ou na bagaceira, para se queimar a seu tempo. E se for necessário botá-lo em parte mais distante, não bastará uma só escrava, mas haverá mister outra, que a ajude: porque de outra forma não se daria vazão a tempo, e ficaria embaraçada a moenda." (³)
Fácil de compreender, não é, leitor? Jogava-se, despreocupadamente, todo o bagaço "no rio", ou, "na bagaceira, para se queimar a seu tempo".
Havia, apesar disso, uma terceira opção. Posteriormente, na mesma obra, esse padre, em um curioso jogo de personificação, tem a ideia de demonstrar que a doce cana-de-açúcar, para produzir o que dela se esperava, era brutalmente torturada, ao longo do processo que ia do corte, nos canaviais, ao descarte do bagaço:
"Levam-se assim presas, ou nos carros, ou nos barcos à vista das outras, filhas da mesma terra, como os réus, que vão algemados para a cadeia, ou para o lugar do suplício; padecendo em si confusão, e dando a muitos terror. Chegadas à moenda, com que força e aperto, postas entre os eixos, são obrigadas a dar quanto têm de substância? Com que desprezo se lançam seus corpos esmagados, e despedaçados ao mar? Com que impiedade se queimam sem compaixão no bagaço?" (⁴)
Eis aí como sabemos que além de serem queimados ou lançados nos rios, os "corpos esmagados e despedaçados" podiam, também, acabar indo mar afora, pelas águas dos "mares verdes do Brasil", fosse porque se entendia que o bagaço, seguindo o curso dos rios chegaria, inevitavelmente, ao mar, seja porque, de fato, havia vários engenhos coloniais cuja localização era bem próxima ao Atlântico, até porque, naqueles dias de difícil transporte, era uma grande vantagem para os exportadores de açúcar que suas propriedades não estivessem longe dos portos.

(1) Veja, sobre este assunto, a postagem: O desmatamento provocado pela agricultura no Período Colonial.
(2) Sobre a real identidade de André João Antonil veja a postagem: Antonil e a vida diária em um engenho de açúcar no Período Colonial.
(3) ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: 1711, p. 55.
(4) Ibid., p. 103.


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quinta-feira, 25 de agosto de 2011

N. Sra. da Candelária - sem exagero, uma bela igreja de Itu

Era o ano de 1825. O jovem desenhista francês Hércules Florence chegava a Itu, encarregado de antecipar os preparativos para a expedição científica comandada pelo Barão de Langsdorff, na época Cônsul da Rússia no Brasil, que deveria partir, desde Porto Feliz, descendo o rio Tietê rumo ao interior do Brasil. A despeito de andar muito ocupado em suas atribuições, H. Florence foi fazendo observações que hoje são uma fonte preciosa de informação sobre os lugares pelos quais passou.
Voltando ao fato de que se encontrava ele em Itu, anotou:
"Há em Itu um convento de franciscanos. A matriz, ornada com simplicidade, se bem pequena e exteriormente de pouca arquitetura, é a melhor de toda a província, depois da capital." (*)
Sobre o convento de franciscanos seria melhor dizer havia, isso porque um incêndio o destruiu completamente em 1907. Restou apenas, como recordação, a grande cruz de pedra, que ainda assinala o lugar. Porém, quanto à Matriz de Nossa Senhora da Candelária, construção do século XVIII, lá está ela, ainda que tenha passado por sucessivas reformas, e agora por uma restauração. Com isso, leitor, pode-se julgar se Hércules Florence fez um relato conveniente dessa igreja ou se, picado pelo mosquito do exagero, nativo daquelas paragens... exagerou.
Quem lê esta postagem terá, nas fotos seguintes, alguns elementos para firmar seu próprio juízo, concordando ou não com o viajante francês.

1. Fachada da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Candelária:


2. Vista do interior da igreja:


3. Capela lateral antiga, como se pode ver pelo estilo arquitetônico:


4. Outra capela lateral (mais recente):


5. Ao ser efetuada a restauração, descobriu-se que pinturas posteriores haviam encoberto a original, que passa por recuperação. Nesse detalhe, pode-se ver um trecho retratando a história bíblica do "sacrifício de Isaque", quando o patriarca Abraão é impedido, pela intervenção de um anjo, de sacrificar o filho:


6. A igreja atual tem vitrais bem interessantes. Abaixo está um deles:


7. Finalmente, ao deixar a igreja pela porta principal, o visitante pode ver este antigo entalhe na madeira:


(*) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 17.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Papagaios não eram maus com arroz

Conforme expliquei na postagem anterior, o Brasil foi, nos primeiros tempos da colonização, conhecido como "Terra dos Papagaios", isso porque araras, periquitos e, naturalmente, papagaios, encantavam os recém-chegados europeus por sua beleza e pela capacidade de repetir palavras.
Entretanto, logo os colonizadores descobriram um uso bem específico para essas aves - especialidade culinária - uso esse que veio a prolongar-se por séculos. Pode parecer horripilante, mas é isso mesmo (embora eu me pergunte por que detestamos essa ideia e quase todos aceitamos a matança de outros animais, dos quais se diz "criados para abate"). E, se o que estou dizendo chega a parecer demasiado absurdo para ser verdade, vou citar uma série de pequenos documentos históricos que põem fora de qualquer dúvida essa questão.
O Conde de Azambuja, Dom Antônio Rolim, obrigado por dever de ofício a "passar às minas" do Cuiabá em 1751, deixou, em seu cuidadoso relatório da monção da qual participou, a seguinte observação:
"De 11 de agosto por diante comecei a ter caça; e depois poucos foram os dias em que me faltou. Patos bravos, maiores e mais gostosos do que os do reino, e outra casta de pássaros a que chamam jacus, do tamanho de perdizes, e com alguma semelhança no gosto. Em certas paragens muita quantidade de papagaios, os quais não são maus com arroz." (¹)
Note, leitor, papagaios "não são maus com arroz"...
Outro que menciona o dito costume de devorar papagaios e outros psitacídeos é o Padre Ayres de Casal, em sua Corografia Brasílica, salientando, para cúmulo, que todos "têm boa carne":
"Há vinte e tantas castas de papagaios, a contar do mais pequeno periquito até a Arara: todas têm boa carne, com especialidade o juru; os que compõem a última classe são de três castas: ararunas, que são de todo azuis, Canindés, também azuis por cima com a barriga doirada e outras, que têm a parte inferior e a cabeça encarnada."
Finalmente, outro que participou de monção rumo ao interior do Brasil, dessa vez com propósitos científicos, foi o desenhista francês Hércules Florence que, como outros, também anotou em seu diário o mesmo costume de incluir papagaios na dieta dos monçoeiros:
"Mataram-se muitas jacutingas, espécie de galináceos, araras e papagaios, pássaros que figuraram na nossa mesa como caça deliciosa, principalmente a primeira. O que porém leva as lampas em sabor e delicadeza são os patos-d'água." (²)
Como deve ter observado o leitor atento, desta vez as pobres aves foram adjetivadas como "caça deliciosa".
Todavia, o mesmo Hércules Florence parece nos dar a chave para entender, ao menos em parte, como é que os colonizadores europeus chegaram à conclusão de que psitacídeos eram aves comestíveis. Descrevendo uma aldeia de índios apiacás, registrou:
"Havia ali cerca de oitenta araras que esses índios criavam por causa das belas penas e da carne: alcandoravam-se na cumeeira, na choupana e nas árvores vizinhas. Voavam para a floresta, mas voltavam e deixavam-se apanhar e levar para onde se quisesse." (³)
Apenas para advertência de quem tiver um apetite verdadeiramente pantagruélico, a maioria dos papagaios e seus parentes nativos do Brasil encontra-se hoje na lista de animais em risco de extinção e, por isso, não pode ser abatida. Ainda bem!

(1) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas 3ª ed., vol. 3. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 201.
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 35.
(3) Ibid., p. 220.


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domingo, 21 de agosto de 2011

Terra dos papagaios, dos periquitos, das araras...

Os jovens estudantes brasileiros sabem muito bem que, nos primórdios da presença portuguesa na América, o Brasil recebeu outros nomes, derivados do desconhecimento geográfico inicial do território: foi primeiro "Ilha de Vera Cruz", depois "Terra de Santa Cruz". O que em geral poucos sabem é que um nome popular para o Brasil, naqueles tempos, foi "Terra dos Papagaios". Decorreu isso, naturalmente, do encanto que a quantidade e diversidade de psitacídeos provocou nos primeiros colonizadores.
Podemos verificar esse fato em escritos da época. Pero Vaz de Caminha, em sua famosíssima Carta, relatando o "achamento" do Brasil (segundo sua própria expressão), conta que o capitão Pedro Álvares Cabral trazia consigo, em sua embarcação, um papagaio pardo - aliás, nada mais típico dos grandes navegantes, a ponto de virar estereótipo. Pois bem, o tal papagaio foi mostrado aos nativos do Brasil e... Deixemos que conte o próprio Caminha:
"Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como se os houvesse ali."
É claro que havia papagaios, e não só eles, mas toda a gama de seus aparentados, como ainda prossegue o escrivão, dirigindo-se ao rei D. Manuel, ao dar conta das primeiras "relações comerciais" entabuladas com os nativos:
"Resgataram lá por cascavéis(¹) e outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos (²), e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, espécie de tecido assaz belo, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse."
E ainda pondera:
"Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios essas árvores; verdes uns, e pardos, outros, grandes e pequenos, de sorte que me parece que haverá muitos nesta terra."
Estava certíssimo o escrivão Caminha. E tantos havia que, em pouco tempo, tornaram-se um pequeno ramo de comércio. Quem porventura vinha ao Brasil tratava de levar consigo, no retorno à Europa, algumas dessas belas aves, pois a venda por bom preço era garantida.
No Livro da Nau Bretoa, embarcação comercial que veio ao Brasil em 1511 com o objetivo de levar madeiras e outras mercadorias, há o registro de que o capitão, o escrivão, o piloto, o despenseiro, vários marinheiros e um grumete levaram do Brasil um bom número de papagaios, além de outras aves e pequenos primatas. Escrupulosamente, o Livro registra o valor estimado de todos os animais e, como não poderia deixar de ser, o imposto devido por eles a El-Rei.
Desnecessário é acrescentar, leitor, que hoje há muitas espécies dessas criaturas falantes naturais do Brasil que são tidas como ameaçadas de extinção - não pela admiração que causaram no passado, mas pela exploração desenfreada (devido às penas) e pela depauperação dos habitats. Isso além de um outro motivo, conforme veremos na próxima postagem.

(1) Não cobras, evidentemente, mas guizos.
(2) Entende-se que Caminha referia-se, aqui, a araras e periquitos.


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quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Estação Ferroviária de Capivari: como muitas outras, merece ser restaurada

Edifício central da Estação
Ferroviária de Capivari - SP
Para muitas cidades, em especial as pequenas, a estação ferroviária foi, até por volta dos anos cinquenta (séc. XX), muito mais que um local de chegada e partida de trens. Com os trens vinham os jornais da Capital, vinham as mercadorias que abasteciam o comércio, vinham os parentes que se visitavam periodicamente. Era na estação ferroviária que funcionava o telégrafo que, além de contribuir para assegurar o funcionamento adequado da própria ferrovia, era também o instrumento através do qual as notícias podiam chegar mais depressa e, daí, passar de boca em boca entre a população da localidade.
Como se sabe, muitas das antigas ferrovias foram desativadas em décadas mais recentes, e os prédios das estações ferroviárias receberam outros usos. Em alguns casos o reconhecimento da importância histórica dessas construções levou à sua utilização como museus, centros culturais, bibliotecas. É desagradável, no entanto, quando se vê que algumas estações estão, literalmente, em ruínas.
Uma busca na lista de postagens deste blog indicará a existência de vários textos relativos à preservação da memória ferroviária. Seguindo essa linha de trabalho, estive um dia desses em Capivari, com a intenção de fotografar a pequena estação ferroviária de estilo britânico, que havia pertencido à Companhia Estrada de Ferro Sorocabana. As fotos que ilustram esta postagem darão conta ao leitor, sem a necessidade de muitas palavras, do que pode ser visto atualmente.

Estação Ferroviária da cidade de Capivari - SP
Decepcionante? Sim, mas nada incomum. Ocorre que, enquanto fazia as fotos, passou por ali um senhor que, parando para conversar, identificou-se como um trabalhador aposentado que, em idos tempos, transportava açúcar demerara até a estação para embarque. As informações que apresento, daqui por diante, são devidas à sua simpática contribuição.
Plataforma de embarque da
Estação Ferroviária de Capivari - SP
Explicou-me que há algum tempo havia funcionado na estação uma entidade filantrópica que já deixara o local (a placa ainda está lá). Andando pelos trilhos que ainda restam, mostrou-me uma ponte que fora parte da ferrovia e que, desativada e desmontada, fora jogada ali ao lado, onde, aliás, ainda está, quase completamente coberta de mato (pergunto-me por que, ao menos por respeito ao ambiente, não reciclam ou reutilizam o material). Ainda em pé, mas em muito mau estado, a cabine usada pelo guarda sinalizador tem abrigado usos impublicáveis. E a estação, cuja restauração é frequentemente prometida, continua lá, em estado mais que precário, à espera de que os trabalhos finalmente comecem ou que a mão do tempo acabe dando o golpe de misericórdia.
Antes que nos despedíssemos, meu interlocutor, com uma simplicidade não desprovida de bom senso e sabedoria, ainda acrescentou:
"Meus filhos sempre me falam: Pai, o senhor só tem coisas velhas pra mostrar? E eu respondo: Eu tenho coisas velhas pra mostrar, mas vocês terão o quê? Não se conserva mais nada..."
Com suas palavras, só posso concluir a postagem. O "mato grosso do Capivari", de que tratei na postagem anterior, não irá voltar nunca mais, mas essa estaçãozinha pode bem ser restaurada. Espero que seja, o quanto antes.

Restos de uma antiga ponte da Ferrovia Sorocabana em Capivari - SP

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terça-feira, 16 de agosto de 2011

"Mato Grosso do Capivari" - Uma história de desmatamento no Período Colonial

Era uma vez uma região tão rica em florestas de grandes árvores que acabou ficando famosa entre os construtores de canoas, já que, de um único tronco, era possível fazer uma embarcação de tamanho considerável.
Essas canoas enormes tornaram possível a navegação do Tietê e de outros rios, de modo que o interior do Brasil foi explorado (em ambos os sentidos usuais da palavra), durante o assim chamado "Ciclo das Monções". Tão expressivas eram as ditas matas, que foram chamadas de "mato grosso do Capivari", na área da cidade de mesmo nome e adjacências de Piracicaba, estendendo-se até às paragens das atuais Indaiatuba e Jundiaí. Na obra do Pe. Ayres de Casal, Corografia Brasílica, encontramos esta referência:
"Obra de quinze léguas adiante do precedente (¹) sai na margem direita, e por uma boca de quatorze braças, o considerável Piracicaba, que é formado pelo Atibaia e Jaguari, cujas cabeceiras ficam no Nordeste de S. Paulo, e atravessa uma vastíssima mata de corpulentas árvores, de cujos troncos, assim como das que se criam nas beiradas do mencionado Capivari, se fazem ali mesmo as grandes canoas de oitenta palmos de comprimento, sete e meio de largura, e cinco de alto, em que se navega para o Cuiabá, e carregam quatrocentas arrobas, afora o mantimento necessário para oito homens de tripulação, e às vezes passageiros."
Impressionante, não?
Ora, leitor, não tente procurar tais matas ainda hoje. Ayres de Casal publicou sua obra em 1817, mas pouco depois Saint-Hilaire (²) anotaria sobre as matas de Jundiaí:
"No território de São Paulo [...] quando as grandes matas começam aparecer, as terras são tão planas como as anteriores, e só depois do percurso de cerca de 12 léguas é que são encontradas pequenas montanhas - as de Jundiaí, a cerca de 23º3' de latitude sul. A 6 ou 7 léguas de São Paulo, completamente secas e mais numerosas do que as novas, dão à campina um aspecto triste e acinzentado. Essa região era, outrora, inteiramente coberta de matas. Há cerca de 3 séculos começou a ser habitada pelos homens brancos, não sendo, pois, motivo de admiração o fato das árvores terem sido ali destruídas."
Eis aqui, portanto, mais um exemplo (apenas mais um) de uma alteração ambiental, provocada pela mão do homem e, como quase todas as outras, sem possibilidade de retrocesso. Quem quer que ande hoje pelas terras de "mato grosso do Capivari" deparar-se-á, quase exclusivamente, com onipresentes canaviais. Os poucos trechos arborizados não passam de míseros simulacros das antigas matas.



(1) Refere-se ao rio Sorocaba, afluente do Tietê.
(2) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 198.


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domingo, 14 de agosto de 2011

Passeio de rede - Parte 2

"José da Silva sentia agora deixar tudo isso, abandonar o encanto selvagem das florestas brasileiras - ali vivera feliz largo tempo, amara, enriquecera. Tornara-se americano, acostumara-se à música daquelas árvores seculares, à harmonia dos campos, às sestas preguiçosas da fazenda, à vida de chinelas e peito nu, à rede embalada pelo vento, o sono guardado por escravos."
                                                                                                                     Aluísio Azevedo, O Mulato

O hábito de se fazer transportar em uma rede era, aos olhos dos que não estavam acostumados a ele, no mínimo curioso. Há, a esse respeito, um interessante relato de Hércules Florence que, durante a Expedição Langsdorff, conheceu uma fazendeira idosa, D. Antônia, que, ao que parece, não viajava de outro modo, tendo para isso todo um séquito a lhe servir:
"No dia 1º de maio de 1827 partimos para a vila de Guimarães. Em caminho fomos visitar a fazenda do Buriti, de cana-de-açúcar, e pertencente a uma velha chamada D. Antônia, a qual chegou ao mesmo tempo que nós, vinda de Cuiabá. Viajava de um modo novo para nós, carregada por dois negros numa rede suspensa a uma grossa taquara de guativoca. De muda iam outros dois pretos aos lados. Acocorada nessa rede e a fumar num comprido cachimbo, vinha ela seguida de negras e mulatas, todas vestidas limpamente e carregando à cabeça cestos, trouxas e roupas, vasilhas de barro e outros objetos comprados há pouco." (¹)
Antes de mais comentários, leitor, será bom assinalar o quanto de influência indígena havia nesses hábitos: a rede, o cachimbo, o viajar levando os pertences sobre a cabeça (que não é costume exclusivamente indígena, mas que nesse caso parece ser o fator determinante). Acontece que essa exótica personagem não se servia da rede apenas para viajar, como logo descobrimos pelas palavras do mesmo H. Florence, que nos descreve o modo como a fazendeira controlava o trabalho que se fazia em sua propriedade:
"[...] D. Antônia tem sua rede armada perto da porta de entrada, à direita: ali passa os dias a fumar e a dirigir o trabalho das pretas e mulatas." (²)
Além do que descreveu em palavras, H. Florence deixou um precioso desenho do que viu na Fazenda do Buriti, no qual, além da casa-sede, vemos, como não poderia deixar de ser, a proprietária, devidamente instalada em sua rede.


(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, pp. 143 e 144.
(2) Ibid., p. 144.


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quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Passeio de rede - Parte 1

Partiu nesse mesmo dia, dentro de uma rede, com direção à Vila do Paço. Mas o terrível beribéri subia sempre; os membros por onde ele atravessava iam ficando paralisados e frios como membros de defunto. A onda maldita galgara finalmente a caixa torácica, Vasconcelos não pôde respirar de todo e morreu.
Amélia, ao receber a inesperada noticia, rebentou num berreiro e tratou de cobrir-se de luto fechado.
                                                                                                       Aluísio Azevedo, Casa de Pensão

Redes foram e são usadas por indígenas do Brasil para dormir (¹). Bandeirantes, que devem ter aprendido o hábito com os indígenas, também usavam redes, que eram amarradas entre duas árvores, sempre que se parava para estabelecer lugar de pouso. Em redes dormiam, frequentemente, os escravos nas senzalas, e muitas vezes até a família dos senhores na casa-grande. E, verdadeiro ícone do repouso, mas também da preguiça, é a famosa imagem de uma praia, céu impecavelmente azul, dois coqueiros e, entre eles, uma rede bem confortável, sem desconsiderar um copo de suco gelado. O que nem todo mundo sabe é que as redes já tiveram outro uso no Brasil.
Durante séculos, a pessoa que não fosse suficientemente afortunada para ter uma cadeirinha de arruar ou uma liteira, mas ainda assim dispusesse de dois escravos, costumava fazer-se carregar pela cidade ou em pequenas viagens em nada mais, nada menos, que uma rede. Tanto assim que, no intuito de elogiar Matias de Albuquerque, líder das forças luso-brasileiras na guerra contra os holandeses na Bahia, Frei Vicente do Salvador escreveu:
"Foi Matias de Albuquerque todo o tempo que serviu, assim de Capitão-mor de Pernambuco como de Governador Geral do Brasil, que foram sete anos, sempre muito limpo de mãos, não aceitando coisa alguma a alguém, nem tirando ofícios para dar a seus criados. Nas ocasiões de guerra e do serviço de Sua Majestade foi muito diligente, não se poupando de dia nem de noite ao trabalho; nunca quis andar em rede, como no Brasil se costuma, senão a cavalo, ou em barcos, e quando nestes entrava não se assentava, mas em pé os ia ele próprio governando." (²)
Nunca quis andar em rede!

Homem sendo transportado em rede por seus escravos, segundo Debret (³)

Finalmente, fica por dizer que, no interior do Brasil era costume, em outros tempos, quando não se dispunha de caixão apropriado, que os mortos fossem sepultados envolvidos por uma rede - a mesma, aliás, que era usada para conduzi-los ao túmulo, hábito esse também muito provavelmente de origem indígena, já que havia tribos que enterravam seus mortos com os pertences de que haviam se servido em vida, o que incluía, com toda certeza, a rede de dormir.

Doente sendo transportado em rede, segundo H. Florence (⁴)

(1) Diz Pero de Magalhães Gândavo, em seu Tratado da Terra do Brasil:
"A maior parte das camas do Brasil são redes, as quais armam numa casa com duas cordas e lançam-se nelas a dormir. Este costume tomaram dos índios da terra."
(2) SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Senado Federal, 2007. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. Neste caso, refere-se a um membro da Expedição Langsdorff. Muitos dos expedicionários foram vitimados por febres tropicais. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 9 de agosto de 2011

Dormir em redes - Parte 3

"Às vezes entrava em casa ao amanhecer. Não podia dormir logo; vinha excitado, sacudido pelas impressões e pela bebedeira da noite. Atirava-se à rede, com uma vertigem impotente de conceber poesias byronianas, escrever coisas no gênero de Álvares de Azevedo, cantar orgias, extravagâncias, delírios."
                                                                                                        Aluísio Azevedo, Casa de Pensão

Para os indígenas do Brasil, para bandeirantes, para monçoeiros, a rede era um modo muito conveniente de "carregarem a cama nas costas", onde quer que fossem. Ora, leitor, o hábito tornou-se tão arraigado que foi (e em alguns lugares ainda é) usado mesmo por gente estritamente sedentarizada.
Viajantes estrangeiros que percorreram o Brasil no século XIX tiveram a oportunidade de verificar e deixar registros desse costume bastante longevo. As imagens que fixaram revelam, inclusive, um fato curioso: uma certa semelhança entre o interior de uma habitação indígena e o da residência de uma família pobre, como se pode perceber pelas amostras seguintes - uma evidente influência e perpetuação dos hábitos dos ameríndios.

Imagem 1 - Interior de uma habitação indígena, ocupada por índios mundurucus, segundo Hércules Florence (¹)


Imagem 2 - Interior da habitação de uma família pobre, segundo Debret (²)


(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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domingo, 7 de agosto de 2011

Dormir em redes - Parte 2

Desfeiava-lhe a testa uma grande cicatriz - foi um trambolhão que levou na primeira noite em que deram-lhe uma rede para dormir - o pobre desterradozinho, que não sabia se haver com semelhante engenhoca, foi meter primeiro os pés e caiu desamparadamente sobre uma caixa de pinho de um dos companheiros.
                                                                                                                     Aluísio Azevedo, O Mulato

O hábito indígena de dormir em redes, muito conveniente a quem tinha um estilo de vida nômade ou seminômade, espalhou-se amplamente pelas áreas de povoamento lusitano durante o período colonial. Sendo muitas vezes filhos de portugueses e índias, os bandeirantes de São Paulo fizeram uso habitual dessas camas portáteis em suas expedições pelo interior do Brasil, estivessem eles tentando aprisionar indígenas para escravização ou mesmo em procura de riquezas minerais (entenda-se: ouro).
Chama a atenção o fato de que o método descrito de armar redes dos monçoeiros era, em essência, o mesmo que fora descrito por Hans Staden relativamente aos índios - a rede era colocada entre dois paus ou duas árvores. O Conde de Azambuja, obrigado por dever de ofício a meter-se em viagem Tietê afora para ir a Cuiabá em 1751, assim explicou o uso que se fazia das redes nas monções, às quais se adicionava um mosquiteiro, por razões demasiado evidentes para carecerem de menção, e uma cobertura, em caso de chuva:
"Bem sabereis o grande uso que tem nesta terra a rede, a qual é a cama mais pronta e mais fácil de conduzir: porém, como esta não basta para livrar das muitas chuvas que necessariamente se apanham em uma travessia tão grande do sertão, como esta, não guarda também da imensidade de mosquitos, que em partes se encontram: para suprir esta falta, inventaram os viandantes deste caminho o mosquiteiro, que vem a ser uma cobertura de linhagem, ou de outra droga leve, a qual lançam por cima de uma corda, que prendem aos mesmos paus a que atam a rede, por cima dela dois palmos. Esta coberta chega até ao chão por todas as partes, fechada pelos lados e pelas cabeceiras, deixando-lhes nestas umas mangas para se enfiarem os punhos das redes. Quando chove cobrem esta máquina com uma baeta singela, da largura que baste para alcançar alguma coisa mais abaixo da altura em que a rede fica, depois de seu dono deitado nela." (¹)
Muito tempo depois, durante a Expedição Langsdorff, repetia-se ainda a mesma rotina das monções, quanto a baixar acampamento, prover alimentação e instalar redes ao final de cada dia de viagem, conforme relato de Hércules Florence:
"À tardinha, lá pelo ocaso do sol, aproava-se, e então cada remador desempenhava o serviço que lhe havia indicado o guia para toda a viagem. Uns cortavam árvores, limpavam o terreno que ia ser acampamento; outros buscavam lenha seca para acenderem fogo; outros, enfim, armavam as barracas e suspendiam as redes. O cozinheiro preparava sua panelada dos feijões que deviam ser consumidos naquela hora ou no dia seguinte." (²)

Pouso da Represa Grande, de acordo com Hércules Florence (³)

(1) Da viagem que fez o Conde de Azambuja, D. Antônio Rolim, da cidade de São Paulo para a vila de Cuiabá em 1751, in TAUNAY, A. de E. História das Bandeiras Paulistas, vol. 3, 3ª ed. São Paulo: Melhoramentos/MEC, 1975, p. 199.
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 24. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Ibid.


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quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Dormir em redes - Parte 1

Por que motivo alguém deixaria sua cidade natal e, em meados do século XVI, sairia a percorrer o mundo em navios que mais pareciam cascas de ovos sobre as águas revoltas do Atlântico? Sim, portugueses e espanhóis, envolvidos no processo de descobrimento e colonização a América, tinham seus motivos para tais viagens, mas um alemão que nem era marinheiro? Esse foi o caso de Hans Staden. Fez duas viagens à América do Sul, a primeira em uma frota portuguesa, a segunda a serviço da Espanha. Na segunda viagem teve a infelicidade de naufragar na costa do Brasil. Como era artilheiro, acabou contratado para trabalhar na defesa da povoação portuguesa na área de São Vicente. Entretanto, acabou sendo feito prisioneiro de indígenas, aliás indígenas que tinham, segundo o próprio Hans Staden, o hábito da antropofagia e, muito satisfeitos em prendê-lo, levaram-no para sua aldeia, na região de Ubatuba, com a finalidade de... devorá-lo. Curiosamente, acabou conseguindo safar-se e retornar à Europa, onde, no melhor estilo dos aventureiros de nosso tempo, escreveu um livro, Zwei Reisen nach Brasilien (¹), no qual contou não apenas as peripécias pelas quais passou, mas também algo sobre as particularidades do estilo de vida dos ameríndios com que tivera contato. A obra é tão boa que chega a ser surpreendente que não haja, quanto ao que eu saiba, nenhum longa-metragem expressivo com base nela.
Um dos hábitos indígenas assinalados pelo nosso viajante foi o costume de dormir em redes. Conta-nos Hans Staden que, uma vez prisioneiro dos tupinambás, foi levado à sua aldeia, sendo-lhe destinada uma rede (a que os nativos chamavam inni), na qual deveria dormir. Explica também que a rede era armada entre dois paus ou, quando em viagem, entre duas árvores. Essas redes por ele descritas eram tecidas com fios de algodão e, durante a noite, costumavam os índios manter uma pequena fogueira perto delas, tanto para aquecimento como para afastar insetos e animais peçonhentos.

Rede indígena de acordo com Hans Staden (²)
Hans Staden em uma rede, prisioneiro dos tupinambás (²)

Entretanto, devia haver indígenas que trançavam redes de outros materiais, porque o desenhista francês Hércules Florence relatou que, em 1826, durante a Expedição Langsdorff, viu uma feita de cipó:
"No lugar onde paramos, havia uns gravetos queimados entre cinzas, assim como uma rede de cipó suspensa à alta ramada de uma árvore, sem dúvida para pôr quem lá dormira ao abrigo das onças. Creio que fora algum índio, o qual fizera sua cama tão alta por se achar sozinho, pois tenho como certo que não deve haver o menor receio daquelas feras, quando se viaja em grupo." (³)
Estava a Expedição, segundo o mesmo autor, próximo ao ponto em que o Tietê lança suas águas no rio Paraná.

(1) Duas Viagens ao Brasil. Editado em Marburg em 1557.
(2) De acordo com a edição de Marburg. As imagens foram editadas para facilitar a visualização neste blog..
(3) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 45.


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terça-feira, 2 de agosto de 2011

A aventura revolucionária de um cavalo em Paraty

Paraty, uma das "cidades históricas" do Brasil, apresenta hoje uma singular característica, perceptível mesmo em meio à multidão de turistas que percorriam suas ruas em julho passado: as residências e pontos comerciais particulares estão muito bem cuidados, com excelente aspecto, quase não há imóvel que não apresente pintura recente. O burburinho nos mais diversos idiomas, o clima algo tépido, mesmo no inverno, o vento que sopra do mar, tudo contribui para fazer desse antigo porto do ouro que vinha das Gerais um lugar muito agradável.
Eu disse tudo? Nesse caso, cabe uma correção. Há muitos locais de grande interesse histórico (e turístico) que estão com aspecto sofrível, precisando de obras de conservação com urgência. Chafarizes e algumas igrejas são bons exemplos. Vai além o problema, já que a água da baía de Paraty estava imunda e, se digo só isso, estou ainda elogiando. Por toda parte havia muita sujeira e as ruas estavam cheias de fezes de animais.
Mas Paraty é Paraty, conserva muito do encanto do passado e sempre vale a visita. A propósito, vou contar um acontecimentozinho divertido que, mesmo sem querer, presenciei.
Há, na cidade, um grande número de charretes conduzidas por guias turísticos que, transportando turistas a passeio, vão repetindo sempre a mesma lista de informações: Nesta casa... Este muro... Esta igreja... E os bons cavalos, com toda a fleuma, seguem a marcha lenta imposta por seus condutores, enquanto fazem, a cada dia, o mesmo trajeto, sabe-se lá quantas vezes. Não quero emitir aqui nenhum julgamento sobre a atividade imposta a esses animais, mas registro que vi charretes em mau estado de conservação, deixando cair partes pelo caminho, e me pergunto se os animais são algo mais bem tratados que os veículos que conduzem. Enfim, espero que estejam recebendo água e alimento suficientes e que não sejam forçados a trabalho excessivo.
De volta ao assunto, estava eu fotografando a fachada da Igreja de Nossa Senhora das Dores quando uma dessas charretes passou por ali, reduzindo a marcha, à medida que o guia começava o discurso de sempre: "Esta é a Igreja de Nossa Senhora das Dores, construída..." (*) Não teve tempo para mais palavras, pois o cavalo, subitamente, saiu em disparada, levando guia e turistas em alta velocidade rua afora, ao som das gargalhadas dos que assistiam toda a aventura. Posso supor que nem mesmo esse bravo cavalinho suportava mais a irritante cantilena, que em seu labor diário já deve ter ouvido centenas, talvez milhares de vezes.


(*) Para não decepcionar nenhum leitor, acrescento a informação de que a Igreja de N. Sra. das Dores, oitocentista, era frequentada principalmente pelas senhoras da elite da bela Paraty.


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