domingo, 18 de dezembro de 2011

Os paulistas e seus hábitos alimentares na primeira metade do Século XIX

É lamentável, mas não há como retornarmos ao passado para bisbilhotar o que se fazia ou como vivia a gente de outros tempos. Tudo o que sabemos depende, em altíssimo grau, da existência dos chamados "documentos históricos", que nos permitem, até certo ponto, reconstituir como as coisas funcionavam, ainda que o façamos com nossos olhos do século XXI. A dificuldade é maior do que a que se tem ao entrar em contato com uma cultura diferente: nesse caso, pode-se "dar um mergulho" na cultura que se quer estudar, vivenciando a vida diária das pessoas que a compõem e/ou adotam, enquanto que, no que se refere ao passado, essa possibilidade não está, evidentemente, ao nosso dispor (¹).
Ora, meus leitores, os documentos históricos, por melhores e mais confiáveis que sejam, podem nos dar uma visão apenas parcial daquilo que se investiga, e nesta postagem veremos um caso assim.
Contratado como um dos desenhistas da Expedição Langsdorff, Hércules Florence foi enviado a São Paulo para empreender os preparativos para essa viagem de caráter científico que, partindo de Porto Feliz, exploraria o interior do Brasil. Ao entrar em contato com moradores da cidade de São Paulo, anotou em seu diário algumas observações muito interessantes, tais como esta, em que fala dos hábitos alimentares da população:
"Hospitaleiros, francos e amigos dos estrangeiros, são em extremo sóbrios, bebem muito pouco vinho e mantêm mesa simples, mas agradável. As principais comidas são frango, leitão assado ou cozido e ervas, tudo porém acepipado com um condimento que excite o apetite. Não comem pão: em seu lugar usam da farinha de milho ou de mandioca que sabem preparar com perícia, alva como leite, e muito boa ao paladar." (²)
Muito bem, quem ler este trecho irá, provavelmente, entreter a melhor visão possível sobre os paulistas da época. A verdade, no entanto, é que a opinião geral, pelo que sabemos de muitos outros documentos (inclusive por outras anotações do mesmo Hércules Florence) é que os paulistas eram tidos como gente vingativa, aferrada a questões de honra, de difícil relacionamento (³), e isso em grande medida graças à imagem popular a respeito dos antigos bandeirantes. Já quanto ao caso do pão, que Florence afirma não ser consumido, a razão para não vê-lo na mesa era que havia uma certa dificuldade em encontrar trigo para o preparo. Lavouras de trigo haviam existido, mas a necessidade da contratação dos serviços de moinhos fazia com que a Câmara Municipal de São Paulo vivesse às turras com os moleiros em tempos anteriores, o mesmo acontecendo em relação aos serviços dos padeiros, cuja idoneidade no peso do produto que vendiam era frequentemente questionada, de modo que só mais tarde, com o desenvolvimento dos transportes, é que se normalizou o fornecimento de trigo para panificação. Como se vê, a leitura de um único documento pode dar uma noção errada dos fatos. A comparação com outros é não só desejável, como necessária.
Entretanto, servindo-nos ainda da valiosa contribuição dos registros de H. Florence, veremos que ideia fazia esse artista da hospitalidade brasileira, um assunto já hoje muito estudado por historiadores e sociólogos. Escreveu ele:
"Fui hospedar-me em casa de um parente de um de meus dois companheiros de viagem, primeiro teto brasileiro em que fruí as doçuras da hospitalidade e daí por diante tive sempre ocasião de reconhecer os cuidados afetuosos e tocantes com que o povo brasileiro exercita este dever de caridade. Sem dúvida alguma é ele muito mais hospitaleiro do que qualquer outro da Europa e há sua razão para isso. Aqui a terra produz muito mais alimento do que podem os habitantes consumir." (⁴)
Algumas perguntas fazem-se indispensáveis: Eram todos os brasileiros hospitaleiros? Sempre recebiam bem os estrangeiros? Todo estrangeiro era bem recebido? Isso ocorria em todo o Brasil ou era mais frequente em alguns lugares que em outros? Que outros registros há relacionados a este? Como se vê, apenas a discussão deste único tópico pode ir bem longe!
Para concluir, vejamos uma outra anotação de Hércules Florence. Seguindo a viagem, faz algumas considerações sobre uma especialidade culinária muito difundida em São Paulo e que, segundo conta, chegou a apreciar, a canjica:
"Sempre com os meus dois companheiros, parti de São Paulo e fiz dez léguas de marcha para alcançar Jundiaí. A meio caminho, paramos junto a um ribeirão chamado Juqueri, que rola em suas areias partículas de ouro. Aí tomamos refeição numa casinha, onde pela primeira vez comi milho descascado e cozido sem sal, nem preparo algum. É a canjica, de que os paulistas fazem sempre uso no fim da comida. A princípio achei esse manjar singular, mas com o correr dos tempos habituei-me tanto a ele como se fora natural do país. Com açúcar e leite é coisa deliciosa." (⁵)

(1) Veja, sobre essa questão, a postagem "O uso de documentos históricos no trabalho do historiador".
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 14.
(3) Há uma citação de von Martius, mencionada por Capistrano de Abreu em Capítulos de História Colonial que expressa muito bem essa ideia:
"O paulista goza em todo o Brasil da fama de grande franqueza, impavidez e amor romanesco às aventuras e perigos. Associa a isso um temperamento apaixonado, que o leva à cólera e à vingança, e seu orgulho e inflexibilidade são temidos pelos vizinhos."
Deve-se entender que essa era a opinião popularmente difundida, que não tinha, obrigatoriamente, que corresponder à realidade, principalmente para efeito de consideração de casos particulares.
(ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de História Colonial: 1500 - 1800. Brasília, Ed. Senado Federal, 1998, p. 208.)
(4) FLORENCE, Hércules. Op. cit. p. 14.
(5) Ibid., p. 15.


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