quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Doces ou estudo? Rapaduras e crianças nos engenhos coloniais

Fato intrigante: vários autores que percorreram o Brasil em diferentes épocas do período colonial e mesmo durante o Império asseveram que as crianças brasileiras pareciam quase sempre tristonhas, apáticas, longe da vivacidade e dos folguedos próprios da idade, como se podia ver em outros lugares.
É um tanto difícil averiguar a completa veracidade desses relatos de viajantes, embora a menção por diferentes autores possa indicar que, pelo menos em alguns lugares, isso talvez acontecesse. Sendo assim, o que poderia alegrar a criançada? Bem, se considerarmos os engenhos de cana-de-açúcar, parece haver uma boa resposta, de acordo com o que escreveu André João Antonil, ao explicar como é que do melado de cana-de-açúcar se faziam as rapaduras:
"O melado, que se dá em pratos e vasilhas para comer, é o da primeira e segunda têmpera. Do da terceira, bem batido na repartideira se fazem as rapaduras, tão desejadas dos meninos, e vêm a ser melado coalhado sobre um quarto de papel com todas as quatro partes levantadas, como se fossem paredes, dentro das quais endurece esfriando-se, de comprimento e largura da palma da mão. E bem-aventurado o rapaz que chega a ter um par delas, fazendo-se mais de boa vontade lambedor destes doces papéis, do que escrivão nos que lhe dão para trasladar alfabetos." (*)
Curiosa observação, que eleva a posse de rapaduras às raias da bem-aventurança e nos mostra que, em matéria de preferir doces a estudo, a criançada de outras épocas não era, afinal, assim tão diferente da de hoje... 

(*) ANTONIL, André João (Giovanni Antonio Andreoni). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas, 1711, pp. 73 e 74.


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terça-feira, 27 de setembro de 2011

Os escravos mais infelizes em um engenho colonial de cana-de-açúcar

Na lavoura canavieira trabalhava-se sob a supervisão impiedosa de um ou mais feitores desde que o dia amanhecia até sol posto; nas moendas, o risco de mutilação era constante, até porque, em época de safra, a cana era triturada ininterruptamente, ou seja, durante as vinte e quatro horas do dia, o que significava longas jornadas de trabalho em péssimas condições de iluminação, com o uso de equipamentos muito perigosos; sobre a casa das fornalhas, podia-se bem dizer que era o inferno em miniatura. Seriam os escravos que trabalhavam nesses lugares os mais infelizes dentro de um engenho colonial de cana-de-açúcar?
Se acreditarmos em Antonil e no que escreveu em Cultura e Opulência do Brasil Por Suas Drogas e Minas, a resposta é um categórico não. Disse ele, em referência ao escravo que tinha a incumbência de amassar o barro usado na casa de purgar e aos que abasteciam de lenha, continuamente, as fornalhas:
"... os outros escravos, que cortam e trazem e cana, e os que obram na moenda, nas caldeiras, nas tachas, na casa de purgar e nos balcões, sempre têm em que petiscar, e só este miserável e os que metem a lenha nas fornalhas passam em seco. E ainda que depois todos tenham sua parte na repartição da garapa, contudo sentem muito o trabalho sem este limitado alívio entre dia." (*) 
É verdade que, via de regra, distribuía-se garapa a todos os trabalhadores do engenho, escravos ou livres. Mas, no entender do jesuíta Antonil, para alguns escravos a jornada de trabalho era especialmente penosa, porque viviam sob a tortura de não terem um petisco aqui e ali para aliviar o cansaço, o que mostra-se ainda mais grave diante do fato de o próprio Antonil ter anotado que, em alguns engenhos, as condições de alimentação dos escravos eram muito precárias. Isso não impediu que,  em observação imediatamente posterior, registrasse um comovente exemplo de solidariedade, além de óbvia esperteza, mesmo sob os rigores da escravidão:
"Mas não faltam parceiros que se compadeçam da sua sorte, dando-lhes já uma cana, já um pouco de mel, ou de açúcar; e quando faltasse nos outros a compaixão, não faltaria a eles indústria, para buscarem seu remédio, tirando donde quer quanto podem." (*)

(*) ANTONIL, André João (Giovanni Antonio Andreoni). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas, 1711, pp. 81 e 82.


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domingo, 25 de setembro de 2011

Animais na História do Brasil (Parte 8): Preguiças

Preguiça com filhote (²)
As preguiças recebem o nome de preguiças porque nos parecem, afinal, preguiçosas! É como se vivessem em perpétua câmera lenta. Há uma bem conhecida lenda que conta que uma preguiça, estando na floresta quase ao nível do chão, viu uma belíssima fruta no alto de uma árvore. Tal fato aguçou-lhe o apetite, de modo que ela começou a escalar a dita árvore, mas à sua maneira, pre-gui-ço-sa-men-te. Finalmente, alcançou seu alvo, mas ao tocar a fruta, esta caiu prontamente ao solo. Estava podre. Por quê? A preguiça havia gasto tanto tempo na subida que, nesse intervalo, a tão apetitosa fruta completara seu ciclo de maturação, ficando pronta para liberar as sementes. Exagero à parte, isso dá uma ideia de quão velozes são as preguiças, ou, se quisermos ser justos, de quão velozes seu metabolismo permite que sejam.
Ora, perversamente, em sua aparência esses bichos têm algo de humanoide, logo eles a quem nomeamos por um dos piores defeitos que alguém poderia ter, um dos sete pecados capitais. Basta ver como olham, como se movem, como carregam os filhotes. No século XVII, Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil, escreveu:
Preguiça-de-costas-pretas (²)
"Outro animal há a que chamam preguiça, por ser tão preguiçoso e tardo em mover os pés e mãos, que para subir a uma árvore ou andar um espaço de vinte palmos há mister meia hora, e posto que o aguilhoem, nem por isso foge mais depressa."
Tal descrição pode fazer supor que as preguiças são seres frágeis, facilmente capturáveis. Nem sempre. Este exemplo é ótimo: a preguiça, ainda que mui preguiçosa, foi veloz o bastante para fazer suas lindas garras escaparem das unhas dos taxidermistas da expedição Langsdorff, conforme escreveu Hércules Florence, estando próximo à embocadura do rio Juruena:
"Foi aí contudo que agarramos uma preguiça, que atravessava o Juruena. Metemo-la numa canoa e à noite a amarramos a uma árvore: de manhã, porém, desaparecera." (¹)

(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 222.
(2) WIED-NEUWIED, M. v. Abbildungen zur Naturgeschichte Brasiliens.


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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Animais na História do Brasil (Parte 7): Cervos e veados

"Nesse tempo o meu maior prazer, senão o único, era caçar - sair na fresca da manhã, com as névoas ainda soltas, rolando, fluindo ao rés da terra molhada, num rijo cavalo, entre cães, a surpreender, na beira das lagoas ou nos matos, a paca esquiva, o caititu atrevido, a jaguatirica ou correr no campo o veado arisco, mais ligeiro que o vento que assobiava aos meus ouvidos."
                                                                                                               Coelho Neto, Água de Juventa

Cervos e veados parecem ter recebido a triste primazia, quando ainda eram numerosíssimos nos campos do Brasil, da preferência dos caçadores, tanto dos que os procuravam como alimento como daqueles que disparavam suas armas simplesmente por esporte.
Cervo do Pantanal
(fotografado vivo, bem vivo, e espero que assim continue)
Dom Antônio Rolim de Moura Tavares, mais conhecido como Conde de Azambuja, mencionou, em seu relato da viagem desde São Paulo até Cuiabá, em 1751, que encontrou muitos desses animais pela altura do Rio Pardo, não deixando de fazer, digamos, observações gastronômicas:
"Além desta caça, há cervos, que são do mesmo feito e mais pequenos que os nossos veados. Há veados do tamanho de cabras; mas a carne mais tenra e gostosa que a dos nossos." (¹)
É quase desnecessário acrescentar que a comparação era feita em relação aos cervídeos que o conde português conhecera na Europa, antes que sua nomeação para o governo das minas de Mato Grosso o trouxesse ao Brasil, obrigando-o a empreender viagem pela rota das Monções. (²)
As peles de veado, assim como as de anta, tiveram largo emprego no Brasil  para confecção de uma série de objetos, dentre os quais, sapatos. Isso permitiu o desenvolvimento de um pequeno ramo de atividade de que podemos ter alguma ideia por uma anotação feita pelo naturalista Auguste de Saint-Hilaire em seu diário de viagem ao Rio Grande do Sul, no qual observa que,  na lista de coisas vindas de outras partes do Brasil para aquela Capitania,  haviam sido importadas de Santa Catarina em 1816, "195 peles de veado curtidas", o que nos leva a crer que a caça e exploração comercial desses animais eram, na época, usuais. (³)
O mesmo autor, narrando ainda suas viagens pelo território do Rio Grande do Sul e do atual Uruguai, acrescenta:
"Vi hoje, às margens da estrada, um rebanho de cervos que pastavam tranquilamente ao lado de avestruzes; eles não fugiram à nossa aproximação." (⁴)
Aqui tem-se a oportunidade de ver mais uma confusão entre seres vivos do Continente Americano e da África, dentre as muitas que se faziam na época - não eram avestruzes as aves vistas por Saint-Hilaire. Eram emas, claro, como o leitor já deve ter adivinhado.


(1) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas tomo 3, 3ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 203.
(2) Mais tarde chegou a ocupar o cargo de vice-rei do Brasil.
(3) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 123.
(4) Ibid., p. 159.


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terça-feira, 20 de setembro de 2011

Animais na História do Brasil (Parte 6): A capivara

"O sol deitou-se, e de novo se levantou no céu. Os guerreiros chegaram aonde a serra quebrava para o sertão; já tinham passado aquela parte da montanha, que por ser despida de arvoredo e tosquiada como a capivara, a gente de Tupã chamava Ibiapina."
                                                                                                                          José de Alencar, Iracema

Hans Staden descreveu a capivara como sendo um animal que podia viver tanto na água como sobre a terra. Tinha, segundo ele, o tamanho superior ao dos cordeiros, a cabeça parecida com a de uma lebre e orelhas curtas, pernas altas proporcionalmente ao corpo, pelo escuro, três unhas em cada uma das patas e, ressaltava, a carne semelhante à de porco. É recorrente, em diversos autores, a visão dos animais meramente como caça, para alimentação, fato a que já me referi nas postagens anteriores.

Capivara pastando à margem de um lago

Compelido a viajar pela rota das monções em 1751, o Conde de Azambuja, D. Antônio Rolim, deixou anotada uma observação sobre a caça às margens do Tietê:
"De caça de pele neste rio só pacas e capivaras. As primeiras são do tamanho de um leitão, com os pés curtos, o pelo como de cão pardo-escuro. Das outras o feitio é de rato, principalmente o da cabeça; o pelo na aspereza é de porco, mas pardo; são do tamanho de um marrão, e o gosto não é bom; a paca sim é mui gostosa." (¹)
Os leitores podem recordar-se de que, em postagens anteriores desta série, outros viajantes relataram uma diversidade bem mais significativa de animais "caçáveis" às margens do mesmo Tietê. O que teria ocorrido em tão breve intervalo de tempo, fazendo com que os animais desaparecessem? Talvez seja possível aplicar também neste caso as palavras do Padre Ayres de Casal, ao referir-se à desaparição de aves chamadas guarás no Maranhão:
"As espingardas têm feito maior destruição nestes viventes em três séculos do que as taquaras dos indígenas em toda a antiguidade." (²)

(1) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas tomo 3, 3ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975, pp. 201 e 202.
(2) Corografia Brasílica, vol. 2, 1817, p. 263.


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domingo, 18 de setembro de 2011

Animais na História do Brasil (Parte 5): Os ferozes queixadas

"Com efeito da orla da selva rompia um bando de porcos-do-mato. Mais de cem desses animais selvagens, com a pupila chamejante, ouriçando as ruivas cerdas, e afiando os longos colmilhos nos queixais chocalhados pela sanha, trotavam em fila, e figuravam na relva da campina a verga combusta do imenso arco de algum tamoio gigante.
Assim avançam os ferozes queixadas, rompendo relvas, estraçalhando quanto encontram com os cutelos das presas, ou esmagando-o sob a úngula bissulca das cem patas cadentes que batem o chão. Se o inimigo resiste ao primeiro ímpeto do centro, ou se receiam lhes fuja, as pontas do arco se estorcem, e a vara fatal cinge o mísero, que tomba em pedaços, como a isca à flor de tanque piscoso."
                                                                                                                                        José de Alencar, Til

Semelhantes sob vários aspectos aos porcos-monteses da Europa, os queixadas ou porcos-do-mato (¹) logo atraíram a atenção dos colonizadores, que viam na abundância desses animais a garantia de caça apetitosa e farta. Isso, naturalmente, a despeito do perigo, pois esses porcos selvagens, percorrendo as matas em enormes manadas, eram capazes de aterrorizar até o mais indômito dentre os caçadores. Algo parecidos na forma, os simpáticos e, quase sempre pacíficos caititus, às vezes "pagavam o pato".

Queixada ou porco-do-mato

Mas, se os queixadas eram assim tão perigosos, como caçá-los? Frei Vicente do Salvador, ao descrever os ditos animais, deixou-nos um relato de qual era o procedimento empregado em sua captura:
"Há também muitos porcos-monteses; alguns como os javalis de Espanha, os quais andam em manadas, e se o caçador fere algum há logo de subir-se a alguma árvore, porque vendo eles que não podem chegar-lhe remetem todos ao ferido e aos outros que se pegou algum sangue, com tanta fereza que se não apartam até não deixarem três ou quatro mortos no campo, e então se vão em paz, e o caçador também com a caça." (²)
Ainda assim, leitor, se fosse possível (hipoteticamente, claro), fazer uma enquete entre os sertanistas que andavam a percorrer o território ainda ignoto do Brasil nos tempos coloniais, os porcos-do-mato figurariam, sem sombra de dúvidas, entre os grandes terrores que os assaltavam. Alguns relatos mais, que agora consideraremos, podem confirmar esta ideia.
No primeiro deles, é o próprio Frei Vicente do Salvador quem conta de um ataque a uma tropa de entradistas:
"Em a era do Senhor de 1578, em que Lourenço da Veiga governava este Estado, se ordenou em Pernambuco uma entrada para o sertão em que foi por capitão Francisco Barbosa da Silva em um caravelão até ao rio de São Francisco, e por ser a gente muita, e não caber na embarcação, foram setenta homens por terra, levando por seu cabo a Diogo de Crasto, que falava bem a língua da terra e havia já ido da Bahia a outras entradas.
Estes, havendo passado o rio Formoso, foram cometidos de um bando de porcos-monteses, com tanta fúria e rugido de dentes, que os pôs em pavor, mas como tinham as espingardas carregadas, descarregaram-nas neles, e os fizeram voltar, ficando sete mortos, que foram bons para a matalotagem." (³)
Outros relatos vêm de Teotônio José Juzarte, o sargento-mor que, em 1769, conduziu uma monção pelo Tietê afora. Ele mesmo lista os porcos-do-mato entre os grandes perigos que ameaçavam os monçoeiros:
"Há as onças, e tigres e as grandes manadas de porcos-de-mato que são bravíssimos, e de muito longe se ouve o estrépito que fazem com os dentes, de tudo isto se tem grande cuidado durante a noite." (⁴)
E, para confirmarmos que há dia da caça e dia do caçador, outros dois breves trechos do Diário da Navegação anotado por Juzarte, sendo o segundo deles um exemplo no mínimo exótico dos tratamentos dispensados aos doentes no Período Colonial. Sem mais delongas, vamos a eles:
"... e saíram muitos homens a caçar por aqueles matos onde se perdeu um soldado [...]; ... sendo já oito horas da noite ouviram que o soldado gritava, acudindo para aquela parte deram com ele trepado sobre uma árvore sem saber em que parte estava, e disposto a ficar a morrer naquele sertão; contou que o motivo de se trepar naquela árvore fora um grande número de porcos-do-mato que com violenta carreira se encaminhavam para ele, aos quais seguia e perseguia uma onça de extraordinária grandeza, que à vista disto se salvou em cima daquela árvore para passar ali a noite até o dia seguinte para então ver se acertava com o lugar aonde ficavam as embarcações [...]." (⁵)
"... seguindo encontramos uma quantidade de porcos-do-mato que com os dentes faziam grande bulha, embicamos em terra, e logo saltaram alguns caçadores, e com efeito mataram três, os quais se repartiram pelos doentes..." (⁶)
Sim, sua leitura está correta: "os quais se repartiram pelos doentes"! Sucede que a comida escasseava entre os monçoeiros e, ao capturarem alguma caça, reservavam-na para os que estavam mais debilitados.

(1) A lista de animais que aparece na Corografia Brasílica do Padre Ayres de Casal, mencionada na primeira postagem desta série, refere apenas a existência de porcos-monteses no Brasil.
(2) História do Brasil.
(3) Ibid.
(4) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas tomo 3, 3ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 236.
(5) Ibid., p. 244.
(6) Ibid., p. 271.


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quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Animais na História do Brasil (Parte 4): Churrasco de anta

"Mas Pedro Ruivo ia aguilhoado pelo medo e varava o mato como a terrível anta, que no seu espanto não enxerga obstáculo diante de si."
                                                                                              Aluísio Azevedo, Mistério da Tijuca

"Livre, como o tufão, corre o vaqueiro
Pelos morros e várzea e tabuleiro
Do intrincado cipó.
Que importa’os dedos da jurema aduncos?
A anta, ao vê-los, oculta-se nos juncos,
Voa a nuvem de pó."
Castro Alves, Os escravos


Frei Vicente do Salvador, famoso por ter sido, talvez, o primeiro nascido em solo brasileiro a escrever uma História do Brasil, assim descreveu as antas:
"Há outros animais a que chamam antas, que são de feição de mulas, mas não tão grandes, e têm o focinho mais delgado, e o beiço superior comprido à maneira de tromba, e as orelhas redondas, a cor cinzenta pelo corpo, é branca pela barriga, estas saem a pascer só de noite, e tanto que amanhece metem-se em matos espessos, e ali estão o dia todo escondidos [...]."
Terá nosso primeiro historiador nativo alcançado seu propósito com a descrição que fez? Pode-se ter uma ideia se forem comparadas as suas palavras com o que se vê na foto abaixo.

Anta ou tapir

A anta (também chamada tapir) causou forte impressão nos primeiros colonizadores por suas dimensões - um espécime de bom tamanho pode chegar perto dos trezentos quilos. Toda essa massa era muito interessante para gente acostumada a ver os animais como comida ambulante, embora, conforme logo saberemos, a qualidade da carne e seu sabor fossem um tanto discutíveis. O significado prático disso é que carne de anta não era, geralmente, a primeira escolha, mas era consumida na falta de alguma coisa melhor.
O couro da anta, por outro lado, era apreciado nos tempos coloniais. Dele eram feitos calçados rústicos, mas resistentes, além de outros artigos, o que incluía até armas empregadas nas bandeiras de apresamento de índios. Os testamentos deixados por bandeirantes nos informam que, entre seus pertences, havia quase sempre objetos confeccionados com couro de anta.
Voltemos agora à questão do sabor desse avantajado herbívoro. Hércules Florence, em seu diário da Expedição Langsdorff (1825 a 1829), deixou preciosas anotações a respeito. Uma delas relata as aventuras de uma caçada:
"Depois do meio-dia tivemos o espetáculo de uma caçada de anta (tapir). Supusera o pobre bicho poder passar o rio sem tropeço, mas foi pressentido e, dado o alarma, num momento acudiram todos à margem, saindo logo três canoas a persegui-lo. Debalde mergulhava, debalde nadava largo tempo debaixo d'água para subtrair-se à morte, quando ia alcançar a barranca oposta e atirar-se no mato, a bala certeira de nosso piloto varou-lhe o crânio. Um dos proeiros, bom mergulhador, foi tirá-lo do fundo da corrente." (¹)
Por que toda essa carnificina, aqui descrita com cores que poderíamos rotular de cinematográficas? Ah, leitores, as viagens ao interior nesse tempo traziam aos monçoeiros inúmeras dificuldades e, além das doenças, do cansaço, do desconforto, dos mosquitos, havia sempre a ameaça da fome, pois vastidões sem conta eram percorridas sem que se encontrasse um único habitante e, por conseguinte, sem que se visse um ponto de abastecimento, onde se pudessem comprar gêneros alimentícios. Daí a lançarem-se os expedicionários a caçar o que aparecesse pela frente, era só um passo.
Em outra passagem, diz o mesmo autor:
"Matou-se uma anta. Dizem que a carne desse animal faz sair os humores do corpo, razão pela qual obra como purgante e produz moléstias de pele." (²)
Tal observação, no entanto, não impediu que os expedicionários, poucos dias depois, fizessem um verdadeiro banquete de carne de anta, conforme nos conta o próprio H. Florence:
"O ajudante do guia que fora na véspera a um barreiro (lugar onde há depósitos de sais naturais) fazer durante a noite espera de antas, matou lá quatro desses animais. Quando amanheceu, um batelão foi buscá-los, mas não trouxe senão três, porque o quarto caíra n'água e desaparecera. Nossa gente comeu carne a fartar. A abundância reinava no acampamento: por todos os lados faziam-se assados e churrascos. Mandamos moquear uma boa porção, expondo-a à fumaça de um fogaréu, para poder conservá-la. Só achei comíveis o fígado e o coração. O Sr. Taunay, que depois do naufrágio do Urânia nas Ilhas Malvinas vira-se na contingência de comer carne de cavalo, assevera que a do tapir tem o mesmo gosto." (³)
Satisfeita, pois, a curiosidade quanto ao sabor de carne de anta (ao menos no que se refere à percepção de quem fez o relato), resta dizer que pela cabeça do excelente desenhista da Expedição Langsdorff passou uma ideia extra, pra lá de curiosa, ou seja, a de que antas poderiam servir, nem mais, nem menos, como animais de carga:
"A anta domestica-se com facilidade e poderia prestar, como animal de carga, os mesmos serviços que as bestas. Tem, com efeito, tanta força quanto elas, embora seja de menor tamanho." (⁴)
Como jamais vi por aí uma "anta de carga", tal proposta dispensa maiores comentários.

(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 23.
(2) Ibid., p. 36.
(3) Ibid., p. 39.
(4) Ibid., p. 23.


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terça-feira, 13 de setembro de 2011

Animais na História do Brasil (Parte 3): Histórias de onça

"Era uma onça enorme, que com as garras apoiadas sobre um grosso ramo de árvore, e os pés quase suspensos num galho superior, encolhia o corpo, preparando o seu salto gigantesco."
                                                                                                                                            José de Alencar, O Guarani

"Era a hora em que a tarde se debruça
Lá da crista das serras mais remotas...
E d'araponga o canto, que soluça,
Acorda os ecos nas sombrias grotas;
Quando sobre a lagoa, que s'embuça,
Passa o bando selvagem das gaivotas ...
E a onça sobre as lapas salta urrando,
Da cordilheira os visos abalando."
Castro Alves, A Cachoeira de Paulo Afonso


Depois de ter ficado entendido, pela postagem anterior, que por muito tempo onças-pintadas e onças-pardas foram chamadas, respectivamente, de tigres e leões, chegou a hora de verificar que relacionamento houve entre humanos e esses felinos, o que significa dizer que, pelos documentos de que dispomos, a caça devia ser recíproca. As onças tinham, pelo menos, a vantagem de não serem vistas como especialidade culinária, o que já era muito, em tempos nos quais, na Europa, caçar era frequentemente um privilégio para nobres e monarcas e, por isso, a gente comum, uma vez chegada ao Brasil, lançava-se a perseguir os animais, desfrutando de um "esporte" que pode até parecer sanguinário aos nossos olhos, mas que era considerado "coisa de homem" naqueles tempos.
Na obra de Hans Staden, vê-se, em terra, um
animal que deve ser uma onça-pintada
Uma gravura que aparece na edição de Marburg da obra de Hans Staden, Zwei Reisen nach Brasilien (¹), mostra dois animais em terra, aparentando, um deles, ser uma onça-pintada; ainda do século XVI temos, de Pêro de Magalhães Gândavo (²), este relato:
"Os bichos mais feros e mais danosos que há na terra são tigres, e estes animais são deles tamanhos como bezerros, vão-se aos currais do gado dos moradores e matam muito dele e são tão feros e forçosos que uma mão que lançam a uma vitela ou novilho lhe fazem botar os miolos fora e levam-no arrastado para o mato. Também pela terra dentro matam e comem alguns índios quando se acham famintos. Sobem pelas árvores como gatos, e dali espreitam a caça que por baixo passa e remetem de salto a ela, e desta maneira não lhes escapa nada: alguns destes animais matam em fojos os moradores da terra."
Já dá para "sentir o clima" em relação às onças, não é? Veja-se então esta outra referência, agora de Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil (³):
"Há também muita diversidade de animais nocivos, que se não comem, como são onças, ou tigres, que matam touros, e se estão famintos acometerão um exército, mas se estão fartos, não só não ofendem a alguém, mas nem ainda se defendem e se deixam matar facilmente."
Bandeirantes e monçoeiros tiveram também seus encontros (e desencontros) com essas feras do Brasil. Uma bandeira metida a apresar índios das missões, obrigada a retroceder, acabou dispersa, como se disse na época, "para maior regalo de tigres e jaguares". Além disso, o Capitão João Antônio Cabral Camello, escrevendo em 1727 sobre a rota das monções, assinalou:
"Este Rio dos Porrudos não cede ao Paraguai na abundância de peixe [...], e nele não faltam onças, que têm feito algumas mortes." (⁴)
Caça à onça, de acordo com Rugendas (⁷)
Um ano antes (em 1726, portanto), durante a monção que levou a Cuiabá o governador Dom Rodrigo César de Meneses, um cozinheiro se extraviou da tropa, fazendo o secretário, a respeito disso, este relato:
"João Francisco cozinheiro de S. Exª que saltando em terra a buscar uma faca que lhe tinha esquecido com tenção a pé seguindo pela margem do rio a canoa até o sítio, onde pousasse a tropa, não apareceu até o presente e se entende que ou se perdeu no mato, ou foi pasto de alguma onça." (⁵)
Ainda mais uma aventura de onças caçadoras - dessa vez quem conta é Saint-Hilaire, em suas andanças pelo Rio Grande do Sul e Uruguai (⁶):
"...Matias veio dizer-nos que acabavam de encontrar quatro tigres, dois grandes e dois pequenos, que estavam comendo o melhor de meus cavalos. Estivera a persegui-los, mas se embrenharam na mata que margeia o lago."
Como se diz, porém, um dia da caça, outro do caçador. Em Corografia Brasílica, obra publicada em 1817, escreveu o Padre Ayres de Casal, ao tratar de uma localidade na então província de Mato Grosso:
"Defronte está a Real Fazenda da Cahyssara, onde se cria numeroso gado vacum e também cavalar, e onde se tem morto grande número de tigres."
Se, no entanto, restar alguma dúvida de que, além de exímias caçadoras, as onças eram também frequentemente caçadas, fosse pela belíssima pele (das onças-pintadas, particularmente) ou porque atacavam o gado (qualquer onça...), basta observar as gravuras que deixaram artistas que estiveram no Brasil no século XIX, tais como Debret e Rugendas, que podem ser vistas como ilustrações desta postagem.

Caça à onça-pintada, Debret (⁸)

(1) Duas Viagens ao Brasil, c. 1557. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Tratado da Terra do Brasil.
(3) Obra provavelmente concluída durante a década de 20 do século XVII.
(4) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas tomo 3, 3ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 132.
(5) Ibid., p. 117.
(6) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 293.
O registro data de 1821.
(7) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. 
Paris: Engelmann, 1835. O original pertence ao acervo da Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(8) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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domingo, 11 de setembro de 2011

Animais na História do Brasil (Parte 2): Tigres e leões na América do Sul?

Em 1628 o capitão-general do Paraguai, Céspedes Xeria, percorreu o rio Tietê, rumo à cidade de Asunción (*), deixando, de sua tormentosa viagem, um relato, no qual afirmava que às margens do rio havia "grandíssima quantidade de caça, muitos tigres, leões, muitíssimas antas, que matamos e vínhamos comendo a carne por ser como a de vaca."
Os leitores sul-americanos devem estar pensando que o nosso viajante andava a ter alucinações - tigres e leões no Brasil? Mas o homem não era maluco, estava apenas atribuindo às onças (pintadas e pardas, respectivamente), os nomes que os primeiros colonizadores lhes deram, por analogia com animais da fauna afro-asiática que já conheciam. Portanto, para que não reste qualquer dúvida, reforço a explicação: a onça-pintada ou jaguar (Panthera onca), foi chamada de "tigre", enquanto a onça-parda ou suçuarana (Puma concolor) era designada como "leão".

Onça-pintada
Ora, leitores, as onças foram, durante séculos, os mais temidos animais do Brasil, e disso temos uma quantidade imensa de relatos (que veremos na próxima postagem), alguns de arrepiar os cabelos, pelo menos dos que, desarmados e solitários, incorriam na desdita de encontrar-se com alguma delas, faminta, mata adentro. Esses felinos, a um só tempo belos e ferozes, povoavam os pesadelos tanto de índios como de colonizadores e vieram a ocupar um lugar de destaque em muitas lendas populares.

Onça-parda

(*) A chamada "União Ibérica", período no qual Portugal foi regido por reis espanhóis, durou de 1580 a 1640.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Animais na História do Brasil (Parte 1): Os "quadrúpedes indígenas" do padre Ayres de Casal

"Assim como a terra é grandíssima, assim são muitas as qualidades e feições das criaturas que Deus nela criou."  
Pero de Magalhães Gândavo, Tratado da Terra do Brasil

Corografia Brasílica é o nome da obra, em dois volumes, publicada pelo Padre Manuel Ayres de Casal em 1817, obra essa já citada muitas vezes neste blog. Pois bem, "corografia" significa descrição de uma determinada área geográfica e, neste caso específico, como diz o título, a descrição é das terras brasileiras. A obra foi muito reputada ao longo do século XIX, já que reunia informações em uma proporção como ainda não se fizera. Embora seja verdade que hoje saibamos haver nela muitas incorreções, não há como negar a importância a ela atribuída no passado.
Além de fazer descrição do território brasileiro, reunindo informações dentro daquilo que, na época, estava disponível, realizando também um esboço de fatos relacionados à História do Brasil, o Padre Ayres de Casal preocupou-se em listar os elementos mais destacados (segundo seus critérios), da flora e da fauna brasileiras. É nesse contexto que menciona a existência de "trinta e sete castas de quadrúpedes indígenas", que poderíamos enumerar de acordo com a tabela abaixo:


"Trinta e sete castas de quadrúpedes indígenas" - entenda-se, nativos do Continente Americano, conforme o parecer do Padre que, como se verá, não era o que poderíamos chamar de especialista em zoologia (para se ter uma ideia, na seção de "Zoologia" de cada parte de sua obra, incluía a população indígena local...). Entenda-se também que está denominando "quadrúpedes" a animais mamíferos (todo mundo sabe que há animais de quatro patas que não são mamíferos, e mamíferos que não têm quatro patas). E, como se vê facilmente, a lista está longe de ser tanto correta quanto completa. Em abono do autor, porém, deve-se reconhecer que não tinha, em questões zoológicas, nenhuma presunção de rigor científico, sendo antes seu propósito descrever a fauna do Brasil para leitores que tivessem interesse pelo assunto, e não para especialistas.
Se é assim, qual a importância dessa "classificação"?

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Democracia grega e democracia atual: quais as diferenças?

Até onde sabemos, os antigos gregos foram os autores das primeiras experiências de democracia que prosperaram, destacando-se, dentre essas, a da cidade-Estado de Atenas. Hoje, no entanto, chegamos a falar em democracia a todo instante, dando por suposto que essa é a forma de governo mais "óbvia" e "normal". A questão que proponho é: que diferenças haveria entre a democracia da Grécia Antiga e os governos democráticos que vemos no mundo atual?
Selecionei dois pontos para comparação - embora pudesse citar vários outros.
Primeiro, o conceito de cidadão para os gregos era muito diverso daquele adotado nas modernas democracias. O cidadão grego típico era o indivíduo do sexo masculino, adulto, em pleno exercício das obrigações militares (que não eram poucas!), proprietário de terras, nascido em território da cidade-Estado em questão e, evidentemente, de condição livre. Essas exigências deviam-se, entre outros fatores, à necessidade de que tivesse tempo de sobra para estar na Ágora,  a fim de dedicar-se a administração da cidade, enquanto outros (escravos, por exemplo), faziam todo o trabalho braçal,  garantindo o sustento e a prosperidade da elite cidadã. Vê-se, pois, que o número de pessoas em condições de participar ativamente de uma democracia grega reduzia-se bastante, porque mulheres (mais ou menos metade da população), crianças e adolescentes de ambos os sexos e escravos (a maior parte da força de trabalho) dela estavam necessariamente excluídos.
E hoje? As regras de cidadania variam um pouco de país para país, mas excetuando-se o que ocorre em alguns Estados esquizofrênicos, tanto homens como mulheres são (ao menos legalmente), cidadãos plenos, podendo votar e ser eleitos. Além disso, profissão ou condição econômica não costuma ser um aspecto restritivo ao direito de cidadania, pois já vão longe, em quase toda parte, os dias do voto censitário.
Um segundo aspecto a ser comparado (e que decorre do primeiro), é que a democracia, na Grécia Antiga, era direta, enquanto hoje, com exceção de uns pouquíssimos casos, é representativa. Isso quer dizer que, quando convocado, o cidadão grego comparecia pessoalmente à praça da cidade para discutir e votar os assuntos que interessavam ao governo, podendo, inclusive, ser escolhido para exercer cargos que hoje chamaríamos de executivos e judiciários, mediante um mandato (geralmente de um ano) para o qual era indicado quase sempre por sorteio. Nessas condições, era muito importante saber falar de forma clara e persuasiva, razão pela qual os gregos davam muita importância à educação dos jovens, como garantia de que seriam capazes de exercer convenientemente, quando adultos, seus compromissos de cidadãos.
As democracias contemporâneas, conforme já disse, são quase todas representativas, salvo quando, eventualmente, os cidadãos são convocados a um plebiscito cujo resultado venha a ser normativo. É fácil entender a razão. Imagine que todos os cidadãos brasileiros fossem convocados a comparecer em determinada data à Praça dos Três Poderes para votação direita de um determinado assunto...
Vê-se, leitor, portanto, que na Grécia Antiga o conceito restritivo de cidadania compatibilizava-se com a democracia direta, enquanto hoje, devido à ampliação do status de cidadão a um número muito maior de pessoas, pratica-se a democracia representativa. Elegem-se representantes (deputados), que, no caso do Brasil, votam no Congresso Nacional em nome dos cidadãos que representam. Os Senadores, embora eleitos por voto popular, são representantes de seus respectivos Estados.


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domingo, 4 de setembro de 2011

Engenhos e engenhocas

Quando é usada a expressão "engenho de cana-de-açúcar" ou "engenho colonial" pode-se dar a falsa ideia de que todas essas unidades açucareiras eram muito semelhantes. Ocorre, entretanto, que não eram. Havia engenhos funcionando com diferentes sistemas de moagem, para distintas capacidades de produção.
Falando dos engenhos de Pernambuco, Pero de Magalhães Gândavo, que escreveu o seu Tratado da Terra do Brasil ainda no século XVI, assinalou:
"Alguns moem com bois, a estes chamam trapiche, fazem menos açúcar que os outros, mas a maior parte dos engenhos do Brasil mói com água."
Detalhes, mesmo, seriam dados por Antonil em Cultura e Opulência do Brasil Por Suas Drogas e Minas, depois de considerar que o nome de "engenho" para as oficinas onde se fabricava o açúcar era plenamente justificado. É ele quem melhor explica a distinção entre pequenas e grandes unidades produtoras, dizendo:
"Dos engenhos, uns se chamam reais, outros, inferiores, vulgarmente engenhocas. Os reais ganharam este apelido por terem todas as partes de que se compõem, e todas as oficinas perfeitas, cheias de grande número de escravos, com muitos canaviais próprios e outros obrigados à moenda, e principalmente por terem a realeza de moerem com água, à diferença de outros, que moem com cavalos e bois, e são menos providos e aparelhados, ou pelo menos com menor perfeição e largueza das oficinas necessárias e com pouco número de escravos, para fazerem, como dizem, o engenho moente e corrente."

Engenho de açúcar com roda d'água (Rugendas) (¹)

Tem-se, pois, aqui, a principal diferença entre um engenho real e uma engenhoca ou trapiche: enquanto o primeiro era dotado de roda d'água, o último moía mediante a força de bois ou cavalos. Daí resultava, leitor, uma outra consequência, que não pode ser atribuída à totalidade dos casos, mas que era, contudo, muito frequente: os engenhos reais eram dedicados prioritariamente à produção de açúcar (sendo outros derivados da cana apenas uma produção secundária), enquanto as engenhocas tinham seu principal uso na fabricação de aguardente.
Há que acrescentar, ainda, que se a moenda fosse mesmo muito pequena, podia ser acionada pela força humana, o que equivale a dizer, por escravos, conforme a gravura de Debret que pode ser vista abaixo.

Pequena moenda de cana-de-açúcar (Debret) (²)

(1) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Considerações sobre a Independência do Brasil e de seus vizinhos

"Este ano parece que remoçou o aniversário da Independência. Também os aniversários envelhecem ou adoecem, até que se desvanecem ou perecem. O dia 7 por hora está muito criança."
                                  Machado de Assis, História de Quinze Dias, 15 de setembro de 1876

"Grito do Ipiranga? Isso era bom antes de um nobre amigo, que veio reclamar pela Gazeta de Notícias contra essa lenda de meio século."
                                   Machado de Assis, História de Quinze Dias, 15 de setembro de 1876


Sem entrar em discussões sobre a historicidade do assim chamado "Grito do Ipiranga", há que se reconhecer que, no estabelecimento da data da independência de muitos países, existe um fator de arbitrariedade. Isso acontece porque, na esmagadora maioria dos casos, a independência é resultado de um longo processo, frequentemente conflituoso (pela disparidade dos interesses em jogo) e não a consequência de um ato isolado, por mais importante que se reconheça.
Se o "Grito do Ipiranga" é datado de 7 de setembro de 1822, o reconhecimento formal da independência do Brasil só aconteceu, por parte da antiga Metrópole, Portugal, em 29 de agosto de 1825. Mesmo no Brasil, há, por exemplo, na Bahia, a comemoração da data de 2 de julho de 1823, conhecida exatamente como "Independência da Bahia".
Por que, então, sete de setembro?
A opção por essa data tem de ser entendida dentro de um cenário maior, aquele relacionado à empreitada de legitimar como imperador, em todo o vastíssimo e diversificado território brasileiro, um jovem português, filho da dinastia europeia que reinava na ex-Metrópole. É nesse quadro que fazia sentido a escolha de um momento que tinha todos os ingredientes necessários à exaltação da figura de D. Pedro I.
Neste selo da República Argentina,
vê-se o retrato de San Martín, um dos
líderes da independência na
América Espanhola
Outro aspecto interessante é que a maioria dos países da América do Sul (inclusive o Brasil), acabou por tornar-se independente dentro do contexto da expansão do pensamento iluminista e das guerras napoleônicas, ou seja, nas primeiras décadas do século XX, não devendo ser subestimada a influência da recentemente conquistada independência das treze colônias inglesas da América do Norte. Mas há exceções: Suriname e Guiana, cujas independências datam da segunda metade do século XX. Desse modo, cada país independente da América do Sul escolheu para sua data nacional aquela que parecia mais relevante, não sendo, necessariamente, a da data de reconhecimento formal da independência em relação à sua anterior e respectiva Metrópole (o que, em se tratando da chamada "América Espanhola", só veio a ocorrer, na maioria dos casos, muitos anos mais tarde).
Com o fim de elucidar essa questão, vale a pena considerar as datas oficiais de independência (comemoradas) e os eventos a que estão associadas, nos países independentes da América do Sul - os vizinhos do Brasil, portanto:

Argentina - 9 de julho de 1816: Proclamação da Independência em San Miguel de Tucumán.

Bolívia - 6 de agosto de 1825: Declaração de Independência, recebendo o país, inicialmente, o nome de República de Bolívar, já que seu primeiro governante enquanto nação independente foi Simon Bolívar.

Chile - 18 de setembro de 1810: Formação da primeira junta nacional de governo.

Colômbia - 20 de julho de 1810: É, por assim dizer, um marco inicial da independência da Colômbia, que resultou de um processo extremamente complexo. Um confronto entre espanhóis e criollos (brancos nascidos na América) acabou por conduzir à deposição do vice-rei, representante do poder espanhol na colônia. A data de 20 de julho não é a única no calendário civil colombiano relacionada aos acontecimentos do processo de independência.

Equador - 10 de agosto de 1809: É outro caso em que há mais de uma data importante associada à independência; entretanto a formação da chamada Junta de Quito, em 10 de agosto de 1809, é tida como primeiro passo importante rumo à separação efetiva.

Guiana - 26 de maio de 1966: Data oficial da independência (do Reino Unido). Entretanto, é feriado nacional importante o que comemora a instituição da República em 23 de fevereiro de 1970.

Paraguai - 14 de maio de 1811: Marca o início do movimento militar de luta pela independência do Paraguai, que acabou por afastar do poder o governador que representava a autoridade espanhola.

Peru - 28 de julho de 1821: É a data da proclamação da independência, sob a liderança de San Martín. Como na maioria dos casos, a independência efetiva foi um processo trabalhoso e demorado.

Suriname - 25 de novembro de 1975: É a data da independência em relação à Holanda.

Uruguai - 25 de agosto de 1825: Assinala a data da declaração de independência, separando-se do Brasil.

Venezuela - 5 de julho de 1811: É, também, a data da declaração de Independência, que somente seria reconhecida pela Espanha muito tempo depois.


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