quinta-feira, 8 de março de 2012

A reclusão de mulheres no Brasil Colonial (Parte 1): Olhando a vida através das gelosias

"Nem um nem outro reparou em certa dama que nesse instante e cerca deles passava para a igreja, acompanhada por uma velha aia. Estava ela completamente velada com o espesso crepe da mantilha, de modo que era impossível distinguir feições."
                                                                                                    José de Alencar, As Minas de Prata

Sabem, meus leitores, o que eram gelosias? Eram aquelas janelas cobertas de travessas de madeira, típicas de algumas regiões do Brasil no Período Colonial (mas também existentes em alguns países da Europa, de onde o costume foi importado). Serviam, naturalmente, para impedir que aqueles que passassem diante de uma casa pudessem ver quem ou o que havia dentro dela, o que significava, para os hábitos da época, manter as mulheres longe das vistas de quaisquer estranhos, já que os homens, com maior liberdade para ir e vir, não sofriam tanto as consequências de se ver o mundo, literalmente, através de grades de madeira.

Casa colonial com gelosias

As tradições vigentes determinavam que as mulheres "de boa família" não tivessem contato com homens que não fossem "da casa". Sair, só em companhia do pai, do marido, dos irmãos, dos filhos, e isso em raras ocasiões, para ir à missa, a algum casamento, ao sepultamento de alguém conhecido. Triste vida, não resta dúvida, essa que por séculos coube à maioria das mulheres do Brasil, destinadas desde o nascimento aos trabalhos domésticos, a um casamento precoce determinado por escolha paterna e à procriação, em virtude da qual muitas morriam, no parto de um dos muitos filhos que se esperava que tivessem. Afinal, os dias em que Joseph Lister introduziria uma série de procedimentos para debelar o catastrófico índice de mortes por infecções ainda estavam muito, muito distantes, no tempo, claro, mas também no espaço...
Voltando ao assunto das nossas tristes enclausuradas, vamos a alguns trechos de documentos que mostram o que de fato acontecia. O Padre Antonil, depois de explicar a necessidade da hospitalidade no Brasil em razão da inexistência de estalagens, aconselhava os senhores de engenho a terem casa separada para os hóspedes:
"Ter casa separada para os hóspedes é grande acerto: porque melhor se recebem, e com menor estorvo da família, e sem prejuízo do recolhimento que hão de guardar as mulheres e as filhas e as moças de serviço interior ocupadas no aparelho do jantar e da ceia." (¹)
Já seria suficiente, creio, mas há mais. O costume de trancafiar as mulheres durou séculos, como descreveria Varnhagen, referindo-se aos tempos imediatamente anteriores à chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil (1808):
"As mulheres sofriam no seu tanto mais tirania, com os hábitos de reclusão gerais no país, escondendo-se das pessoas estranhas à família, como se fossem mouras ou turcas." (²)
O estabelecimento da Corte no Brasil, a Independência e o maior contato com o Exterior, fruto da gradual melhoria nas condições de transporte e comunicações, contribuíram bastante para que, aos poucos, ao menos nas cidades mais importantes, os costumes fossem mudando, trazendo novos ventos de modernidade, o que significava, por suposto, novos padrões de convivência entre os sexos. A leitura da numerosa produção literária brasileira do século XIX dará, a quem tiver interesse no assunto, uma boa ideia de como essa transição ocorreu, alterando de forma sensível os padrões de sociabilidade.
No interior do país, todavia, as novidades, em quase todos os aspectos do quotidiano, demoravam muito a chegar. Assim, percorrendo o Brasil nos anos vinte do século XIX, Hércules Florence pode observar, com respeito à conduta das mulheres em Cuiabá:
"Não faz muito que elas começam a aparecer à mesa de jantar ao lado dos parentes e maridos. Entretanto em todas as casas do sertão, onde recebi hospitalidade, nenhuma delas se apresentou, ficando sempre no fundo dos aposentos, a menos que não seja a pessoa já muito familiar." (³)
Área mineradora por excelência, povoada por gente oriunda, a princípio, de São Paulo (⁴), não era surpreendente que os costumes trazidos com os bandeirantes lá permanecessem por mais tempo, como permaneceram, século XIX afora, em muitos outros pontos do Brasil.

(1) ANTONIL, André João (Giovanni Antonio Andreoni). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 31.
(2) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 2, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 1069. O trecho "como se fossem mouras ou turcas" referia-se, obviamente, a costumes vigentes em algumas regiões do Oriente, e não a uma etnia ou nacionalidade específica.
(3) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 128.
(4) mas também, ao propagar-se a notícia do descobrimento aurífero, por pessoas de muitos outros lugares.


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