quinta-feira, 31 de maio de 2012

O Caminho Velho das Minas

O "Caminho das Minas", era a rota que conduzia às Gerais os exploradores de ouro que vinham do Rio de Janeiro e, como é óbvio, era por ele, em sentido inverso, que o ouro dos "Reais quintos" saía das minas e seguia para o porto do Rio de Janeiro, de onde se despedia do Brasil, para nunca mais voltar.
O chamado "Caminho Velho" tinha, sob o aspecto da segurança, o grave inconveniente de que o ouro, chegando a Parati, precisava seguir por mar até o Rio de Janeiro, e era justamente neste trecho que a ameaça de um ataque de piratas ou corsários se fazia maior.

Os canhões de Parati (RJ) são uma lembrança dos tempos em que era preciso defender
o ouro das Gerais, que vinha pelo "Caminho Velho", dos eventuais ataques de piratas e corsários.

Podia-se, segundo Antonil, fazer a viagem em uns trinta dias, desde que "marchando de sol a sol", como ele mesmo expressou, coisa que quase ninguém conseguia, ou porque os pés não suportavam, ou porque era necessário dar descanso aos animais de carga. O caminho, propriamente, era o seguinte, segundo alguém que fez a viagem em companhia do Governador Artur de Sá e que depois o relatou ao Padre Antonil:
"Partindo aos 23 de agosto da cidade do Rio de Janeiro foram a Parati. De Parati a Taubaté. De Taubaté a Pindamonhangaba. De Pindamonhangaba a Guaratinguetá. De Guaratinguetá às roças de Garcia Rodrigues. Destas roças ao Ribeirão. E do Ribeirão com oito dias mais de sol a sol chegaram ao Rio das Velhas aos 29 de novembro, havendo parado no caminho oito dias em Parati, dezoito em Taubaté, dois em Guaratinguetá, dois nas roças de Garcia Rodrigues e vinte e seis no Ribeirão, que por todos são cinquenta e seis dias. E tirando estes de noventa e nove, que se contam desde 23 de agosto até 29 de novembro, vieram a gastar neste caminho não mais que quarenta e três dias." (*)
Parece-lhe estranho que se dessem tantas voltas, ao invés de seguirem diretamente às Gerais? Há pelo menos duas razões para isso, que são:
a) Não se conhecia o interior do Brasil tão bem a ponto de permitir uma rota menos complicada, de modo que, partindo de Parati, buscava-se encontrar a rota dos paulistas, essa já mais amplamente percorrida;
b) Evitavam-se áreas de relevo demasiadamente acidentado, pois os meios de transporte disponíveis na época não suportariam tal incômodo. 

(*) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 163.


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terça-feira, 29 de maio de 2012

Ditaduras e ditadores

"... às vezes sucede entre certos políticos, aos quais tanto cega a paixão, que julgam bem da pátria o que é apenas satisfação dos seus interesses."
                                                                                      F. A. Varnhagen, História Geral do Brasil

Tecnicamente, uma ditadura caracteriza-se pelo exercício do poder, dentro do Regime Republicano, por um indivíduo ou um grupo que não está sujeito a uma Constituição, quer ela simplesmente não exista, quer, apesar de existir, não seja respeitada ou, "no interesse nacional", seja desconsiderada. Um exemplo clássico desse segundo caso é o que ocorreu no Brasil durante a vigência do Ato Institucional nº 5 (¹), cujo texto era, sob esse aspecto, bastante explícito, ao atribuir ao presidente da República a capacidade de atuar sem as limitações constitucionais e sem que suas decisões, dentro do determinado pelo mesmo AI-5, fossem alvo de apreciação judicial, conforme se vê, por exemplo, nos Artigos 3º, 4º e 11:
"Art. 3º - O presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição.
Art. 4º - No interesse de preservar a Revolução, o presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de dez anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.
Art. 11 - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos." (²)
Outras vezes, tenta-se disfarçar a ditadura sob uma aura constitucional, mas a escandalosa concentração de poderes em mãos de um único indivíduo acaba por revelar as reais intenções de quem exerce o poder, conforme facilmente se depreende, por exemplo, da Constituição do Estado Novo (³), na qual se lê:
"Art. 73 - O presidente da República, autoridade suprema do Estado, coordena a atividade dos órgãos representativos, de grau superior, dirige a política interna e externa, promove ou orienta a política legislativa de interesse nacional e superintende a administração do País."
Recomenda-se, a quem tiver maior interesse pelo assunto, a leitura de todo o longo (longuíssimo!) Artigo 74 e também do Artigo 75, nos quais são expostos, respectivamente, as competências e prerrogativas do presidente da República. Impressionam pela abrangência, quando se tem estômago para ler até o final.
De qualquer modo, é bom salientar que, tanto no caso do governo fundado no pressuposto da Constituição de 1937 quanto no dos que se serviram do AI-5, existia, em tese, uma clássica tripartição de Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), ocorrendo, no entanto, um óbvio deslocamento da força decisória em favor do Executivo, como os trechos já citados evidenciam.



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Ditadura e totalitarismo não são necessariamente sinônimos. O Estado totalitário é aquele no qual o indivíduo, em última análise, existe apenas em função dos interesses dos Estado, para cuja grandeza toda a sua existência deve ser pautada. Por isso, um regime ditatorial pode ser também totalitário (por exemplo, Nazismo e Fascismo), mas há ditadores que exercem um governo apenas personalista, sem a abrangência que o totalitarismo requer. E, nesse caso, os exemplos são tantos, que a lista acabaria longa demais.
É verdade que tem havido ditaduras um tanto ingênuas, enquanto outras são o que há de mais pérfido; algumas são pobres em termos ideológicos, enquanto outras chegam ao auge do refinamento em formalizar a ideologia que lhe constitui sustentáculo. Mas, ao fim e ao cabo, são todas ditaduras, nem mais e nem menos. Pode-se até alegar que este ou aquele ditador fez um bom governo - é ditadura, ainda assim e, face aos valores da democracia, uma usurpação pura e simples dos direitos dos cidadãos.
O que mais impressiona, e talvez revele muito sobre a humanidade, é que sempre há uma parcela significativa de pessoas que não somente apoia ditadores, como ainda entende que a ditadura é o único tipo de governo que deveria existir. Engana-se quem pensa que as massas são sempre e necessariamente coagidas a secundar os atos dos ditadores, embora isso também aconteça: a maioria das pessoas que iam e vão a manifestações públicas em apoio a ditaduras ia ou vai de livre e espontânea vontade. Eis aí um assunto que é verdadeiro festim para psicanalistas voltados ao estudo de comportamentos coletivos. Não chega, pois, a surpreender, que os que exercem o mando ditatorialmente ousem alegar-se não só escolhidos do povo, mas até eleitos de Deus, fazendo gravar essa "predestinação" em selos postais, documentos de caráter oficial, moedas (⁴) e sabe-se lá mais onde.



(1) Entrou em vigor no dia 13 de dezembro de 1968.
(2) Os grifos não pertencem ao documento original.
(3) Entrou em vigor em 10 de novembro de 1937.
(4) É evidente que nem todo mundo que teve o rosto estampado em selos ou moedas foi ou é um ditador - apenas é fato notório que os ditadores parecem ter um especial apreço por essas "homenagens".


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domingo, 27 de maio de 2012

Xenófanes, o homem que ousou questionar os jogos olímpicos da Grécia Antiga

Xenófanes é desses pensadores da Antiga Grécia que pouca gente conhece. Até mesmo sua cidade natal, Cólofon, na Jônia, não é das mais famosas. Melhor dizendo, a fama da cidade mais vem desse filósofo-poeta ou poeta-filósofo (sim, faz diferença!) que de qualquer outra coisa.
Apesar disso, Xenófanes destaca-se por, ao invés de seguir a maioria, ter ousado pensar com a própria cabeça, chegando a questionar uma das práticas mais sagradas entre os gregos da Antiguidade - nem mais e nem menos que os Jogos Olímpicos.
Observando o que se passava entre os competidores vitoriosos, Xenófanes constatou que eram sempre honrados em suas cidades como autênticos heróis, mesmo no caso daqueles que competiam em modalidades nas quais os verdadeiros atletas eram os cavalos, e não exatamente os humanos que os conduziam. Ora, pensou ele, mais vale a sabedoria que a força física, e nem por isso os sábios eram publicamente honrados como os que eram vitoriosos nas disputas empreendidas em Olímpia. E foi além em suas reflexões, perguntando se acaso era por terem as cidades bons corredores ou pugilistas que a administração pública funcionava melhor, ou se a presença de grandes atletas é que fazia prosperarem as colheitas!
Você leitor, deve ter suas próprias respostas a essas questões. Vale, no entanto, considerar que, malgrado os motivos para as dúvidas levantadas pelo pensador jônio, os atletas-heróis ou heróis-atletas (sim, faz diferença...) tinham e têm um papel social de grande importância quando, ao realizarem suas proezas, convencem a multidão de humanos absolutamente comuns de que a superação de limites é possível, mesmo quando tudo o que resta é uma mera superação ilusória, decorrente do identificar-se com um vencedor.
Já os líderes políticos, esses nunca tiveram dúvidas do papel dos grandes campeões em atrair prestígio para governos e desgovernos, fosse isso na Antiguidade, fosse em tempos mais recentes, daí porque a história dos mais destacados eventos esportivos deste planeta está repleta de interferências nada compatíveis com o famoso "espírito olímpico" - uma lista quase intérmina de manipulações, boicotes, atentados, e por aí vai.


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quinta-feira, 24 de maio de 2012

Em busca do ouro: A técnica de extração aurífera usada no Brasil Colonial

Na postagem anterior mencionei o fato de que os métodos de extração aurífera empregados no Brasil Colonial, e mesmo mais tarde, eram extremamente primitivos. Essa observação não vale apenas para a região das Gerais, mas estende-se ao restante da Colônia, como se poderá facilmente notar por este interessante relato de Hércules Florence, feito um pouco depois da Independência, a propósito da mineração em Cuiabá:
"Cuiabá deve sua fundação à grande quantidade de ouro que deu o terreno em que assenta, cujas escavações e buracos atestam hoje quanto foi revolvido. [...]." (¹)
Passa então a descrever como se organizou a ocupação do território do novo eldorado cuiabano (se é que ao que ocorria na época podia dar-se o nome de organização) :
"Reuniram-se logo multidões de aventureiros que formaram novas expedições [...]. O número foi crescendo e com ele aparecendo dissensões e lutas causadas pela avidez em tirar ouro. Então cuidaram de constituir uma espécie de governo e para legalizá-lo mandaram pedir chefe em São Paulo. A colônia, debaixo do nome de Cuiabá, nome dos índios que aí habitavam, fez rápidos progressos, aumentando continuamente com a chegada de novas bandeiras, que, não se satisfazendo mais com o que encontravam, seguiram para diante e foram descobrir, a cem léguas para Oeste, Mato Grosso, donde provém a denominação de toda a província." (²)
Um garimpeiro à procura de ouro, conforme
retratado em um selo postal
dos Correios do Brasil
Vem, por fim, a descrição do método que se empregava na extração do ouro, e que é justamente a informação que desejamos:
"O modo de extrair ouro é o seguinte: fazem-se grandes escavações e transporta-se a terra, à medida que se a vai tirando, para uma área preparada à beira de um rio, córrego ou lagoa em paralelogramo de terra batida e conseguintemente dura, cujos lados são fechados por tábuas, exceto o que encosta à água. O plano é inclinado e o todo se chama uma canoa. Deposita-se a terra que se quer lavar na parte superior e sobre ela lança o trabalhador de contínuo água para que facilmente corra a porção que for mais destacada e leve. Em seguida, depois de repetida a operação, põe ele certa quantidade na beira de uma espécie de alguidar de pau chamado bateia e com um pouco de água imprime ao todo um movimento circular, de modo que de cada vez o monte de terra seja lambido pela água. Se houver ouro, as menores partículas depositam-se no fundo." (³)
Para concluir, quero lembrar a meus leitores que, ao contrário do que ocorria nas Gerais, em Mato Grosso nem sempre havia água abundante para lavagem do ouro, o que tornava o processo mais dificultoso, mas, em todo o caso, a técnica era, em sua base, exatamente a mesma. Não fica, pois, difícil, entender porque o desperdício era grande, já que o ouro explorado era, via de regra, apenas o superficial. É isso que explica o chamado "esgotamento" das minas, que somente viria a ser superado quando a introdução de uma nova tecnologia de prospecção e exploração trouxesse a possibilidade de um melhor aproveitamento das riquezas disponíveis nas jazidas.

(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 126.
(2) Ibid.
(3) Ibid., pp. 126 e 127.


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terça-feira, 22 de maio de 2012

Somente muito ouro interessava: os "ribeiros de bom rendimento"

O que determinava, nas regiões mineradoras do Brasil Colonial, se uma determinada área devia ou não ser economicamente explorada, era a quantidade de metal precioso obtido em um intervalo mais ou menos curto de trabalho, conforme expressou o Padre Antonil:
"Chamam os paulistas ribeiro de bom rendimento o que dá em cada bateada duas oitavas (¹) de ouro. Porém assim como há bateadas de meia oitava e de meia pataca, assim há também bateadas de três, quatro, cinco, oito, dez, quinze, vinte e trinta oitavas, e mais; e isto não poucas vezes sucedeu na do Ribeirão, na do Ouro Preto, na de Bento Rodrigues e na do Rio das Velhas." (²)
É quase desnecessário lembrar que esse rendimento era relativo à procura de ouro em cursos d'água, o que era comum no Brasil, mas não a única situação possível;  era também relativo aos que procuravam ouro em larga escala, utilizando muitos trabalhadores, e não a faiscadores isolados.
Vejamos agora algumas razões que tornavam o alto rendimento não só desejável como até indispensável àqueles que eram considerados grandes mineradores:

a) O custo de vida nas minas era elevadíssimo, já que não se produzia quase nada localmente, de modo que os gêneros de primeira necessidade vinham de muito longe - quem quiser ter uma ideia dos preços que eram praticados na época pode ver as postagens "O Vestuário Masculino nas Minas Gerais no Início do Século XVIII" e "Os Preços dos Alimentos nas Minas de Ouro do Brasil Colonial no Início do Século XVIII". Deve-se ainda assinalar que um outro fator para o alto custo de vida (secundário, é verdade, mas nada desprezível), foi o gradual desenvolvimento, entre a população, de hábitos que valorizavam o luxo como ferramenta de afirmação social, daí ver-se que o consumo não era centrado apenas em gêneros de primeira necessidade, mas envolvia itens dispendiosos, tanto no que se refere à alimentação como para vestuário em geral.

b) Os escravos, que eram a mão de obra usual, custavam caro, de modo que só a mineração em grande quantidade justificava sua compra.

c) Os impostos cobrados pela Coroa eram bastante elevados.

d) As técnicas de prospecção e extração do ouro eram rudimentares, portanto o ouro devia ser abundante, já que o desperdício acabaria, de qualquer maneira, acontecendo.

A exploração aurífera no Brasil da primeira metade do Século XIX, segundo a 
visão de M. Rugendas (³)

Apesar disso, ou até por isso mesmo, o próprio Padre Antonil afirmou que nem sempre os bons lugares para mineração, quando localizados, eram, como mandava a legislação, comunicados às autoridades competentes. Por quê? Ora, porque cumprindo a lei, a área passava ao controle da Coroa, que efetuava a repartição do terreno nas proporções estipuladas pela lei, com partes destinadas à própria Coroa e ao descobridor da lavra, indo o restante a leilão entre os mineradores interessados. Entende-se, pois, porque é que, não raro, quem tinha a boa sorte de encontrar um local favorável à lavra, guardava silêncio sobre seus achados.
Um pouco mais de um século após a publicação do livro de Antonil, a mineração nas Gerais já estava em franca decadência. Passando por lá, Saint-Hilaire observou:
"Depois de termos andando cerca de duas léguas, alcançamos um vale muito agradável onde corre um riozinho no qual avistamos, sucessivamente, duas fazendas, a da Rancharia e a do Brumado. Devem ter sido importantes outrora mas parecem-me hoje em muito mau estado. Não me foi difícil adivinhar a causa de sua decadência, quando vi pela primeira vez montões de cascalho às margens do rio.
[...].
Montões de pedregulhos atestam o trabalho dos mineradores." (⁴)
  
(1) A oitava equivalia a quase 3,6 gramas.
(2) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 134.
(3) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, pp. 33 e 34.


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domingo, 20 de maio de 2012

Impostos temporários que se tornavam permanentes

Impostos, contribuições, "donativos", subsídios, taxas - o nome nem importa muito - eram criados tanto pelo Reino quanto pela administração colonial sempre que uma emergência se anunciava, fosse em resultado de alguma catástrofe natural, ou de algum projeto de construção, até mesmo para constituir um dote para uma princesa que se devia casar, ou pura e simplesmente porque os cofres públicos andavam magros demais.
Com o passar do tempo, à medida que o período glorioso das navegações e comércio oriental se distanciava, tornava-se óbvio o empobrecimento do Reino face a outras nações europeias que, superando a fase de apenas transportar e comercializar produtos alheios, lançaram-se ao desenvolvimento do que hoje chamamos economia industrial. Vendo sua modesta produção desvalorizada, não raro o Reino lusitano valia-se da possibilidade, que ainda tinha, de lançar novos impostos sobre sua vasta colônia ultramarina, cuja população, aos poucos, começava a revoltar-se com o fato de ter, em última instância, de trabalhar para o sustento de um sistema claramente obsoleto.
Entretanto, o mais absurdo de tudo isso é que alguns dos impostos supostamente temporários, lançados ainda no período colonial, continuaram a ser cobrados após a independência, de modo que, durante alguns anos, integraram o orçamento do Império. Vem daí pois, a experiência que o Brasil tem com os tais impostos temporários que acabam desenvolvendo a mágica capacidade de se tornarem permanentes. Meus leitores residentes neste País devem ter na memória um caso bem recente!
A mania dos impostos temporários que acabavam permanentes começou cedo. Em 1599, ainda antes que se completasse um século de presença portuguesa na América, votou-se em Olinda uma taxação sobre o vinho comercializado, a ser cobrada apenas pela necessidade de se estabelecerem fortificações (estava já a desenhar-se o cenário de alguma tentativa de ocupação), bem como para garantir a manutenção dos templos (¹). O imposto foi ficando, ficando... até que o que era transitório se impôs de vez.
Malgrado as taxas cobradas para as fortificações, os holandeses vieram e ficaram por vários anos. Quando finalmente deixaram o Brasil, um acordo entre os governos da Holanda e de Portugal estabeleceu que o pequeno reino ibérico pagaria uma indenização aos holandeses. Sim, é isso mesmo! Lá veio novo imposto para cobrir essa despesa, à qual a Coroa não deixou de anexar os custos da constituição de um dote para a filha do rei que deveria casar-se em breve. Tudo isso era para um prazo de dezesseis anos, mas continuou a ser cobrado muito depois, e tem-se uma informação de que ainda figurava no orçamento do Império do Brasil (portanto, após a Independência), no ano de 1830. (²)
De todos os impostos "temporários", porém, os mais famosos são, de longe, o que se instituíram para a reconstrução de Lisboa, a capital do Reino, após o terremoto que a arrasou em 1º de novembro de 1755. Em que resultou tudo isso? Nem é preciso dizer que seguiu-se a cobrança por décadas afora, mesmo após a independência - a despeito de a capital já não ser Lisboa e sim o Rio de Janeiro, o fisco continuou a proceder a arrecadação, que entrava para o orçamento do Império como se  fosse a coisa mais natural deste mundo. (³)
Além de tudo isso, havia ainda os impostos que, criados para um objetivo específico, quase nunca eram realmente usados nessa finalidade. Talvez o melhor exemplo seja o "subsídio literário", instituído durante o período pombalino, com vistas a assegurar o pagamento de professores de primeiras letras. De acordo com a região, incidia sobre a aguardente de cana, ou café, ou outro produto importante na área, com expressivo volume de arrecadação, mas as poucas escolas existentes continuavam a cair aos pedaços, sendo verdadeiro luxo que houvesse, de fato, um mestre-escola, mesmo sem a devida qualificação. Mas isso, afinal, em nada alterava a ação do fisco, já que o imposto era cobrado até mesmo onde não havia nenhum professor. Pelo menos é o que conta o Padre Ayres de Casal, em sua Corografia Brasílica, referindo-se ao Piauí:
"O Subsídio Literário, imposto no gado desta província, é assaz importante, mas em oitocentos e oito (⁴) ainda não havia nela uma cadeira de Primeiras Letras, nem de Latim". (⁵)
Esses fatos, meus leitores, estão já, cronologicamente, muito distantes de nós, mas seu estudo ganha muito interesse quando se quer entender o Brasil de hoje!

(1) Veja-se VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 1, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 396.
(2) Segundo nota de rodapé em VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 2, 2ª ed.
Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 754:
"Vemo-lo figurar no Orçamento do Império de 1830 (artigos 21 e 22) no valor de vinte e cinco contos."
(3) Veja-se nota de rodapé em 
VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 2, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 978:
"Findos os trinta anos o tributo seguiu igual, até depois da Independência, e figurava ainda na receita em 1831, com uma verba de 56.500$000 réis."
Ou ainda:
"Novos impostos - criados por dez anos, em 1755, cujo rendimento devia ser aplicado, unicamente, na reconstrução da alfândega de Lisboa. Cerca de um século já transcorreu, e este imposto perdura ainda."
SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. 
Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 232.
(4) Refere-se ao ano de 1808.
(5) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica, vol. 2. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 250.


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quinta-feira, 17 de maio de 2012

Araucárias

Pinheiros, de acordo com desenho de Thomas Ender (³)

Chamada popularmente de "pinheiro-do-paraná", a Araucaria angustifolia, pelo que conhecemos através dos relatos de gente que andou pelo interior do Brasil antes do geral desmatamento do centro-sul, já foi uma espécie vegetal muito frequente em áreas dos atuais Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, sul de Minas Gerais, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, além, é claro, do Paraná, principalmente nas regiões de maior altitude. Chamava a atenção dos europeus que a observavam por ser um "pinheiro diferente" em sua aparência.
Saint-Hilaire, o naturalista francês, ao descrever a localização de uma casa em que se hospedava, no início da segunda década do século XIX, observou:
"Fica situada num vale, e em frente do declive de uma colina eleva-se, em anfiteatro, um bosque quase que inteiramente composto de araucárias.
Nesta viagem comecei a rever esta árvore nas margens do riacho Brumado, e encontrei-a perto da fazenda do Tanque e de Ibitipoca.
Cresce espontaneamente, em algumas das mais altas montanhas do Rio de Janeiro. Encontra-se novamente aqui, em terreno muito elevado, nos limites das matas e campos, constitui quase que exclusivamente a maioria dos capões nos arredores de Curitiba. Enfim, na capitania do Rio Grande desce até a borda do campo. Parece, pois, haver igualdade de temperatura entre esses diferentes pontos, e a araucária funciona como uma espécie de termômetro." (¹)
O povoamento e a exploração desordenada das matas nativas (²) tornaram as araucárias muito menos numerosas, mesmo em regiões onde essas belas coníferas eram quase onipresentes. É lamentável que esse processo ainda tenha prosseguimento Brasil afora, embora hoje as espécies ameaçadas sejam outras.

Araucárias na região de Poços de Caldas - MG

(1) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 41.
(2) Pode parecer um absurdo para os padrões atuais, mas já houve tempo em que o contrato com uma empresa para a construção de uma ferrovia significava, para essa empresa, o direito a explorar livremente a madeira das florestas situadas ao longo do trajeto a ser construído.
(3) O original pertence à Biblioteca Nacional. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 15 de maio de 2012

Dez coisas sobre os jogos olímpicos da Grécia Antiga que todo mundo deveria saber

"Cimon foi sepultado nos arredores da cidade, além do caminho chamado Cela, e suas éguas foram enterradas diante de seu túmulo, pois haviam, com ele, sido vencedoras três vezes nos Jogos Olímpicos..."
                                                                                                                                         Heródoto, História

1. Os jogos olímpicos não eram a única competição esportiva na Grécia Antiga. Eram, porém, a mais importante, já que era celebrada em honra de Zeus. Outras competições realizadas eram, por exemplo, os Jogos Ístmicos e os Jogos Pítios.

2. Oficialmente, as primeiras competições consideradas "Jogos Olímpicos" foram realizadas em 776 a.C.. Os Jogos eram usados para a contagem do tempo. Por isso, se você vivesse na Antiga Grécia, possivelmente teria ouvido ou dito algo mais ou menos assim: "Sim, é verdade, aconteceu no terceiro ano da trigésima quinta olimpíada", ou, então: "Quem pode esquecer daquela batalha? Foi no segundo ano da quinquagésima quinta olimpíada!"

3. Durante os jogos respeitava-se uma trégua, para que os gregos dos mais diversos lugares pudessem competir em segurança. Esse assunto era tão sério que o desrespeito à trégua era tido como sacrilégio, já que as competições eram uma festividade religiosa em honra de Zeus Olímpico.

4. Havia, além das competições para homens, algumas (poucas) provas, com finalidades rituais, destinadas a jovens solteiras. As mulheres casadas, sob o pretexto de que davam azar, não podiam entrar, nem mesmo para assistir aos Jogos. Na prática, a razão era outra...

5. As competições esportivas variaram um pouco ao longo do tempo, mas eram basicamente constituídas por corridas, saltos, vários tipos de lutas e provas para condutores de bigas. Competições relacionadas às artes musical e poética eram também realizadas.

6. Aos vencedores concediam-se prêmios importantes, muito além da famosa coroa (que se diz, tradicionalmente, que era de louros, embora Heródoto afirme ser de oliveira). Em sua cidade natal o campeão era honrado como herói, isentado de impostos e sustentado com recursos públicos. Algumas vezes essas honrarias eram extensivas à sua família. Erguia-se uma estátua em sua homenagem e os poetas locais tratavam de pôr em versos a sua façanha. Em Esparta, eram os vencedores nos Jogos Olímpicos que tinham a honra de, nas batalhas, marcharem à frente de seus reis - em nossos dias, tal prática talvez fizesse esvaziar as competições...

7. Apenas atletas gregos podiam competir. Em sua História, Heródoto conta-nos que, querendo Alexandre (que era macedônico), participar do Jogos, foi inicialmente impedido, já que os demais competidores retiraram-se da arena alegando que "aqueles não eram jogos para bárbaros". Entretanto, acabou-se "demonstrando" que Alexandre era de origem argiva, pelo que os juízes o declararam grego, de modo que pôde entrar na disputa. Desde então, como bem sabem meus leitores, resoluções semelhantes, ditadas pela conveniência, ainda que em circunstâncias muito diferentes, têm corrido este planeta.

8. Os competidores eram, via de regra, provenientes da elite das cidades gregas - em geral só eles dispunham de tempo para os rigorosos treinamentos preparatórios às competições, além de recursos para custear carros e cavalos necessários a algumas provas. Não era incomum que, na vida adulta, os campeões olímpicos viessem a envolver-se ativamente na vida política de suas respectivas cidades-Estados.

9. As modalidades esportivas eram, quase todas, úteis ao preparo de soldados para a batalha. Por isso, os esportes eram, na sociedade grega, muito valorizados na educação dos jovens, pois entendia-se que eram decisivos na formação de bons cidadãos.

10. A dominação da Grécia por povos estrangeiros descaracterizou os Jogos que, no entanto, continuaram a ser realizados, até que a expansão do Cristianismo levou os governantes adeptos da nova religião a proibirem as competições, sob o pretexto de que eram uma celebração do paganismo. Ainda assim, continuaram a ter realização esporádica, até finalmente desaparecerem por completo. As Olimpíadas da era moderna, retomadas em 1896, já não mais em Olímpia e sim em Atenas, têm hoje muito pouco em comum com os Jogos gregos do passado.


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domingo, 13 de maio de 2012

Moda parisiense, moda americana - uma transformação radical no vestuário feminino

"Adélia, ao contrário, era o tipo, raro então e hoje muito comum, de certos costumes de importação; era a mocinha de maneiras arrebicadas à francesa, cuidando unicamente de modas e do toucador. Nisso a filha de D. Luísa não fizera mais do que apurar a lição e exemplo de sua mãe."
                                                                                                        José de Alencar, O Tronco do Ipê

No ano de 1852 apareceu no Rio de Janeiro, editado pela Typographia Laemmert, o Novo Correio de Modas, uma publicação voltada para o público feminino e que, ao contrário do que poderia sugerir o título, não tratava apenas das últimas novidades em assuntos de vestuário, embora fosse esse o tema central - seu alcance era mais ambicioso, incluindo, como se anunciava, também "novelas, poesias, viagens, recordações históricas, anedotas e charadas".
Cento e sessenta anos depois, olhamos para essa revista e, comparando-a às atuais publicações do ramo, não podemos deixar de constatar o quanto as coisas mudaram. Exemplifiquemos.
Com o fim de garantir a estreia em grande estilo, o primeiro número trazia uma sugestão da última moda em Paris, conforme a ilustração que pode ser vista logo abaixo:
A moda parisiense, de acordo com o
primeiro número do Novo Correio de Modas,
1852. (¹)
E, deixando que fale o próprio Correio, vamos à explicação do que se trata:
"A nossa primeira estampa representa dois figurinos de senhora, qual deles o mais bonito. De Paris os recebemos, e aqui os entregamos às nossas amáveis leitoras, para que aproveitem o que julgarem mais distingué, a fim de formar o belo composto de seus elegantes toillettes."
Segue-se ainda esta ponderação:
"As modas são como a primavera; sempre que aparecem trazem uma flor nova, que se ama colher, unir ao seio e aspirar com alegria; embora tenha de em curto tempo murchar e fenecer. Não importa, é o destino das mais belas coisas deste mundo durar pouco. [....]."
Tentem os leitores imaginar o que seria uma nota dessas em alguma das revistas de moda atualmente nas bancas!
Fica, porém, entendido, que, pelo menos para as madames da alta sociedade, com recursos suficientes para gastar com "a última moda de Paris", vestir-se bem devia ser mais ou menos como se apresentam as duas personagens da ilustração, o que não caracteriza, por si, nenhuma novidade. Era esse o padrão, salvo poucas variações, em todo o mundo ocidental.
Inovações, porém, estavam a caminho... Inovações, apenas? Não, uma verdadeira revolução no vestuário feminino. E podemos ter uma ideia exata disso pelo que noticiou o número dois do Novo Correio das Modas. A despeito de ser o trecho um tanto longo, vale a pena transcrevê-lo aqui, pois meus leitores, cientes do conceito de processo histórico, não deixarão de compreender o que esta novidade veio a significar, em um prazo de pouco mais de sessenta ou setenta anos, principalmente após a Primeira Guerra Mundial. Vamos então à notícia, na qual se percebe, por parte do redator, talvez um tom algo jocoso:
"Há pouco tempo celebrou-se em Nova York uma reunião singularíssima composta exclusivamente de indivíduos do sexo feminino. A assembleia era presidida pela senhora Gove Nichols, servindo de secretaria Sara Townsend. Depois do discurso da presidente explicando o fim daquela reunião, leram-se e aprovaram-se as seguintes resoluções:

Considerando que a maneira atual de vestir as mulheres é contrária ao que demanda a saúde, a conveniência, a comodidade, o asseio e a elegância;
Considerando que a maneira atual de vestir é de origem estrangeira, e oferece graves inconvenientes a nossas compatriotas, com obrigações indignas de uma sociedade livre;
Esta assembleia resolve:
- Que se recomende e adote um traje que nos ponha a coberto do incômodo e opressão do que atualmente vestimos; que não coarcte a nossa liberdade de ação tão necessária como útil para nossa saúde e comodidade, que nos emancipe de modas e caprichos estrangeiros, e que nos releve da obrigação que até agora nos tem imposto de varrer as ruas da cidade com as saias dos vestidos.
- Que a assembleia se declare com direito de escolher o traje que esteja mais em harmonia com a decência e elegância, sem desprezar a saúde e a comodidade.
- Que se invoque em favor do novo traje, que reúne elegância à conveniência, o apoio da moda, desse ídolo que até agora nos tem feito escravas das suas extravagâncias.
- Que se exortem nossas irmãs a declarar de fato e pela palavra a sua emancipação da moda atual, odiosa e degradante, e a que adotem o trajar que mais convenha à saúde e à comodidade, e que melhor faça realçar a verdadeira formosura.
- Que se declare que o trajar que recomendamos não é nem turco, nem persa, senão americano, resultado do nosso engenho e uma prova da nossa soberana independência!"

Ora, dirão meus leitores, e que nova moda era essa, afinal, revestida de tamanha importância ao ponto de ser guindada ao posto de questão de honra nacional, soberania e independência?
A publicação que mencionamos esclarece:
"Algumas das senhoras que faziam parte da assembleia trajavam já segundo os novos princípios revolucionários, isto é, calças largas, jaquetinhas e chapéus de abas grandes!..."
Como se vê, nada que estivesse relacionado à última moda parisiense, daí o espanto que beira o escárnio por parte da editoria do Novo Correio de Modas, que ainda acrescenta:
"Resta saber se as nossas belas fluminenses estão dispostas a seguir o exemplo das suas irmãs da América do Norte!"
Interessante esta questão levantada. O fato é que, beneficiados por vivermos mais de século e meio depois desses acontecimentos, já temos a resposta. Por assim dizer, sabemos muito bem de que lado pendeu a balança. Mutatis mutandis, naturalmente.

(1) Os originais dos números 1 e 2 do Novo Correio de Modas pertencem ao acervo da Biblioteca Nacional. A imagem foi editada para facilitar a visualização.


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quinta-feira, 10 de maio de 2012

O vestuário de trabalhadores livres no Sudeste brasileiro na primeira metade do Século XIX

Já dediquei, neste blog, três postagens especificamente ao assunto do vestuário dos escravos no Brasil. Um outro aspecto a ser considerado é o que usavam os trabalhadores livres, de baixa condição social. Aqui há que se dizer que a diversidade era considerável, em grande parte decorrendo das diferentes condições ambientais proporcionadas pela extensão do território brasileiro. Uma atividade semelhante - a pecuária, por exemplo - podia significar o uso de indumentária confeccionada em couro, isso em áreas do Nordeste, devido à aspereza da vegetação, enquanto que no Rio Grande do Sul podia impor a necessidade de roupas capazes de proteger contra o vento e o frio. O mesmo pode ser dito em relação a inúmeras outras ocupações. Era, pois, grande a variedade de hábitos no vestir-se que podia ser observada quando se percorria o Brasil já em fins do período colonial. Curiosamente, alguns desses hábitos persistem, em maior ou menor grau, até hoje, ora timidamente disfarçados, ora orgulhosamente ostentados como "trajes típicos", em festividades regionais.
Menos famoso e, talvez por isso, menos comentado, o trajar dos homens livres e pobres do Sudeste é mencionado por Saint-Hilaire, ao relatar o que via em viagem pelo Vale do Paraíba, no ano de 1822, indo de São Paulo ao Rio de Janeiro, quando observou:
"O vestuário das pessoas que encontro consiste simplesmente num grande chapéu de feltro, camisa e calças de tecido grosseiro de algodão." (¹)
A observação cuidadosa da ilustração abaixo (²), obra de Moritz Rugendas, revela que ela apresenta homens trajados à moda descrita por Saint-Hilaire. Dois aspectos interessantes: primeiro, a imagem retrata um ponto à margem do rio Paraibuna, um importante afluente do Paraíba, à altura de um pouso de tropeiros; segundo, nessa área, o trajar dos escravos não era lá muito diferente daquele disponível para esses trabalhadores livres. O que variava era, quando muito, a qualidade dos tecidos e, quase sempre, o tempo pelo qual se esperava que uma roupa deveria ser utilizada.


(1) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 115.
(2) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 8 de maio de 2012

O vestuário masculino nas Minas Gerais no início do Século XVIII

Antonil (ou Andreoni, como quiser o leitor), investigou a fundo o modo de vida nas regiões produtoras de riquezas do Brasil Colonial e, embora enfrentando uma proibição de ir às Minas, ainda assim interrogou os que lá estiveram e deixou disso um importantíssimo relato, no qual constam os preços que os mineradores estavam dispostos a pagar por artigos necessários à subsistência.
Referindo-se aos preços que eram praticados no comércio de vestuário nas Minas, Antonil faz, indiretamente, uma lista do que se vestia na época, sendo conveniente lembrar que, em virtude da abundância de ouro, era comum que se buscasse ostentar riqueza, daí a existência, na lista abaixo, de preços para artigos comuns e também para peças de melhor qualidade:

"Por uma casaca de baeta ordinária, doze oitavas.
Por uma casaca de pano fino, vinte oitavas.
Por uma veste de seda, dezesseis oitavas.
Por uns calções da pano fino, nove oitavas.
Por uns calções de seda, doze oitavas.
Por uma camisa de linho, quatro oitavas.
Por umas ceroulas de linho, três oitavas.
Por um par de meias de seda, oito oitavas.
Por um par de sapatos de cordovão (¹), cinco oitavas.
Por um chapéu fino de castor, doze oitavas.
Por um chapéu ordinário, seis oitavas.
Por uma carapuça de seda, quatro ou cinco oitavas.
Por uma carapuça de pano forrada de seda, cinco oitavas." (²)

Os preços, como se vê, são exorbitantes, considerando que uma oitava equivale a aproximadamente 3,6 gramas de ouro. Não se fala em moeda circulante, as cotações são dadas em metal precioso.
Curiosamente, o Padre Antonil só mencionou vestuário masculino (³). Eram os homens, nesse tempo, muito mais numerosos nas minas do que as mulheres, por razões que não são difíceis de imaginar, em que se considerem os costumes da época. Uma consequência disso é que, em uma realidade na qual a mão de obra para extração aurífera era indispensável, o que significava, também segundo os costumes da época, a compra de escravos jovens e vigorosos, o preço de uma escrava podia ser ainda mais alto que o de seus companheiros de infortúnio pertencentes ao sexo masculino: se um escravo qualificado chegava a custar, ainda de acordo com Antonil, umas quinhentas oitavas, uma escrava mulata podia chegar a seiscentas ou mais. Os meus leitores não terão dificuldades em interpretar o triste significado disso.
Acontece que, gradualmente, mineradores passaram a estabelecer-se em definitivo nas minas (o que conduziu à urbanização), constituindo famílias ou fazendo transportar para lá as que já tinham em outro lugar. Por essa razão, a população de São Paulo, por exemplo, declinou bastante - bandeirantes iam e voltavam, mineradores ficavam em definitivo.

(1) Couro de cabra empregado na fabricação de calçados.
(2) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, pp. 141 e 142.
(3) É pouco provável que a "veste de seda", mencionada na lista fosse referência a indumentária feminina, porque seu preço, dezesseis oitavas, não está muito distante do atribuído aos calções de seda, que era de doze oitavas. Os vestidos usados pelas mulheres desse tempo consumiam metros e metros de tecido, o que resultaria em peças muito mais dispendiosas que as aqui citadas.


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domingo, 6 de maio de 2012

Todos de olhos no céu: a "superlua" e algumas reflexões dela decorrentes

Em tempos passados (refiro-me à Antiguidade), os reis e outros governantes tinham, em seu arsenal de funcionários públicos, gente especializada em vasculhar o céu, à procura, não de conhecimento científico, como hoje o entendemos, mas de supostas datas favoráveis para guerras, acordos com outros monarcas, casamentos reais e toda uma série de eventos que podia interessar à dominação de uma certa área. O fato interessante é que de tanta pesquisa resultou tanto uma porção de tolices (embora haja muita gente que ainda acredite nelas), quanto as bases para o que viria a ser a ciência que conhecemos como astronomia.
No período medieval, os estudiosos seguiram mantendo uma confusa mescla de ciência e superstição, uma vez que os recursos técnicos para o estudo dos fenômenos celestes eram, reconheçamos, realmente escassos. Só pelas alturas do Renascimento é que as coisas começaram a mudar, ainda que ao preço de muito incômodo para investigadores audaciosos que ousavam contestar as crenças comumente aceitas e referendadas por gente que se considerava sábia demais para ter de aprender alguma coisa nova. Hoje,  felizmente, ninguém precisa dar explicações quando resolve espetar o nariz no céu, seja por interesse científico, por mera curiosidade ou até por fantasias românticas. No máximo,  parentes, amigos ou vizinhos podem achar que melhor que andar com os olhos nas estrelas é prestar atenção nos problemas daqui da Terra mesmo.
A despeito disso, quando algum fenômeno facilmente observável ocorre, pode-se ver gente que, mesmo usualmente não tendo qualquer interesse por astronomia, reúne-se em grupinhos nas esquinas, olhos no céu, tentando alardear grande conhecimento - bem ou mal, isso é resultado de uma divulgação mais ampla de informações, de mais escolaridade, talvez de uma certa democratização do saber, ainda que, ao menos por hora, muito longe do padrão desejável. Foi o que aconteceu desde o entardecer do sábado, dia 5 de maio de 2012, pela ocorrência da chamada "superlua", ou lua no perigeu. Fui também fazer minhas fotos, e compartilho uma delas com meus leitores: nosso satélite parece uma frágil lanterna oriental balançando ao vento, delicadamente presa a um poste (torto) da rede de energia elétrica, à margem de uma estradinha rural...
Para os leitores que não gostam dessas brincadeiras, fica o consolo de que as postagens sérias retornam a partir da próxima terça-feira.


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quinta-feira, 3 de maio de 2012

A moda no vestuário em São Paulo no final do Século XVI e início do Século XVII

A postagem do dia 24 de abril  de 2012 tratou da Companhia de Soldados Descalços que Martim de Sá, capitão-mor no Rio de Janeiro, constituiu para a defesa da terra, uma vez que muitos colonos não tinham calçados com que apresentar-se às suas obrigações militares. Ocorre que não só os colonos do Rio de Janeiro tinham recursos escassos para o trajar habitual, como também, vivendo entre os indígenas, adotavam, até por uma questão de sobrevivência, muitos de seus hábitos. Fenômeno semelhante ocorria na Capitania de São Vicente, como se pode concluir da leitura desse trechinho escrito por Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil, ao referir-se à população da vila de São Paulo em fins do século XVI e início do século XVII, por ocasião da presença do Governador Dom Francisco de Sousa naquela localidade, com o fim de procurar jazidas de metais preciosos:
"[...] o Governador se foi de São Vicente à Vila de São Paulo, que é mais chegada às minas, onde até então os homens e mulheres se vestiam de pano de algodão tinto, e se havia alguma capa de baeta e manto de sarja se emprestava aos noivos e noivas para irem à porta da igreja; porém depois que chegou Dom Francisco de Sousa, e viram suas galas, e de seus criados e criadas, houve logo tantas librés, tantos periquitos e mantos de soprilhos, que já parecia outra coisa [...]." (*)
Eis, simplesmente, o que acontecia: antes da chegada do pomposo governador, os paulistas, eles e elas, vestiam-se de modestos trajes de algodão, fibra vegetal cujo cultivo e uso a população indígena dominava, e que os moradores do planalto paulista, mestiços em sua maioria, adotavam para sua indumentária, não vendo nada de errado nisso. Logo, logo, tudo iria mudar, fazendo com que essa boa gente viesse a sentir-se tal qual Adão e Eva no Paraíso, após comerem do malfadado fruto proibido...
A chegada de Dom Francisco de Sousa teve, como efeito colateral nada desprezível, a capacidade de provocar uma revolução no vestuário dos colonos, ao menos no caso dos que tinham recursos para isso. E, em benefício dos leitores mais jovens deste blog, que talvez não estejam habituados à linguagem dos documentos históricos, vão, a seguir, algumas explicações sobre o significado tanto da antiga quanto da nova moda:
Sarja e baeta, que usavam os noivos e noivas em suas núpcias, eram tecidos rústicos, o mais das vezes feitos de lã trançada; libré era o nome dado ao uniforme que vestia a criadagem da nobreza; periquitos eram nós ou laços feitos, provavelmente, a título de enfeites e, finalmente, soprilho vem a ser um tipo de seda finíssima, quase transparente.
Quem pode negar, pois, que os costumes efetivamente mudaram?

(*) SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. c. 1627.


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terça-feira, 1 de maio de 2012

Uma embarcação chamada pelota

Sabe o que é pelota? No sentido a ser usado nesta postagem, poderia ser definida como uma embarcação improvisada, feita geralmente de couro de boi. Quem a descreve com mais detalhes é Saint-Hilaire, que precisou servir-se de uma ao passar de uma margem a outra do rio Butuí. Ele é quem conta, com uma pitada de humor, a despeito da rabugice habitual:
"Ao nascer do dia, começamos a descarregar a carroça, e minhas bagagens passaram para uma piroga improvisada, tão em uso na Capitania de Montevidéu e de Rio Grande, onde não há ponte.
A pelota, nome dado a estas pirogas, é simplesmente um couro cru ligado nas quatro pontas e que, desse modo, forma um barco que se pode confundir, pela aparência, com as sacolas de papel onde se põem biscoitos. Enche-se a pelota de objetos, ata-se nela uma corda ou tira de couro; um homem, a nado, prende a corda entre os dentes e faz passar assim a piroga. Para facilitar o trabalho, meus homens estenderam uma corda de um lado a outro do rio, com a intenção de ajudá-los na travessia a nado. Eu mesmo atravessei o rio sentado numa pelota e cheguei felizmente à outra margem, bem como as minhas bagagens e a carroça. Matias, José Mariano e Firmiano ajudaram, alternadamente, a pelota a passar." (¹)
Um fato interessante é que Debret também deixou um registro desse tipo de embarcação, não em palavras, mas em uma bela imagem, que pode ser vista abaixo.

Embarcação feita com couro de boi, de acordo com Debret (²)

Tanto Saint-Hilaire quanto Debret estiveram no Brasil quando o período colonial se encerrava, e o país estreava como nação independente. Nesse tempo, a pelota tinha uso em muitos lugares, já que permitia que rios sem pontes fossem atravessados por viajantes. Era uma embarcação compatível com as condições muitas vezes difíceis do povoamento da América do Sul - os transportes, por qualquer método então disponível, eram precários, e as viagens, muito perigosas. Quem tinha de percorrer distâncias consideráveis devia arriscar-se pelas péssimas trilhas existentes (quando existiam...) submetendo-se às condições abjetas que reinavam na maior parte dos pousos de tropeiros, quase os únicos lugares em que era possível aos viajantes encontrar abrigo à noite ou em caso de tempestades.

(1) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 327.
(2) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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