domingo, 30 de junho de 2013

Os jograis, músicos populares da Idade Média

A vida dos jograis, músicos ambulantes da Idade Média, não devia ser nada fácil. Antes de mais nada, precisavam desenvolver múltiplas habilidades: tinham de saber tocar e manter adequadamente os instrumentos musicais de que se serviam; deviam, igualmente, saber cantar bem (já que, no âmbito popular, o conceito de música instrumental, como hoje o entendemos, era então desconhecido); era desejável que soubessem compor melodias e fazer versos.
Mas não era só. Precisavam dominar uma variedade de técnicas acrobáticas, com as quais pudessem atrair e entreter o público, fosse em feiras, nas proximidades de igrejas ou mesmo trabalhando para nobres senhores em seus castelos. Truques mágicos também não estavam descartados em seu repertório.
Pois bem, assim qualificados, esses músicos-acróbatas não tinham emprego fixo e, por isso, precisavam procurar seu público indo de um lugar a outro, de modo que seu sustento era incerto. Vê-se, portanto, que estavam longe de desfrutar de prestígio social.
Não eram, via de regra, gente muito estimada. Conselhos municipais tentavam ver-se livres desses ambulantes, e a maioria dos religiosos torcia o nariz ante sua presença.
Muito de seu repertório, essencialmente oral, se perdeu, e, em realidade, não se poderia esperar outra coisa, mas é possível que algumas de suas cantigas, repetidas de boca em boca, tenham passado de uma geração a outra, sobrevivendo assim a obra de algum compositor anônimo muito além dos tempos medievais. Sem dominar as estritas e enfadonhas regras da música "culta" da época, eram, todavia, em sua simplicidade e mesmo em sua rudeza, capazes de expressar de forma autêntica os sentimentos da "gente comum" de seus dias. Suando em penosas tarefas agrícolas, era bem possível que camponeses assobiassem algumas de suas músicas, mais que quaisquer outras.
Não se deve supor, no entanto, que apenas quem queria ser jogral (por escolha ou falta de opção) é que aprendia música. Além de seu uso óbvio no âmbito religioso, a música também era vista como parte essencial da educação da nobreza, indício certo do refinamento que se esperava de gente de alta posição social. Desse modo, era importante saber tocar bem um instrumento musical e cantar com delicadeza, sem descuidar do aprendizado da dança, que estava, de todo modo, bastante associado ao da música. Esses músicos nobres e bem educados eram, porém, amadores. Os verdadeiros profissionais eram, então, os pobres e desprezados jograis.
O renascimento urbano se encarregaria de mudar a situação.
Sedentarizando-se, os músicos profissionais iriam ter suas próprias corporações de ofício, ganhariam respeito e credibilidade e passariam a desfrutar de um bom número de privilégios, colocando-se, socialmente, em posições sobremodo mais elevadas que seus antecessores. Foi isso lá pelos fins do Século XIII...


Veja também:

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, Brasil

Ramo de pau-brasil

Segundo assinalado por Pero Vaz de Caminha, o nome atribuído inicialmente às terras "encontradas" por sua esquadra na América foi o de "Terra de Vera Cruz" ou "Ilha de Vera Cruz", conforme dois trechos de sua Carta a D. Manuel, dois quais um deles é este:
"Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra, primeiramente de um grande monte mui alto e redondo, e de outras serras mais baixas ao sul dele, e de terra chã com grandes arvoredos, ao qual monte alto o Capitão pôs nome "o Monte Pascoal" e à terra "a terra da Vera Cruz".
E aqui, o outro, já na conclusão do relato:
"Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto Seguro da vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500."
De passagem, observemos que essa ambiguidade na denominação, primeiro "Terra", depois "Ilha", reforça o fato de que os portugueses, assim como os demais navegantes da época, tinham ainda grande dificuldade em saber onde, exatamente, estavam. Em linhas gerais, pode-se dizer que eram capazes, com alguma imprecisão, é verdade, de determinarem a latitude; a longitude, porém, ainda levaria muito tempo para ser corretamente registrada.
Prossigamos.
Seja lá ilha ou terra, o nome inicial, de "Vera Cruz", logo foi substituído por "Santa Cruz", para, não muito mais tarde, tornar-se Brasil, bem a contragosto dos religiosos, como já veremos.
Em 1504, quando Fernando de Noronha recebeu a então chamada Ilha de São João, ainda se usava o nome de Terra de Santa Cruz, como se vê da correspondente Carta de Doação:
"A quantos esta nossa carta virem fazemos saber que havendo-nos respeito aos serviços que Fernando de Noronha, cavaleiro de nossa casa nos tem feito e esperamos ao diante dele receber, e querendo-lhe por isso fazer graça e mercê, temos por bem e nos apraz que vindo-se a povoar em algum tempo a nossa ilha de São João, que ele ora novamente achou e descobriu cinquenta léguas ao mar da nossa Terra de Santa Cruz, lhe darmos e fazermos mercê da Capitania dela em vida sua e de um seu filho..." (¹)
Porém, em 1511, quando se autorizou a vinda da Nau Bretoa às terras da América, já aparece o nome "Brasil", no próprio título de seu diário de bordo: "Livro da Nau Bretoa que vai para a terra do Brasil". E depois: "Livro do dia que partimos da cidade de Lisboa para o Brasil, até que tornamos a Portugal".
Duas décadas mais tarde, quando a expedição comandada por Martim Afonso de Sousa foi enviada à América, o nome de Brasil já devia ser coisa consolidada, pelo que se vê no documento através do qual o monarca lusitano estipulava os poderes do homem a quem confiara o mando:
"Dom João, a quantos esta minha carta de poder virem, faço saber que eu envio ora a Martim Afonso de Sousa, do meu Conselho, por Capitão-Mor da armada que envio à Terra do Brasil, e assim de todas as terras que ele dito, Martim Afonso, na dita terra achar e descobrir..." (²)
Tronco de pau-brasil
Pode parecer uma simplificação até útil, essa adoção do nome de Brasil em lugar de Ilha de Vera Cruz ou Terra de Santa Cruz. Aos olhos dos mais religiosos, fossem clérigos ou não, essa mudança foi sobremodo irritante. É o que se depreende do que escreveu Gândavo em obra datada de 1576 (³):
"Por onde não parece razão que lhe neguemos este nome e nem que nos esqueçamos dele tão indevidamente, por que lhe deu o vulgo mal considerado, depois que o pau da tinta começou a vir a estes reinos, ao qual chamaram "brasil" por ser vermelho e ter semelhança de brasa, e daqui ficou a terra com este nome de Brasil. Mas, para que nesta parte magoemos ao Demônio, que tanto trabalhou e trabalha por extinguir a memória da Santa Cruz e desterrá-la dos corações dos homens, mediante a qual somos redimidos e livrados do poder de sua tirania, tornemos-lhe a restituir seu nome e chamemos-lhe Província de Santa Cruz como em princípio [...], porque na verdade mais é destinar e melhor é nos ouvidos da gente cristã o nome de um pau em que se obrou o mistério de nossa redenção, que outro que não serve mais que de tingir panos ou coisas semelhantes." (⁴)
Quase um século mais tarde, o Padre Simão de Vasconcelos ainda lamentaria a tal mudança de nome:
"Aqui arvoraram aos 3 de maio (como querem alguns) (⁵) o primeiro troféu de portugueses que o Brasil viu, o estandarte da Santa Cruz, ao som de demonstrações de grandes alegrias e solenidade de missa, pregação e salvas de artilharia da Armada, pondo por nome à terra tão formosa, Terra de Santa Cruz, título que depois converteu a cobiça dos homens em Brasil, contentes do nome de outro pau bem diferente do da Cruz, e de efeitos bem diversos." (⁶)
Meus leitores sabem muito bem como, afinal, terminou essa "queda de braço". Não é necessário, pois, nenhuma outra explicação. Só resta imaginar como seria o grito dos torcedores no estádio, em dia de jogo da seleção brasileira, se o nome ainda fosse Terra de Santa Cruz. Séculos antes, portanto, as coisas se arranjaram melhor, ao menos para esse propósito, com o curto e incisivo nome: Brasil!
 
(1) Carta dada em 1504 e, a pedido do próprio Fernando de Noronha (também chamado "Fernão de Noronha"), confirmada em 1522. Veja-se que a expressão "nossa Ilha de São João, que ele ora novamente achou e descobriu", reforça o que acima foi dito sobre a imprecisão dos cálculos marítimos na época dos Grandes Descobrimentos. Uma terra descoberta podia ser facilmente perdida... e depois, novamente encontrada.
(2) Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa (1530 a 1532).
(3) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. 1576.
(4) Esqueceu-se Gândavo de mencionar que o pau-brasil tinha outros usos, igualmente importantes, sendo particularmente prezado na construção naval daquela época, para a confecção de partes de embarcações que requeriam madeira flexível, porém muito resistente. É pela mesma razão que se faz ainda hoje muito estimado dos que constroem ou tocam instrumentos de cordas de alto padrão, com emprego assinalado para arcos de violino.
(5) Nisto diverge da Carta de Caminha, já citada. A carta de Caminha menciona duas missas, celebradas, a primeira, no chamado "Domingo da Pascoela", ou seja, o domingo seguinte ao domingo de Páscoa, e a segunda, em 1º de maio de 1500, e deve ser a esta que se refere o Padre Vasconcelos, por ter sido nessa ocasião que a cruz e as armas de Portugal foram plantadas em terra. Entretanto, é bom lembrar que já houve quem discutisse essa questão de datas, tentando demonstrar que Caminha poderia ter errado nas datas que anotou em sua Carta.
(6) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668.


Veja também:

domingo, 23 de junho de 2013

Ler e escrever, eis a questão - Parte 4

No Reino de Portugal, nem todos os juízes sabiam ler e escrever


Tratou-se, na postagem anterior, do modo pelo qual alguém, no Reino de Portugal, tornava-se escrivão em algum dos tribunais do Reino, e das qualificações para isso exigidas, bem como das punições para aqueles que se atrevessem a não cumprir adequadamente suas obrigações. Mais curioso, no entanto, é saber que, por esse tempo (a primeira publicação sistemática das Ordenações (¹) data do início do Século XVII), muitos juízes pelo Reino afora eram analfabetos. Ora, perguntarão os leitores, como é que sabemos desse fato?
Era obrigação de cada tabelião ter um livro encadernado, no qual seriam registradas as "querelas" do lugar, que viessem a juízo. Até aí, nada demais. Mas o que vem em seguida, no texto das Ordenações, é surpreendente:
"O qual livro será assinado e numerado pelo juiz da terra, sabendo ler e escrever, e não sabendo, o será pelo seu superior." (²)

(1) Ordenações do Reino, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) Cf. as Ordenações do Reino, Livro Primeiro, Título LXXIX, § 29.


Veja também:

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Ler e escrever, eis a questão - Parte 3

Escrivães deviam saber escrever


Qual seria a maior virtude de um escrivão? No Reino de Portugal, diziam as Ordenações (¹):
"Fiéis e entendidos devem ser os escrivães da nossa Corte, e que saibam bem escrever e notar, de maneira que as Cartas e Notas que fizerem, mostrem ser feitas por homens de bom juízo e entendimento." (²)
Pode parecer redundância, mas não era, nem estou contando alguma anedota - em Portugal e em suas possessões de ultramar os escrivães deviam saber escrever. Consta que em São Paulo, nos tempos coloniais, um sujeito aceitou nomeação para o cargo e, um mês depois, pediu que dele fosse exonerado, já que não sabia escrever...
Simplificando, o processo de nomeação dos escrivães funcionava assim: o rei nomeava o escrivão que, no entanto, para exercer efetivamente seu cargo, deveria passar por exame comprobatório de sua capacidade para o ofício. É o que se vê também nas Ordenações:
"Os Escrivães da Corte hão de ser examinados pelos desembargadores do Paço, tanto que houverem nossa Provisão, pela qual lhes fazemos mercê dos ofícios, antes que hajam as Cartas deles, se sabem escrever e notar, de maneira que sejam pertencentes para os ditos ofícios, ou se são infamados de tal infâmia ou suspeita, que honestamente não caibam neles. E segundo o que acharem pelo exame, assim devem mandar-lhes fazer as Cartas dos Ofícios, ou notificar a Nós seus defeitos, para fazermos como for nossa mercê." (³)
Além da remuneração e da posição social que o ofício de escrivão trazia consigo, era privilégio e obrigação de todos os escrivães o portar armas quando seguiam suas obrigações fora dos tribunais, o que se proibia para a maioria das pessoas. Todo escrivão devia, necessariamente, ter couraças, capacete, lança e adaga (⁴). Entretanto, a punição para escrivães infiéis ou relapsos em suas funções era severa:
"E quando passarem alguns instrumentos às partes, declararão toda a verdade dos autos, que pelas partes ou pelo juiz for apontada em seus requerimentos ou respostas, sob pena de privação dos ofícios..." (⁵)
Antevendo, porém, que algum escrivão afastado de seu cargo podia bem fazer-se de desentendido, tentando manter-se na função, a férrea legislação fulminava-o com mais horrendo castigo, o degredo para o Brasil (!!!):
"E se depois que o tabelião ou escrivão incorrer nas ditas penas, por denegar o instrumento à parte, fizer mais escritura ou outra alguma coisa que a seu ofício pertença, mandamos que seja preso, e da cadeia pague vinte cruzados, a metade para os cativos e a outra para quem o acusar, e mais será degradado dez anos para o Brasil..." (⁶)

(1)  Ordenações do Reino, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) Livro Primeiro, Título XXIV.
(3) Ibid., § 1º.
(4) Livro Primeiro, Título LVII.
(5) Livro Primeiro, Título LXXX, § 12.
(6) Ibid., § 13.


Veja também: 

domingo, 16 de junho de 2013

Ler e escrever, eis a questão - Parte 2

Escrever era difícil até para Carlos Magno


O fim do Império Romano (no Ocidente) e a gradual ruralização da sociedade contribuíram bastante para que o analfabetismo proliferasse. Escolas e professores particulares eram coisa das cidades, e muito raramente se encontraria isso entre camponeses esfomeados que viviam oprimidos pela expectativa da próxima invasão. O latim, língua do falecido Império, gradualmente restringiu-se aos clérigos e às poucas pessoas mais instruídas, enquanto a população em geral falava os vários idiomas nascidos da miscigenação do latim com as línguas bárbaras. Não deixa de ser curioso, hoje, observar os poucos manuscritos que restaram de tempos em que se tentava grafar essas novas línguas com os caracteres latinos. A realidade, porém, é que escrever tornou-se, mais uma vez, um privilégio de que poucas pessoas desfrutavam. O imperador Carlos Magno, cuja vida transcorreu em anos dos séculos VIII e IX, foi um entusiasta da fundação de escolas. Diz-se, porém, que ele próprio somente aprendeu a ler quando tinha já uns trinta anos, e nunca soube escrever nada mais expressivo que umas poucas garatujas. E, se o grande imperador era assim, que pensar da maioria de seus súditos?
Em boa parte da Idade Média na Europa Ocidental o saber foi cultivado - mas também restrito - aos mosteiros e, mais tarde, às nascentes universidades. E, se posteriormente o Renascimento trouxe à cultura uma lufada de vitalidade, tal fato não foi suficiente para alterar a condição das massas que, em geral, permaneciam na mais crassa ignorância, embora a proliferação de livros impressos - os novos objetos do desejo mesmo entre burgueses - tenha contribuído para tornar desejável a capacidade de ler. Acrescente-se ainda que, no Século XVI, em lugares onde a Reforma Protestante se impôs, surgiu uma certa preocupação em estender aos meninos e meninas do povo a possibilidade da frequência a uma escola, para que, na idade adulta, pudessem, como fiéis, ler a Bíblia por si mesmos.
Tudo isso, no entanto, não mudava muito a situação persistente na maioria das localidades: ser capaz de ler e escrever bem constituía-se ainda e por si só, em uma profissão. Já não eram esses escrevinhadores profissionais chamados "escribas", e sim "escrivães". E, como sempre, a burocracia de Estado era a esponja que os absorvia.


Veja também:

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Ler e escrever, eis a questão - Parte 1

A relação entre a prática da escrita e o exercício do poder na Antiguidade


Hoje em dia há muito poucos trabalhos para uma pessoa não alfabetizada, pelo menos para quem vive em áreas urbanas. E, mesmo quando é possível a um analfabeto encontrar trabalho, há que se reconhecer que a incapacidade de ler e escrever resulta em sério dano ao exercício pleno da cidadania, particularmente em uma sociedade democrática.
No passado, no entanto, a maioria das pessoas não sabia ler e, menos ainda, escrever, de modo que a capacidade de dominar a escrita era, por si só, uma profissão: a de escriba.
No Egito Antigo os escribas tinham excelente posição social - também como uma escrita daquelas! Na prática, eram indispensáveis à burocracia de Estado e aos templos (o que, às vezes, era a mesma coisa). Sua habilidade em registrar os grandes feitos dos faraós, tanto os autênticos como os exagerados e  até mesmo imaginários, era a garantia da perpetuação do nome dos poderosos monarcas. Isso entre os vivos. Da morte, cuidava-se, no Egito, como todo mundo sabe, com mumificação e sepultamentos mais que suntuosos (não necessariamente em pirâmides), mas sempre em túmulos nos quais as inscrições eram muito importantes. Afinal, o que seria de um faraó na outra vida sem o conjunto de inscrições de caráter mágico a que hoje se dá o nome de "Livro dos Mortos"?... Eis a causa de ser a profissão de escriba tão importante naqueles tempos.
Um pouco menos complicada que os hieróglifos, a escrita cuneiforme também ensejou o aparecimento de escribas profissionais. Na Mesopotâmia, porém, ir à escola e aprender a escrever e a fazer contas tinha também uma outra justificativa, ou seja, comerciantes começavam a perceber a utilidade de registros precisos de suas atividades. É claro que isso estava a milhões de quilômetros de uma política de alfabetização em massa, mas já era, inegavelmente, uma mudança. Gregos e romanos, por sua vez, com formas de escrita alfabéticas e, por isso mesmo, muito mais simples, chegaram ao ponto de entender que a capacidade de escrever era essencial ao exercício da cidadania, mesmo se considerarmos que o conceito de cidadão, nesses tempos, era bastante diferente e mais restritivo do que aquele que se emprega hoje nas democracias ocidentais. Assim, a escrita não estava mais limitada ao âmbito dos templos, túmulos e registros de façanhas reais. Jovens aristocratas precisavam ser muito bons em ler e escrever, porque precisavam estudar muito, a fim de se tornarem capazes de, no pleno exercício da política, defender seus interesses e os de seu estrato social. Mesmo artesãos, gente simples do povo, eram capazes de escrever, e não poucos documentos comprovam esse fato.
Não foi por acaso, então, que pelas alturas da expansão do Cristianismo pelo Império Romano, textos escritos de gênero epistolar tenham sido amplamente empregados para a divulgação da nova religião, e é bom lembrar que isso não se restringe aos documentos da chamada era apostólica - na patrística encontram-se bons exemplos de cartas que bispos e outros líderes religiosos encaminhavam aos fiéis, na intenção de orientar os conversos em meio a uma sociedade que passava por severas mudanças que redundavam em convulsões sociais, políticas e militares. Se é verdade que nem todo mundo sabia ler, também é fato que sempre havia alguém por perto que podia fazê-lo, de modo que enviar cartas através dos correios que seguiam pelas ótimas estradas romanas era um meio bastante eficiente de fazer com que as informações circulassem. Os cristãos souberam valer-se disso muito bem.


Veja também:

domingo, 9 de junho de 2013

Tamanduás

Tamanduá-bandeira, segundo obra do Século XVII (¹)

"Tamanduçu (²)", escreveu Frei Vicente do Salvador em sua História do Brasil (³), "é um animal tão grande como carneiro, o qual é de cor parda com algumas pintas brancas, tem o focinho comprido e delgado para baixo, a boca não rasgada como os outros animais, mas pequena e redonda, a língua da grossura de um dedo e quase três palmos de comprido, as unhas à maneira de escopros (⁴), o rabo mui povoado de cerdas, quase tão compridas como de cavalo, e todas estas coisas lhe são necessárias para conservar sua vida, porque como não come outra coisa senão formigas, vai-se com as unhas cavar os formigueiros, até que saiam da cova, e logo lança a língua fora da boca para que se peguem a ela, e como a tem bem cheia, a recolhe para dentro, o que faz tantas vezes até que se farta [...]."
Essa descrição apresenta, ainda, um pouco daquele deslumbramento que, nos escritos sobre o Brasil feitos ao longo do século XVI, assinalavam as descrições tanto de animais como de plantas típicos do Continente Americano. Como se vê, essa característica perdurou em relatos pelo século XVII adentro, e ainda poderia, mesmo, no XIX, ser encontrada, por exemplo, na Corografia Brasílica do Padre Ayres de Casal.
Mas, voltando ao texto de Frei Vicente do Salvador, passa ele da descrição das características do tamanduá-bandeira para uma curiosa observação quanto ao uso que dele faziam indígenas do Brasil:
"A carne deste animal comem os índios velhos, e não os mancebos, por suas superstições e agouros."

Tamanduá-mirim

No Século XIX, Hércules Florence presenciaria um interessante misto de jogo e dança, praticado por índios bororos, no qual se representava o movimento típico de um tamanduá:
"... dois deles, dentro do círculo, representavam o jogo do tamanduá. Um põe-se de quatro pés com uma criança agarrada às costas: é a fêmea do tamanduá-bandeira e seu filhote. Outro vem o incitar, pondo-lhe a ponta de um pau no nariz, imitando com muita fidelidade os movimentos letárgicos do animal, o que faz de tamanduá levanta devagar a cara e uma das mãos, com os dedos curvos como que querendo agarrar o pau: quando se adianta, o outro recua. Sabe-se que se esse bicho é pouco temível em razão de sua lentidão, nada é mais perigoso do que pôr-se ao alcance de suas unhas: não há outro remédio senão cortar-lhe a pata." (⁵)

(1) PISO/PIES, Willen et MARKGRAF, Georg. Historia naturalis Brasiliae. 
Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648, p. 225. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Provavelmente tamanduá-açu, ou tamanduá-bandeira.
(3) O manuscrito data de c. 1627.
(4) Instrumentos metálicos para corte.
(5) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 169.


Veja também:

quarta-feira, 5 de junho de 2013

A escravidão na Antiguidade

Consequências da escravidão entre gregos e romanos


Costuma-se dizer que, no Brasil, a escravidão teve consequências desastrosas. Isso é fato. Mas a redução de seres humanos à condição de mercadoria trouxe péssimos resultados também na Antiguidade - entre gregos e romanos, por exemplo.
Os povos antigos sedentários tinham sua economia quase sempre baseada em práticas agrícolas, associadas também ao pastoreio. Essas atividades envolviam, em princípio, todos os membros válidos de uma dada comunidade. Falando sem rodeios, todo mundo precisava trabalhar em coisas como preparar o solo, plantar, colher ou cuidar de ovelhas, cabras, bois, galinhas, e por aí vai. Obter o sustento era muito difícil com as técnicas primitivas de que se dispunha, e o envolvimento do maior número possível de braços era essencial para assegurar um suprimento adequado de alimentos para todos, de modo que ninguém era dispensado de trabalhar arduamente, nem nisso via-se algo de desonroso. Muito pelo contrário.
Alguém perguntará: Não havia nunca algum escravo? Talvez houvesse, mas ainda assim, a escravidão somente ocorria em pequena escala. De qualquer modo, o trabalho escravo era a exceção, e não a regra. Alguém podia, eventualmente, ser escravizado por dívidas, mas ainda não chegara a hora dos grandes mercados em que gente era comprada e vendida, de modo análogo ao que se fazia com trigo, centeio, cevada ou gado.
As guerras, no entanto, abriram, em muitos casos, as portas para a escravidão em massa, à medida que inimigos derrotados eram submetidos a trabalho compulsório - uma condição de tal aviltamento que, não raro, era preferível morrer bravamente em combate a permanecer vivo e ser capturado pelos vencedores. Segue-se disso tudo que, uma primeira consequência da escravização dos vencidos é que, nas cidades e campos, passava a haver uma população de escravos que votava ódio feroz a seus senhores, sendo, por isso, uma ameaça constante à paz interna e à segurança. Afinal, alguém poderia, hoje, ser uma figura rica e importante de um lugar e, amanhã, um escravo em território inimigo, em decorrência de uma guerra de conquista.
Para os vencedores, porém, as consequências não eram restritas ao medo contínuo de uma rebelião de escravos (¹). Os antigos trabalhadores livres da agricultura viam-se sem trabalho, ao serem substituídos por mão de obra cativa. Mesmo pequenos proprietários de terras não podiam competir com os grandes latifundiários escravocratas. Que fazer? Muita gente tentava encontrar trabalho nas cidades, mas a maioria das pessoas não tinha sucesso nessa busca, de modo que uma multidão de desocupados juntava-se ao número dos potenciais revoltosos. A situação tornou-se tão séria que, em Roma, as autoridades viram-se na contingência de fazer distribuições de trigo, com o objetivo de acalmar os ânimos dos esfomeados. E, para mantê-los ocupados, faziam-se celebrar espetáculos públicos, esperando-se que toda a ira da população desempregada se consumisse em presenciar lutas e outros embates sangrentos. Era a chamada "política de pão e circo", coisa que qualquer colegial conhece bem (espero!).
O ócio, por sua vez, era elevado à condição de coisa desejável, atributo da elite, que podia, assim, dedicar-se a questões tais como a política e os estudos, inclusive os de caráter filosófico. Isso vale tanto para gregos como para romanos, mas não deixa de ser curioso que, quando gregos também foram escravizados, meninos e jovens de Roma aprendessem língua grega e filosofia com mestres escravos. E, como nem todo mundo estudava ou exercia algum tipo de governo, havia sempre muita gente importante desocupada que, no auge do Império Romano, gastava seus dias em termas, festas e orgias, bem longe, portanto, dos valores frugais dos primeiros tempos de Roma, nos quais a juventude nobre era estimulada a exercitar-se nas árduas tarefas da carreira militar (²).
Já houve muito historiador que não hesitou em dizer que tal quadro, na Roma Antiga, trouxe consigo o declínio moral da sociedade e, consequentemente, a derrocada geral do Império - à medida que, no plano interno, Roma mergulhava nas pesadas consequências da escravização em massa de seus inimigos, externamente os novos adversários, mais fortes que os anteriores (e enfrentando Roma mais fraca), punham-se a solapar as antigas fronteiras do Império. A queda de Roma seria, pois, apenas uma questão de tempo. Deixo a meus leitores o direito ao julgamento, por si mesmos, da questão do declínio moral de Roma, mas não há como negar que a escravidão, substituindo a vitalidade de um povo de trabalhadores livres, teve seu papel tanto em fazer de Roma uma tremenda potência como em arruiná-la, posteriormente. A história de muitos outros povos segue linhas bastante parecidas.

(1) O que, aliás, acontecia: a Revolta de Espártaco é, talvez, o mais célebre exemplo disso.
(2) Vale ressaltar que Cícero, escrevendo ao filho, lembrava que nenhum jovem saudável devia fugir às obrigações do serviço militar.


Veja também:

domingo, 2 de junho de 2013

Quem faz o trabalho doméstico?

Pequena reflexão sobre certas semelhanças entre as primeiras décadas dos Séculos XX e XXI

 

Anúncio de sabão para uso
doméstico geral (¹)
Duas senhoras bastante idosas entram em uma loja, dessas que vendem - para decoração, por suposto - objetos semelhantes aos que podiam ser encontrados nas cozinhas de antigamente.
Diz uma:
- Olha, Fulana, latas de mantimento, como aquelas que a gente tinha!
A outra:
- E que a gente ficava areando, até brilhar...
Resmunga a primeira:
- Pensando bem, ô vida desgraçada que a gente levava, hein...
Meus leitores, essas veneráveis memórias de simpáticas vovós não podem deixar de suscitar algumas reflexões. Saído há pouco da escravidão, o Brasil das primeiras décadas do século XX, confrontado com as novas realidades do trabalho livre e da urbanização, viu redefinirem-se o espaço doméstico e toda a lista de cuidados necessários à boa ordem de uma casa. A cozinha ideal do século XIX, a da casa-grande, repleta da fumaça de um fogão a lenha, no qual se preparavam doces, bolos e comidas típicas de fazenda, tudo em tachos ou panelas enormes, foi sendo suplantada, urbanamente, por outra menor, com muito menos fumaça e, naturalmente, com outros padrões de asseio. Compreende-se: a mão de obra doméstica já não vinha das senzalas, e muitas vezes a dona da casa tinha, literalmente, que pôr a mão na massa, ao menos para comandar as tarefas diárias, o que não excluía a presença de trabalhadores (e principalmente trabalhadoras) assalariados: cozinheira, copeira, arrumadeira, faxineira, lavadeira, e por aí vai. A lista podia (e ainda pode) ser maior ou menor, diretamente proporcional às posses da família empregadora. É quase desnecessário lembrar que, nesses tempos, a ideia de que a população masculina da família pudesse participar das tarefas domésticas era, ao menos como regra geral, inexistente.
Anúncio de sabão em pó para a
lavagem de roupas (²)
Não obstante, fosse por arte da indústria nacional ou fruto de importações, uma série de novos equipamentos e produtos eram agora oferecidos para facilitar o trabalho de cuidar de uma casa. Curiosamente, a propaganda dessas coisas procurava introduzir a ideia de uma mãe de família zelosa, sempre limpa e bem vestida, prezando pelo bem-estar do marido e dos filhos, e por isso mesmo usando este sabão, aquela torradeira, ou fogão, ou mesmo as primeiras geladeiras, que começavam a ser comercializadas. Aspecto interessantíssimo esse, mediante o qual o trabalho que era considerado há poucas décadas como digno apenas de quem estava reduzido à condição de escravo, agora era visto como coisa de mãe e esposa exemplar... Uma reelaboração do papel feminino com amplos desdobramentos no âmbito da família,  mas também um triunfo da propaganda a serviço do incipiente capitalismo que se introduzia no país. Quem achar que estou exagerando pode, por si mesmo, estabelecer uma comparação entre esse novo "ideal feminino" com o ideal que se encontrava, por exemplo, nas obras literárias do Romantismo, lá por meados do século XIX.
Propaganda de cera para pisos (³)
E olhem, leitores, que cuidar de uma casa não era coisa fácil. Pensem no que era encerar o piso: sim, com aquela cera pastosa e de odor não exatamente agradável. Verdade é que, com a proliferação de eletrodomésticos, chegou a ser possível contar com a ajuda de uma enceradeira (uma relíquia do século XX), mas isso era somente para o polimento. A cera, propriamente, era muitas vezes espalhada com as mãos, usando-se para isso um tecido espesso e resistente. Antes da enceradeira, havia o escovão, feioso e pesadão (ai, que rima sem graça!), desses que, eventualmente, podem ser vistos em museus.
O que era então passar camisas e ternos de linho usando um ferro de brasa? Lavar e alvejar brancos lençóis bordados à mão? Paremos por aqui, para evitar pesadelos.
Anúncio de fogões a gás (⁴)
Pois bem, há alguns dias (2013, sim, senhores!), li uma notícia em que se dizia que, devido à nova legislação relativa aos direitos dos trabalhadores domésticos, várias empresas estavam dispostas a lançar no Brasil uma série de eletrodomésticos que, já existentes em outros países há muito tempo, poderiam ser úteis para facilitar as tarefas de cuidado da casa, presumindo-se que muitas famílias deixarão de ter "empregadas".
Pra quem quiser enxergar: tragédia ou farsa, o século XXI presencia, em certo sentido, a repetição do fenômeno ocorrido no início do século XX. Há cem anos era preciso acostumar-se com o fato de que já não se podia lançar mão da senzala para o trabalho da casa. Hoje... Concluam por si mesmos.

(1) A CIGARRA, nº 235, 1º de julho de 1924.
(2) A CIGARRA, nº 242, 1º de dezembro de 1924.
(3) A CIGARRA, nº 227, 1º de março de 1924.
(4) CORREIO DA SEMANA, 30 de novembro de 1914.
Todas as imagens foram editadas para facilitar a visualização.
Observação importante: É evidente que as senhoras às quais me referi no começo da postagem não são do início do Século XX. Encontrei-as há pouco tempo.


Veja também: