domingo, 13 de abril de 2014

Uma senhora que caiu do cavalo

As povoações coloniais eram, em geral, muito pequenas, e acontecimentos que nos pareceriam de todo triviais tornavam-se, então, assunto para muito falatório. Nascimentos, casamentos, falecimentos, tudo era contado em seus mínimos detalhes, principalmente se as circunstâncias envolvidas fugissem ao padrão.
Ora, senhores leitores, é possível que estejam a pensar que hoje as coisas não são, afinal, muito diferentes...
Não, mesmo. Mas é que a quantidade de "notícias" disponíveis costuma ser muito maior, e vêm elas de todos os cantos do planeta. Por assim dizer, não sobra tanto tempo para dissecar um único acontecimento. Mas não era esse o caso no passado. As comunicações eram dificílimas e notícias de longe levavam meses, às vezes anos, para finalmente alcançarem as vilazinhas coloniais. A fofoca, pois, era alimentada pelos acontecimentos da própria localidade.
Vai aqui um exemplo, colhido na Nobiliarchia Paulistana, de Pedro Taques de Almeida Paes Leme. Morreu Dona Francisca Leite, rica fazendeira de gado, casada com Pedro Cardoso, que havia "passado para a Índia". O casal não tinha filhos. Que haverá de anormal nisso? As circunstâncias da morte, claro, que Pedro Taques narra com um colorido notável. Vejamos:
"D. Francisca Leite, que faleceu sem geração pelo infeliz sucesso que lhe aconteceu por ser bastantemente resoluta em montar qualquer generoso cavalo, que o sabia mandar com excelência de qualquer perfeito cavaleiro."
Começa aí o espetáculo da intriga. O que, na época, era virtude em um homem, nem sempre se via com bons olhos em uma senhora. O que Pedro Taques quer nos dizer é que D. Francisca tinha-se metido a fazer o que não devia, ou seja, cavalgava como se fosse um homem. Mas vale a pena continuar, já que, consecutivamente, vem a descrição por-me-no-ri-za-da das circunstâncias de tão fatal acidente:
"Ao vadear uma grande ribeira, para avançar o alto barranco dela, picou com esporas de pua ao bruto, que carregando a grande corpulência desta senhora, avançou a ganhar o barranco com ímpeto, que lhe tinha estimulado o castigo do ferro..."
Sou obrigada a nova pausa - Pedro Taques, no Século XVIII, não se via na obrigação de ser politicamente correto e, sem nenhum recato, diz que D. Francisca era muito gorda - "carregando a grande corpulência desta senhora..." Ufa, haja veneno!
Mas é hora de concluir, e vem mais:
"E desbroando-se a terra em que já tinha as mãos, voltou-se de costas, e no precipício da queda recebeu D. Francisca o dano de se lhe imprimir no estômago o arção da sela, que era à Jerônima, e para logo perdeu a vida, que parece procurou ela esta fatalidade, pelo atrevimento com que se meteu no perigo."
Calculem agora os meus leitores o que deve, contextualizando à época, ter sido o velório dessa criatura. Valia o mesmo para qualquer outro acontecimento, e nem precisava ser coisa tão notável. Não havia jornais no Brasil daqueles tempos, muito menos redes sociais. Havia, é certo um bom número de tagarelas e, o mais surpreendente, Pedro Taques parece ter sido um deles.


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