segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Coches, tílburis, carruagens

Transporte urbano com tração animal


Câmara dos Senadores, tendo, nas imediações, veículos de tração animal (¹)

O Paço Imperial, construído no Rio de Janeiro no Século XVIII, para servir,  inicialmente, como residência do Governador (vice-rei), era dotado de duas cocheiras, segundo descrição de Joaquim Manuel de Macedo:
"A face do norte apresentava [...] um pórtico fronteiro a outro igual da face do sul, dando entrada para o saguão, e além desse, mais dois para serventia particular, e entre eles duas cocheiras e dezenove janelas de peitoril." (²)
Não se espantem os leitores: cocheiras eram absolutamente necessárias. Animais que serviam ao transporte de humanos e de carga precisavam de moradia.
Muita gente andava a cavalo; em áreas urbanas, porém, a maioria das pessoas preferia os "carros", que podiam ser coches, seges, troles, tílburis, e assim por diante.
Como a maioria de nós, gente do século XXI, não tem a menor intimidade com o uso desses veículos, vai aqui um pequeno dicionário para alguns deles, sem nenhuma pretensão a rigor técnico, apenas para dar uma ideia:

Sege - tinha só um par de rodas e um assento. Cortinas ocultavam o(s) passageiro(s).
Coche - semelhante à sege, mas geralmente com quatro rodas.
Carruagem - Montada sobre molas, para reduzir o impacto ao passar por buracos e outras irregularidades do terreno (não pouco frequentes).
Carroça - com duas ou quatro rodas, servia para o transporte de carga. Era puxada por cavalos, burros ou mulas.
Trole - era uma carruagem bem simples, que se usava para o transporte de passageiros, principalmente no interior do Brasil.
Tílburi - Tinha um só par de rodas, com um único animal de tração.

Um fiacre, desenho de Thomas Ender (³)

A literatura brasileira do Século XIX contém numerosas referências a meios de transporte com tração animal, mesmo porque eles eram parte da vida quotidiana de quase todo mundo. Em Dom Casmurro, por exemplo, a personagem que dá título à obra relata o apreço que tinha, na infância, por passear na sege de propriedade do pai. Bentinho contará por si mesmo:
"Era uma velha sege obsoleta, de duas rodas, estreita e curta, com duas cortinas de couro na frente, que corriam para os lados quando era preciso entrar ou sair. Cada cortina tinha um óculo de vidro, por onde eu gostava de espiar para fora.
- Senta, Bentinho!
- Deixa espiar, mamãe!
E em pé, quando era mais pequeno, metia a cara no vidro, e via o cocheiro com as suas grandes botas, escanchado na mula da esquerda, e segurando a rédea da outra; na mão levava o chicote grosso e comprido. Tudo incômodo, as botas, o chicote e as mulas, mas ele gostava e eu também."
É bom lembrar que a maioria das pessoas, nas cidades, fazia uso de "carros de aluguel", num sistema semelhante aos modernos táxis, mas havia quem tivesse seu próprio meio de transporte. A propósito, quem tinha, por exemplo, um coche particular, devia ter, também, um escravo ou empregado para a função de cocheiro ou condutor. Nos carros de aluguel o cocheiro era, em geral, assalariado para a função. É também de Machado de Assis esse trechinho de Quincas Borba que nos permite entrever o fato de que cocheiros podiam, afinal, ser pessoas que apreciavam informações em primeira mão, o que obrigava casais apaixonados à guarda de um comportamento, digamos, discreto:
"Não percamos estes momentos; vamos dizer nomes ternos; mas baixo, baixinho, para que os malandros da almofada do carro não escutem. Para que há de haver cocheiros neste mundo? Se o carro andasse por si, a gente falava à vontade, e iria ao fim da Terra."

Meio-coche, desenho aquarelado de Thomas Ender (⁴)

(1) ____________ O Brasil Pitoresco e Monumental. Rio de Janeiro: E. Rensburg, 1856. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) MACEDO, Joaquim Manuel de. Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 36.
(3) Fiacre, desenho de Thomas Ender. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) Meio-coche, desenho aquarelado de Thomas Ender. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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sexta-feira, 26 de setembro de 2014

"Clérigos revoltosos e travessos"

"...Se nos lugares de sua Comarca houver alguns clérigos revoltosos e travessos, diziam as Ordenações do Reino (*), o fará notificar aos prelados, para que os castiguem; e não o querendo eles fazer, no-lo fará saber, para nisso provermos como nos bem e justiça parecer."
Pois bem, meus leitores, houve no Século XVIII um religioso franciscano de nome Francisco Tavares Cabral que, segundo a Nobiliarchia Paulistana, de Pedro Taques de Almeida Paes Leme, cansou-se da vida na clausura, de modo que, fugindo do Rio de Janeiro, foi aventurar-se em Vila Boa de Goiás, onde, de antemão, já se encontravam suas irmãs. Deve ter imaginado que, tão longe, sertão adentro, ninguém iria trazer-lhe incômodos.
Sucede, porém, que o infeliz teve de defrontar-se com o sargento-mor Antônio Ribeiro Leal, um sujeito que, levando as Ordenações muito a sério, prendeu o frade fujão e o remeteu, acorrentado, ao Superior de sua Ordem no Rio de Janeiro. Lá foi simplesmente trancafiado na prisão da qual, para isso, dispunham os franciscanos. Sigo com a narrativa de Pedro Taques:
"Com o decurso dos anos se consumou a pena do castigo, e foi posto em liberdade fora dos cárceres em que se tinha conservado, quando já o culpado réu a não pôde gozar com sossego de espírito, porque refletindo nos erros da vida passada caiu na infelicidade de ficar leso do discurso, e vive como pateta possuído de um temor pânico, que lhe tem introduzido a maior humildade que se pode considerar; contudo segue os atos de religião, sem liberdade para sair à rua acompanhando a qualquer outro religioso. Altos são os juízos de Deus!"
Calma, nada de condenar Pedro Taques a apedrejamento. Era ele apenas um homem de seu tempo e, portanto, considerava o ingresso em uma ordem religiosa como uma obrigação vitalícia, uma vez assumida. Nessa lógica, agia dentro da legislação o Superior que, aprisionando o fugitivo, seria, pelos padrões de nossos dias, o responsável, em maior ou menor grau, por conduzi-lo à insanidade.
Tempos infelizes, aqueles. Muitos jovens acabavam por ingressar na vida religiosa sem que para isso tivessem a menor vocação. Faziam-no por imposição dos pais, ou, talvez, pelo desejo de prosseguir os estudos que, como simples leigos, não poderiam obter. Pior ainda era a situação de muitas moças que, contra a própria vontade, eram condenadas a uma existência desgraçada, longe de familiares ou amigos, dentro de conventos ou "recolhimentos", submetidas a uma infindável rotina de jejuns e penitências, sob o medo contínuo das penas do inferno. Para elas, sequer havia a justificativa dos estudos que, como regra geral, nunca eram estendidos às mulheres.
Depois disto, venham os leitores mais jovens deste blog queixar-se de que lhes falta, hoje, liberdade!

(*) Ordenações do Reino, Livro Primeiro, Título LVIII, § 18, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.


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quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Escravos carregadores de sacas de café cantavam enquanto trabalhavam

Quem vivia no Rio de Janeiro em princípios do Século XIX podia querer ter um cafeeiro que produzisse para o consumo da família. Quem sabe, poderia até cultivá-lo no jardim, como planta decorativa. Pouco a pouco, os cafeeiros passaram às propriedades agrícolas e, ao longo do Século XIX ganharam enorme importância econômica para o Brasil.
Para que tanto café? Para exportação, certamente. Para países da Europa e, mais tarde, também para os Estados Unidos.
Antes da existência de ferrovias, o café era transportado até os portos por tropas de mulas. Sim! E, uma vez na área litorânea, era, até o local de embarque, carregado por escravos.
Daniel P. Kidder foi um pastor e missionário metodista que viveu no Rio de Janeiro, então capital do Império do Brasil, entre 1837 e 1840, os anos finais do chamado Período Regencial. Nesse tempo os escravos eram numerosos e nenhuma das grandes leis abolicionistas havia sido promulgada. Para um estrangeiro, mesmo vindo dos Estados Unidos, onde a escravidão também existia, havia muita coisa curiosa a observar - e Daniel P. Kidder era um observador benevolente, que chegou a apreciar muito do que via no Brasil, embora, por suposto, ficasse chocado com alguns costumes.
Foi assim que descreveu o trabalho dos escravos que carregavam as sacas de café:
"Os carregadores de café andam sempre geralmente em magotes de dez ou vinte negros sob a direção de um que se intitula capitão.
São em geral os latagões mais robustos dentre os africanos. Quando em serviço, raramente usam outra peça de roupa além de um calçãozinho curto; põem de lado a camisa, para não incomodar. Cada um leva na cabeça uma saca de café pesando cento e duas libras e, quando todos estão prontos, partem num trote cadenciado que logo se transforma em carreira." (¹)
Ora, Kidder notou que, para aliviar a fadiga e monotonia do trabalho, os escravos tinham o hábito de... cantar:
"Sendo suficiente apenas uma das mãos para equilibrar o saco, muitos deles levam, na outra, instrumentos parecidos com chocalhos de criança, que sacodem marcando o ritmo de alguma canção selvagem [sic] de suas pátrias distantes. A música tem, em elevado grau, a faculdade de espairecer o espírito dos negros, e, naturalmente que ninguém lhes pretenderia negar o direito de suavizar sua dura sorte cantando essas toadas que lhes são tão caras quão desagradáveis aos ouvidos dos outros." (²)
"Ninguém lhes pretenderia negar o direito"? Bem, é o próprio Daniel P. Kidder quem explica que até houve quem tentasse barrar a cantoria, mas considerações de ordem econômica acabaram trazendo a música de volta:
"Consta que certa vez se pretendeu proibir que os negros cantassem, para não perturbar o sossego público. Diminuiu, porém, de tal forma a sua capacidade de trabalho que a medida foi logo suspensa." (³)


Escravos carregadores de sacas de café no Rio de Janeiro (⁴)

Mais tarde, as ferrovias substituiriam, gradualmente, as tropas de muares, na tarefa de transportar o café das fazendas aos portos. O trabalho dos carregadores, porém, teria vida longa. Muito depois dos terríveis dias da escravidão, era à força de músculos que sacas de café (e de outras mercadorias) continuariam a ser conduzidas para embarque.


(1) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 64.
(2) Ibid.
(3) Ibid.
(4) ___________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Primeiros experimentos fotográficos no Brasil

Há referências que apontam para o fato de que o desenhista francês, estabelecido no Brasil, Hércules Florence, teria sido o primeiro a fazer experimentos fotográficos nestas terras do Continente Americano. Não somente isto, há quem assevere que seus experimentos lhe dariam a primazia também no mundo. Oficialmente, os primeiros experimentos fotográficos reconhecidos datam de 1827, havendo, de 1835, o negativo mais antigo (ao que se sabe), obra de W. H. Fox Talbot.
As experiências não cessaram: Louis Daguerre obteve em 1837 o seu "daguerreótipo", que só levou a público dois anos mais tarde. Vale lembrar que os processos de Fox Talbot e de Daguerre ficaram conhecidos, respectivamente, como calotipia e daguerreotipia (fotografia, afinal, é bem mais fácil, e significa, simplesmente, "escrever com a luz").
Mas vamos adiante. Em 1851 apareceria o processo, dentre os "antigos", que considero de resultados mais bonitos, cujo nome é método do colódio úmido. Era obtido mediante um negativo que resultava de um banho de colódio e sais de prata sobre uma placa de vidro.
Conta Machado de Assis que um padre, viajando em uma embarcação francesa, fez demonstrações de fotografia no Rio de Janeiro, no início de 1840:
"Há vinte e quatro anos, em janeiro de 1840, chegou ao nosso porto uma corveta francesa, L'Orientale, trazendo a bordo um padre de nome Combes.
Este padre trazia consigo uma máquina fotográfica. Era a primeira que aparecia na nossa terra. O padre foi à hospedaria Pharoux, e dali, na manhã do dia 16 de janeiro, reproduziu três vistas - o largo do Paço, a praça do mercado e o mosteiro de São Bento.
Três dias depois, tendo Sua Majestade aceitado o convite de assistir às experiências do milagroso aparelho, o padre Combes, acompanhado do comandante da corveta, foi a São Cristóvão, e ali se fez nova experiência; em 9 minutos foi reproduzida a fachada do Paço, tomada de uma das janelas do torreão.
É isto o que referem as gazetas do tempo." (¹)


Paço Imperial, fotografia de Victor Frond, 1861 (³)

Nove minutos? É isso mesmo. Os primeiros processos fotográficos exigiam longas exposições, sendo, portanto, impróprios para retratos. O gradual aperfeiçoamento das técnicas fotográficas acabou com esse problema e fez do ato de tirar retratos uma verdadeira mania. Prova disso é que o mesmo Machado de Assis, em 1864 (portanto, menos de um quarto de século após a primeira "demonstração" do padre Combes), dizia haver no Rio de Janeiro umas trinta "oficinas fotográficas" (²). Não era pouco para a época.


(1) DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, "Ao Acaso", 7 de agosto de 1864.
(2) Ibid.
(3) RIBEYROLLES, Charles. Brazil Pittoresco. Paris: Lemercier, 1861. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Direitos reais

De acordo com as Ordenações do Reino (*), eram estes, dentre outros, os direitos exclusivos do rei de Portugal:
- Nomear capitães para as forças tanto terrestres quanto marítimas;
- Nomear diversos funcionários encarregados da administração da justiça;
- Cunhar moeda;
- Cobrar imposto destinado às despesas de casamento do próprio rei ou para compor o dote de suas filhas;
- Impor o serviço militar e o fornecimento do que quer que fosse necessário em tempo de guerra;
- Tomar carros, bestas e navios que pertencessem aos súditos, sempre que precisasse deles;
- Exigir a construção de pontes em lugares nos quais sua real pessoa devia passar;
- Ainda que de uso público, estradas, ruas e rios navegáveis eram considerados "patrimônio real";
- Ilhas localizadas nas imediações do Reino também eram consideradas patrimônio real, assim como todos os portos;
- Minas de metais preciosos eram propriedade real, independente de onde fossem encontradas, vindo daí o direito à cobrança dos Reais Quintos (20%), tida como uma grande bondade, já que todo o metal devia, originalmente, pertencer ao rei;
- Pertenciam ao rei os bens cujo dono fosse desconhecido, ou que fossem produto de descaminho (contrabando);
- Finalmente, eram propriedade real os bens confiscados aos culpados de crime de lesa-majestade ou condenados por heresia, o que nos leva a perceber como a Inquisição era interessante, não é mesmo? Não é sem causa, pois, que os próprios monarcas ibéricos foram tão ágeis em acolhê-la em seus domínios. A esse respeito, o Livro V das Ordenações prescrevia (conforme Título Primeiro):
"E além das penas corporais que aos culpados no dito malefício forem dadas, serão seus bens confiscados, para se deles fazer o que nossa mercê for, posto que filhos tenham."
Pérfido sistema que, em nome da preservação da fé imposta a todo o Reino, deixava, eventualmente, crianças inocentes em completo desamparo!

(*) Ordenações do Reino, Livro Segundo, Título XXVI, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra. Vale lembrar que as Ordenações foram compiladas e publicadas pela primeira vez no início do Século XVII, mas muito da legislação que as compunha já existia bem antes disso.


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quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Músicos assírios - a arte a serviço da guerra

Grupo de músicos retratado em um relevo assírio (¹)
Os assírios levam a fama de terem constituído o povo mais cruel da Antiguidade. Seus exércitos saíam das margens do Tigre para espalhar o terror entre as populações vizinhas. A crueldade no trato com os inimigos derrotados tornou-se proverbial.
Que justificativa haveria para o espetáculo de selvageria que proporcionavam a cada batalha?
A explicação, ao menos em sua versão "oficial", era: "Nossas conquistas provam a força de nossos deuses, muito melhores e mais capazes que os deuses de nossos vizinhos".
Entretanto, a verdade oculta por trás dessa pretensa religiosidade era bem outra: "Conquistamos porque temos um desejo incontrolável de domínio, de supremacia sobre outros povos, de provar que somos os melhores; empreendemos conquistas, afinal, porque temos uma fome insaciável de apropriação do produto do trabalho alheio".
Ufa! Que diferença para os nossos dias...
Os assírios, porém, a despeito da crueza nas guerras, deviam ser grandes apreciadores de música. Alguns de seus relevos (já por si, notáveis obras de arte) contêm imagens de músicos com seus instrumentos, alguns deles facilmente identificáveis. Não conhecemos todas as situações nas quais, na cultura assíria, a música desempenhava um papel significativo, mas podemos ao menos inferir que as celebrações de vitórias deviam ser devidamente acompanhadas por grupos musicais, parentes remotos das bandas militares que todo mundo conhece.

Músicos assírios com seus instrumentos (²)

(1) LAYARD, Austen Henry. Discoveries on the Ruins of Nineveh and Babylon. London: John Murray, 1853, p. 455. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) PINCHERLE, Marc. An Illustrated History of Music. New York: Reynal & Company, 1959, p. 11. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog..


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segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Máquinas a vapor


Embarcação a vapor no Rio das Velhas, 1868 (¹)

As locomotivas a vapor foram tão marcantes ao longo do século XIX e, por algumas décadas, também do século XX, que, para muita gente, locomotiva a vapor e máquina a vapor são a mesma coisa. Mas não são: a máquina a vapor foi invento que possibilitou que muitos outros dele decorressem - havia uma infinidade de equipamentos a vapor, desde os grandes teares que movimentavam a indústria têxtil da Inglaterra e de outros países, passando por navios e maquinário agrícola, até, curiosamente, automóveis que chegaram a ter alguma circulação, antes que motores a diesel ou gasolina se afirmassem soberanos.
Para se ter uma noção da importância que as embarcações a vapor desempenharam no século XIX, basta mencionar que os correios que faziam a ligação entre a Corte (Rio de Janeiro) e São Paulo eram determinados com base nas datas em que os vapores executavam esse trajeto (entenda-se, a metonímia era usual).

Locomotiva a vapor sobre a Ponte da Barra, Estrada de Ferro D. Pedro II, 1881 (²)

Foram, no entanto, as locomotivas, arrastando carros e vagões (de passageiros e carga, respectivamente) que ganharam a afeição popular. Pelos "caminhos de ferro" as notícias, antes tão lentas, circulavam mais depressa; muito menino, olhando o trenzinho que surgia, à distância, deve ter sonhado em romper com a vidinha sossegada do lugar de origem, para ir tentar a sorte em uma cidade grande. Não há dúvida - para o Brasil do Século XIX, a construção de ferrovias, ainda que morosa e limitada a algumas regiões, trouxe uma ruptura significativa com o passado.
Não surpreende, pois, que Joaquim Manuel de Macedo escrevesse, nos tempos do Segundo Reinado:
"Vivemos no século do vapor, e atualmente tudo se faz a vapor, até mesmo os estadistas e os salvadores da pátria.
E é também por isso que o Brasil vai a vapor. Para onde? Não sei. Só Deus o sabe." (³)

(1) Primeiro vapor a percorrer o Rio das Velhas; fotografia de Augusto Riedel, 1868. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Linha Central da Estrada de Ferro D. Pedro II, Ponte da Barra, 1881. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) MACEDO, Joaquim Manuel de. Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 242.


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sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Terríveis paulistas (como quase todos os demais colonizadores)


Acampamento de bandeirantes (¹)

Entre autores dos séculos XVII e XVIII não são raras referências nada elogiosas à conduta dos paulistas; já no Século XIX, o Padre Ayres de Casal observou:
"Os paulistas de hoje passam por uma boa gente; mas seus avoengos não o foram certamente." (²)
Perguntará alguém dentre os leitores: Até que ponto essa observação era procedente? Para dar resposta à questão, vejamos, primeiro uma pequena lista, na qual todos os itens são provenientes da Nobiliarchia Paulistana, obra de genealogias escrita no Século XVIII, com evidente finalidade de exaltar os feitos dos paulistas:

1. Era comum que os patriarcas de Piratininga e adjacências tivessem muitos índios escravizados, centenas deles, a despeito dos protestos dos jesuítas envolvidos na catequese da população ameríndia; quando um sujeito tinha muitos desses índios escravizados, afirmava-se que era um "potentado em arcos"... O mais curioso é que os pobres escravizados eram, eufemística e legalmente, chamados "administrados", nunca "escravos", como de fato acontecia. Pior ainda, dizia-se que os índios eram "extraídos do sertão para o grêmio da Igreja".

2. Na busca por indígenas para a escravização, paulistas logo descobriram que era "bom negócio" atacar as missões e/ou reduções, já que nelas, aos cuidados dos padres, os índios viviam desarmados e, além disso, aprendiam ofícios mecânicos, fato que contribuía para torná-los mais valiosos para a venda.

3. Dinheiro amoedado era raro na Capitania de São Vicente, por sua distância da Europa e pequeno comércio direto com a Metrópole lusitana, de modo que o fenômeno da falsificação de moedas não era, em absoluto, desconhecido, a despeito das severíssimas leis previstas nas Ordenações do Reino para esse crime. Em carta à Câmara Municipal de São Paulo, datada de 1709, dizia El-Rei:
"E porque o mesmo Pedro Taques me representou a grande perturbação que causou nesse povo as moedas falsas que se acharam nessa capitania, vos ordeno que neste particular procedais com aquela diligência e cuidado que pede matéria tão importante." (³)

4. Não era incomum em São Paulo que houvesse homem obrigado a casar-se, usando a linguagem da época, "à força das armas" - os senhores leitores devem imaginar a causa. Outro eufemismo corrente era "casou por força de consciência".

5. Levantes e rebeliões também não eram incomuns. Enquadra-se aqui, por exemplo, a chamada "Aclamação de Amador Bueno", ocasião em que parentes desse rico fazendeiro pretenderam fazê-lo, nem mais e nem menos, que o rei de São Paulo! A coisa só não prosseguiu porque Amador Bueno teve juízo suficiente para rejeitar o posto que lhe queriam conferir.

6. A querela entre as famílias Pires e Camargo provocou arruaças e assassinatos por anos a fio nas ruas de São Paulo.

7. Os testamentos de paulistas estavam repletos de referências a filhos "bastardos mamelucos" e/ou "filhos naturais" (essa expressão é ótima - como seriam filhos artificiais?!!!), ou seja, nascidos fora do casamento reconhecido pela Igreja.

8. O rapto de mulheres também não era desconhecido na povoação; a poligamia seguia pelo mesmo caminho.

9. Há relatos de envenenamentos, bem como de apropriação indébita de herança que pertencia a parente(s).

10. Finalmente (como a lista já está muito longa), vale recordar que, tão afeiçoados eram os paulistas em escravizar índios que, a despeito de se considerarem bons católicos, não tiveram escrúpulos em promover a expulsão dos jesuítas em 1640, de tal forma que aos padres somente foi permitido o retorno após longa negociação.

Que dizer de tudo isso?
Antes de mais nada, é bom lembrar que feitos igualmente meritórios podem ser encontrados em quase todas as povoações de alguma importância existentes no Brasil daqueles dias. No caso dos paulistas, o isolamento em que viviam talvez explique, ao menos em parte, muitas das infrações. Ilhados no interior da Colônia, estavam livres para aprontar, como bem entendessem, com quase nenhuma restrição. O governo estabelecido por Portugal estava longe e, nessas condições, obedecer era mais uma opção do que uma obrigação.
Ora, vez por outra, o próprio governo precisava deles e, assim tinha que negociar. Amostra disso foi o que ocorreu quando se necessitou, desesperadamente, de gente disposta a lutar contra os holandeses no Nordeste. Solução? Proclamou-se anistia completa aos paulistas que houvessem cometido quaisquer atrocidades em suas andanças pelo sertão no apresamento de índios, desde que se alistassem para combater "o holandês". Preocupada em desmantelar Palmares, a administração lusa não hesitou em contratar os serviços de experientes bandeirantes que seguiam Domingos Jorge Velho. Estando "tão exausta" a Real Fazenda, foi aos sertanistas de São Paulo que recorreu o monarca português, incitando-os à procura de ouro, enquanto acenava com honrarias, em caso de sucesso.
Sedentos de glória e riqueza, paulistas arriscaram os bens e a vida à cata de metal precioso. Uns poucos lucraram bastante com a aventura. A maioria, anonimamente, saiu-se muito mal. Enquanto isso, graças aos avanços desses tipos descalços, famintos e maltrapilhos pelo interior da América do Sul, a Linha de Tordesilhas ia para o espaço e o mapa do Brasil tomava contornos algo parecidos aos que tem atualmente.
Não vale a pena generalizar. Devia haver gente excelente em São Paulo, mesmo nos difíceis dias da povoação de Piratininga. A maioria, no entanto, como ocorria com os mais colonos Brasil afora, era mesmo do arco da velha.

(1) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica, vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 222.
(3) LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarchia Paulistana.


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quarta-feira, 10 de setembro de 2014

É proibido jogar bola

Viajando pelo Brasil por volta da época da Independência, Saint-Hilaire, naturalista francês, observou que meninos brasileiros pareciam tristes, pouco brincalhões e não eram frequentemente vistos, ao menos em público, envolvidos em brincadeiras próprias de sua idade, como soltar pipas ou jogar bola. Tendo estado também na então Província Cisplatina (¹), que D. João insistira em anexar ao Brasil, notou que os meninos uruguaios eram bem diferentes. Brincavam como seria esperado de crianças normais.
É difícil avaliar o quanto a observação de Saint-Hilaire corresponderia à verdade. Nem sempre aquilo que se percebe em público é o mesmo que sucede na vida privada. Mas pode haver um precedente legal para explicar por que motivo, no Brasil, não se brincava em público.
Diziam as Ordenações do Reino (²) no Livro Quinto, Título LXXXII, § 10:
"E qualquer pessoa que, ao Domingo ou dia de festa que a Igreja manda guardar, antes da missa do dia jogar a bola, pagará da cadeia quinhentos réis para quem o acusar. E na mesma pena incorrerá qualquer oficial mecânico ou homem de trabalho que na Corte ou na cidade de Lisboa jogar a bola pela semana, em qualquer dia que não seja de guarda." (³)
Não vou discutir agora a distinção feita na lei entre "qualquer pessoa" e "qualquer oficial mecânico". É coisa por demais evidente, no contexto da época, de modo que dispensa comentários.
Como se sabe, as leis que vieram a fazer parte das Ordenações eram, em sua maioria, bem anteriores à compilação. Assim, no Século XVI, Estácio de Sá proibiu o jogo de bola no Rio de Janeiro, além de jogos de cartas e dados.
Proibição feita, desobediência garantida. Conta Varnhagen (⁴) que Estácio de Sá não teve outro remédio senão conceder anistia aos infratores e, daí por diante, instituiu uma multa de cem mil réis (na época, era muito dinheiro), que deviam ser pagos à Confraria de São Sebastião. Consta que o regulamento foi respeitado.
De qualquer modo, a proibição feita por Estácio de Sá (assim como a das Ordenações) era voltada a homens adultos, mas pode ter significado uma restrição, ainda que velada, aos jogos de bola por meninos, ao menos da parte dos pais, que não deviam achar graça nenhuma em uma eventual multa. Não é sem causa, portanto, que em fins do Século XVI o Padre Fernão Cardim, referindo-se aos meninos índios, dizia que eram muito mais alegres em suas brincadeiras que os meninos portugueses que encontrou, ao percorrer o Brasil acompanhando o visitador jesuíta Cristóvão de Gouvêa. (⁵)

(1) A anexação formal ocorreu em 1821. Em 1828 a Cisplatina tornou-se independente.
(2) Compiladas e publicadas no início do Século XVII, mas em grande parte já existentes muito antes disso.
(3) De acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
Vale recordar que, em se tratando de escravos que fossem flagrados jogando bola, a legislação portuguesa era ainda mais severa. Dizia o Livro Quinto, Título LXXXII, § 11:
"E aos escravos que forem achados em qualquer parte de nossos Reinos, culpados em cada um dos casos acima ditos, ou jogando outro qualquer jogo na Corte ou na cidade de Lisboa, ser-lhe-ão dados vinte açoites ao pé do pelourinho, salvo se seu senhor quiser pagar por o seu escravo quinhentos réis para quem o prender, e que não o açoitem."
(4) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 1, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 305.
(5) Veja, sobre este tema, a obra de Fernão Cardim, relatando a visitação ocorrida entre 1583 e 1590: CARDIM, Pe. Fernão S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, p. 41.


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segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Embalsamamento de primeira classe no Egito Antigo

O Egito Antigo é famoso por suas múmias - corpos de mortos devidamente embalsamados. Ora, em que é que consistia, afinal, o embalsamamento?
Heródoto de Halicarnasso deixou-nos, disso, um relato interessante. É preciso explicar, antes de mais nada, que havia embalsamamentos de vários preços, e, como é lógico supor, era à família do morto que cabia a decisão quanto ao que se pretendia (ou podia) gastar com o parente falecido.
Sarcófago egípcio (*)
Assim, desde que a família escolhesse um embalsamamento de primeira classe, seriam necessários setenta dias para que o processo se completasse.
Dentre outros procedimentos mencionados por Heródoto, competia aos médicos embalsamadores, uma vez fechado o contrato com a família, remover o cérebro do morto, por meio de ganchos que eram introduzidos através do nariz. Alguns compostos eram postos no lugar. Acabava assim a primeira parte do longo processo.
Em seguida, fazia-se uma abertura abdominal, para remoção de órgãos e limpeza. Sendo esse um procedimento de alto padrão, a cavidade era preenchida com arômatas da melhor qualidade, destacando-se a mirra e uma variedade de canela tipicamente oriental.
Após os setenta dias, o embalsamamento era concluído com o enfaixar do corpo com tecido de linho embebido em goma. Assim preparada, a múmia era posta no sarcófago escolhido pela família, que, de qualquer modo, sempre tinha forma aproximadamente humana.
Depois disso, o destino da múmia podia variar. Um rei ou nobre importante já teria, de antemão, preparado um túmulo para si. Mas havia famílias que simplesmente levavam o sarcófago para casa, e lá ficava ele em um canto, junto à parede... Se considerarmos a importância que davam os egípcios ao que criam ser a vida após a morte, era este, por certo, um destino inglório. A despeito de toda a preparação que alguém fizesse em vida, em última instância o destino de um morto, no Egito, dependia, como em todos os tempos e lugares, da boa ou má vontade dos vivos.

(*) DeHASS, Frank S. Buried Cities Recovered 5ª ed. Philadelphia: Bradley, Garretson & Co., 1883, p. 55.


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sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Livros proibidos

Publicar livros, assim, à vontade, é coisa das sociedades democráticas. Certo, cada um é responsável, inclusive legalmente, pelo que escreve. Mas não há nenhuma instância que deva, obrigatoriamente, autorizar a impressão e venda, antes que uma obra qualquer seja dada ao público.
Ora, nesse sentido, as coisas já foram bem difíceis. Havia, antes de mais nada, o Index Librorum Prohibitorum, ou seja, a lista de livros, atualizada periodicamente, cuja leitura era vedada aos católicos. Com isso, nos países que eram oficialmente de religião católica, a circulação dos livros constantes no Index era proibida. Infratores eram punidos com toda a severidade.
Ao longo dos séculos (¹), o Index variou bastante, mas nele constaram, como seria óbvio, as obras dos reformadores Lutero, Calvino e companhia, bem como escritos dos homens de ciência que bateram cabeça com autoridades eclesiásticas (Galileu, Copérnico, Giordano Bruno...), gente do Iluminismo (Rousseau, Diderot, Voltaire, Montesquieu, por exemplo) e até figuras universalmente reconhecidas na Literatura (como E. Zola, Victor Hugo, Flaubert e muitos outros).
Ora, senhores leitores, querem descobrir por si mesmos as razões que teriam levado tantos livros ao listão dos proibidos? Podem correr os olhos por suas páginas (²). Hoje, isso é possível, ninguém impede ou proíbe. Talvez, por isso mesmo, é que relativamente pouca gente se dá ao trabalho de cultivar a leitura.
Lista de livros proibidos publicada em
Portugal no ano de 1551 (³)
Mas não era apenas por questões religiosas que um livro podia ser impedido de circular. Havia também a censura das autoridades seculares. No caso de Portugal e de suas colônias, o regulamento era estipulado pelas Ordenações do Reino, no Livro Quinto, Título CII:
"Por se evitarem os inconvenientes que se podem seguir de se imprimirem em nossos Reinos e Senhorios ou de se mandarem imprimir fora deles livros ou obras feitas por nossos vassalos, sem primeiro serem vistas e examinadas, mandamos que nenhum morador nestes Reinos imprima, nem mande imprimir neles nem fora deles obra alguma, de qualquer matéria que seja, sem primeiro ser vista e examinada pelos desembargadores do Paço, depois de ser vista e aprovada pelos oficiais do Santo Ofício da Inquisição. E achando os ditos desembargadores do Paço, que a obra é útil para se dever imprimir, darão por seu despacho licença que se imprima, e não o sendo, a negarão. E qualquer impressor livreiro, ou pessoa que sem a dita licença imprimir ou mandar imprimir algum livro ou obra, perderá todos os volumes que se acharem impressos, e pagará cinquenta cruzados, a metade para os cativos e a outra para o acusador." (⁴)
Finalmente, deve-se acrescentar que, mesmo que um livro fosse autorizado tanto pelo Desembargo do Paço quanto pelo Santo Ofício da Inquisição, sendo desse modo impresso e posto à venda, podia, posteriormente, ser proibido. Toda a edição era, então, confiscada e destruída. Foi o sucedeu  ao famosíssimo Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas, de André João Antonil. Qual o motivo? Simplesmente porque só depois da publicação é que as autoridades portuguesas perceberam que a obra "falava demais", dava imensa quantidade de informações sobre o Brasil Colonial, de modo a despertar a cobiça de outras potências europeias. Pouquíssimos exemplares escaparam à destruição.

(1) O Index Librorum Prohibitorum existiu desde a segunda metade do Século XVI até nada menos que 1966.
(2) A dificuldade estaria, talvez, em encontrar alguns títulos, que não veem uma edição há muito tempo.
(3) O original pertence ao acervo da BNDigital; a  imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) De acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.


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quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Um índio que só era surdo na hora da catequese

Os jesuítas que, no Século XVI, vieram ao Brasil tendo como meta a catequese dos povos indígenas, comunicavam-se com seus irmãos de Ordem em Portugal, ou mesmo com o Geral da Companhia de Jesus em Roma, através de cartas. Eram essas correspondências um tanto longas, já que nelas era descrito o trabalho de vários meses, quando não de anos. Entende-se: as comunicações, na época, eram difíceis. Em regra, apenas um navio por ano fazia a rota de São Vicente a Lisboa e, por vezes, nem mesmo esse único empreendia a viagem.
Por força de uma série de circunstâncias, Anchieta, que ainda noviço viera ao Brasil, acabou por fazer-se um verdadeiro mestre no gênero epistolar, de modo que muito da correspondência da Companhia de Jesus em suas primeiras décadas no Brasil foi por ele redigida. E é assim que temos, dele, um relato que raia a humorístico, de um índio que, para não ser catequizado, fazia-se passar por surdo. O episódio aparece em uma carta escrita em São Vicente, datada de 1º de junho de 1560, cujo destinatário era ninguém menos que o Geral Diego Laynez, sucessor de Inácio de Loyola:
"Adoeceu um destes catecúmenos em uma aldeia nos arrabaldes de Piratininga e fomos lá para lhe dar algum remédio, principalmente para a sua alma: dizíamos-lhe que olhasse para a sua alma, e que deixando os costumes passados, se preparasse para o batismo; respondeu que o deixássemos sarar primeiro, e esta resposta somente nos dava a tudo que lhe dizíamos nós outros; declarávamos abreviadamente os artigos da fé e os mandamentos de Deus, que muitas vezes de nós já tinha ouvido, e respondido, como enjoado, que já tinha os ouvidos tapados, sem ouvir ao que lhe dizíamos, em todas as outras coisas fora deste propósito, respondia prontamente, que bem parecia não ter tapados os ouvidos do corpo, e somente os do coração." (¹)
Perseverantes os padres em catequizar, perseverante o "surdo" em não se deixar batizar, o fato é que não sabemos quem venceu essa batalha - Anchieta nada diz a respeito. Porém, com esse relato, temos uma ideia de como marchava a catequese. Os padres queriam multiplicar discípulos. Alguns índios, ao que parece (²), queriam apenas que os deixassem viver como índios. Isso, é claro, quando as coisas ocorriam pacificamente. Em outras cartas, o próprio Anchieta chegou a defender o uso de métodos aos quais, hoje, não atribuiríamos muita suavidade.

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 145.
(2) Como não temos relatos dessa época escritos pelos próprios índios, podemos apenas fazer algumas inferências a partir do que escreveram os missionários.


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segunda-feira, 1 de setembro de 2014

A hora e a vez do Absolutismo: "O rei é lei animada sobre a terra"

Se você é do tipo que diz (ou já disse) algo assim: "Olha é lei, viu, está aqui, tudo escrito...", então talvez não faça ideia de que já houve época em que as coisas eram muito diferentes.
Dom Duarte, rei de Portugal (⁴)
Viajemos no tempo, para os dias do rei Dom Duarte, de Portugal, que reinou entre 1433 e 1438. Vigorava, então, a chamada "Lei Mental". Ora, que vinha a ser isto? Lemos nas Ordenações do Reino (¹), Livro Segundo, Título XXXV:
"El-Rei Dom Duarte, por dar certa forma e maneira como os bens e terras da Coroa do Reino entre seus vassalos e naturais se houvessem de regular e suceder, fez uma lei que mandou pôr em sua chancelaria, a qual se chama Mental, por ser primeiro feita segundo a vontade e tenção del-Rei Dom João o Primeiro, seu pai, a qual em seu tempo se praticou, ainda que não fosse escrita."
Mas não era só. As mesmas Ordenações do Reino, a despeito de minuciosamente preverem regras para quase tudo que se possa imaginar, determinavam que, ao fim e ao cabo, o rei estava acima da legislação escrita e podia, desse modo, julgar, não de acordo com a letra, mas "segundo a consciência":
"...porque somente ao príncipe, que não reconhece superior, é outorgado por direito que julgue segundo a consciência, não curando de alegações ou provas em contrário feitas pelas partes..." (²)
Querem mais, senhores leitores? Pois aí vai. Eram tempos, como todo mundo sabe, de absolutismo monárquico. O que é que isso significava, na prática? Resposta, também das Ordenações:
"...o Rei é Lei Animada sobre a terra, e pode fazer lei e revogá-la, quando vir que convém fazer-se assim." (³)
Se alguém dentre os leitores ainda achava que esses eram tempos românticos, lamento pela eventual desilusão. E, lembro, naturalmente, do valor que se deve dar às conquistas da democracia, bem como da obrigação que todos temos de cuidar delas direitinho.

(1) De acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) Livro Terceiro, Título LXVI
(3) Livro Terceiro, Título LXXV, § 1
(4) BRITO, Frei Bernardo. Elogios dos Reis de Portugal com os Mais Verdadeiros Retratos que se Puderam Achar. Lisboa: Pedro Crasbeeck, 1603. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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