sexta-feira, 26 de setembro de 2014

"Clérigos revoltosos e travessos"

"...Se nos lugares de sua Comarca houver alguns clérigos revoltosos e travessos, diziam as Ordenações do Reino (*), o fará notificar aos prelados, para que os castiguem; e não o querendo eles fazer, no-lo fará saber, para nisso provermos como nos bem e justiça parecer."
Pois bem, meus leitores, houve no Século XVIII um religioso franciscano de nome Francisco Tavares Cabral que, segundo a Nobiliarchia Paulistana, de Pedro Taques de Almeida Paes Leme, cansou-se da vida na clausura, de modo que, fugindo do Rio de Janeiro, foi aventurar-se em Vila Boa de Goiás, onde, de antemão, já se encontravam suas irmãs. Deve ter imaginado que, tão longe, sertão adentro, ninguém iria trazer-lhe incômodos.
Sucede, porém, que o infeliz teve de defrontar-se com o sargento-mor Antônio Ribeiro Leal, um sujeito que, levando as Ordenações muito a sério, prendeu o frade fujão e o remeteu, acorrentado, ao Superior de sua Ordem no Rio de Janeiro. Lá foi simplesmente trancafiado na prisão da qual, para isso, dispunham os franciscanos. Sigo com a narrativa de Pedro Taques:
"Com o decurso dos anos se consumou a pena do castigo, e foi posto em liberdade fora dos cárceres em que se tinha conservado, quando já o culpado réu a não pôde gozar com sossego de espírito, porque refletindo nos erros da vida passada caiu na infelicidade de ficar leso do discurso, e vive como pateta possuído de um temor pânico, que lhe tem introduzido a maior humildade que se pode considerar; contudo segue os atos de religião, sem liberdade para sair à rua acompanhando a qualquer outro religioso. Altos são os juízos de Deus!"
Calma, nada de condenar Pedro Taques a apedrejamento. Era ele apenas um homem de seu tempo e, portanto, considerava o ingresso em uma ordem religiosa como uma obrigação vitalícia, uma vez assumida. Nessa lógica, agia dentro da legislação o Superior que, aprisionando o fugitivo, seria, pelos padrões de nossos dias, o responsável, em maior ou menor grau, por conduzi-lo à insanidade.
Tempos infelizes, aqueles. Muitos jovens acabavam por ingressar na vida religiosa sem que para isso tivessem a menor vocação. Faziam-no por imposição dos pais, ou, talvez, pelo desejo de prosseguir os estudos que, como simples leigos, não poderiam obter. Pior ainda era a situação de muitas moças que, contra a própria vontade, eram condenadas a uma existência desgraçada, longe de familiares ou amigos, dentro de conventos ou "recolhimentos", submetidas a uma infindável rotina de jejuns e penitências, sob o medo contínuo das penas do inferno. Para elas, sequer havia a justificativa dos estudos que, como regra geral, nunca eram estendidos às mulheres.
Depois disto, venham os leitores mais jovens deste blog queixar-se de que lhes falta, hoje, liberdade!

(*) Ordenações do Reino, Livro Primeiro, Título LVIII, § 18, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.


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