quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Um índio que só era surdo na hora da catequese

Os jesuítas que, no Século XVI, vieram ao Brasil tendo como meta a catequese dos povos indígenas, comunicavam-se com seus irmãos de Ordem em Portugal, ou mesmo com o Geral da Companhia de Jesus em Roma, através de cartas. Eram essas correspondências um tanto longas, já que nelas era descrito o trabalho de vários meses, quando não de anos. Entende-se: as comunicações, na época, eram difíceis. Em regra, apenas um navio por ano fazia a rota de São Vicente a Lisboa e, por vezes, nem mesmo esse único empreendia a viagem.
Por força de uma série de circunstâncias, Anchieta, que ainda noviço viera ao Brasil, acabou por fazer-se um verdadeiro mestre no gênero epistolar, de modo que muito da correspondência da Companhia de Jesus em suas primeiras décadas no Brasil foi por ele redigida. E é assim que temos, dele, um relato que raia a humorístico, de um índio que, para não ser catequizado, fazia-se passar por surdo. O episódio aparece em uma carta escrita em São Vicente, datada de 1º de junho de 1560, cujo destinatário era ninguém menos que o Geral Diego Laynez, sucessor de Inácio de Loyola:
"Adoeceu um destes catecúmenos em uma aldeia nos arrabaldes de Piratininga e fomos lá para lhe dar algum remédio, principalmente para a sua alma: dizíamos-lhe que olhasse para a sua alma, e que deixando os costumes passados, se preparasse para o batismo; respondeu que o deixássemos sarar primeiro, e esta resposta somente nos dava a tudo que lhe dizíamos nós outros; declarávamos abreviadamente os artigos da fé e os mandamentos de Deus, que muitas vezes de nós já tinha ouvido, e respondido, como enjoado, que já tinha os ouvidos tapados, sem ouvir ao que lhe dizíamos, em todas as outras coisas fora deste propósito, respondia prontamente, que bem parecia não ter tapados os ouvidos do corpo, e somente os do coração." (¹)
Perseverantes os padres em catequizar, perseverante o "surdo" em não se deixar batizar, o fato é que não sabemos quem venceu essa batalha - Anchieta nada diz a respeito. Porém, com esse relato, temos uma ideia de como marchava a catequese. Os padres queriam multiplicar discípulos. Alguns índios, ao que parece (²), queriam apenas que os deixassem viver como índios. Isso, é claro, quando as coisas ocorriam pacificamente. Em outras cartas, o próprio Anchieta chegou a defender o uso de métodos aos quais, hoje, não atribuiríamos muita suavidade.

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 145.
(2) Como não temos relatos dessa época escritos pelos próprios índios, podemos apenas fazer algumas inferências a partir do que escreveram os missionários.


Veja também:

2 comentários:

  1. Esse índio sabia viver, hehe. Fez-me lembrar a minha falecida avó: só ouvia o que lhe convinha.
    Obrigada por este momento.
    Beijinho, um doce fim-de-semana
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    Respostas
    1. Consta que uma de minhas avós era exatamente assim. Infelizmente, não a conheci: morreu quando eu tinha menos de um ano. Parece que era muito simpática com os netos...

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