sexta-feira, 3 de outubro de 2014

As boas ações praticadas pelos condenados ao degredo no Brasil

Pero Vaz de Caminha, após o relato da segunda missa celebrada na "Terra de Santa Cruz", recomendava que, numa próxima viagem que se fizesse ao Brasil, viesse um padre para batizar índios, supondo que haveria conversos, em razão dos dois condenados ao degredo que ficavam na terra:
"Se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degradados que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram."
A crer, entretanto, nos relatos feitos ao longo dos séculos da colonização, não era exatamente por obra de degradados que deveriam os portugueses esperar conversões entre os indígenas.
Nada disso - a maioria dos condenados ao degredo, uma vez no Brasil, mantinha a mesma prática de "boas ações" que os levara à condenação no Reino, de modo que não poucos religiosos, fatigados por seu mau exemplo, imploravam às autoridades que não mais permitissem a vinda desse tipo de gente.
O Padre Manuel da Nóbrega, dos primeiros jesuítas que vieram ao Brasil com Tomé de Sousa, era da opinião de que sentenciados ao degredo somente viessem se condenados, simultaneamente, a trabalhos forçados na Colônia:
"...certo é mal empregada esta terra em degradados, que cá fazem muito mal; e já que cá viessem, havia de ser para andarem aferrolhados nas obras de Sua Alteza." (¹)
Neste caso, o problema devia ser tão evidente, que Nóbrega escreveu o trecho acima em uma carta datada de agosto de 1549, ou seja, pouco depois de ter chegado ao Brasil.
Sobre um desses degradados, observou o Padre Simão de Vasconcelos, também jesuíta:
"Eram mais ilustres que ele seus vícios, cometidos assim em Portugal, como no Brasil: malfeitor, arrogante, soberbo, desbocado, sem temor de Deus nem dos homens, em cabo desalmado." (²)
Que lista de virtudes!
A que conclusão chegamos?
A ideia das autoridades do Reino era que, ao enviar condenados ao degredo, mais rapidamente fosse povoada a Colônia (uma prova, afinal, de que, livremente, poucos viriam); dava-se, ao mesmo tempo, uma oportunidade aos condenados para que endireitassem a vida. Parece, no entanto, que o resultado estava longe disso, se levarmos em conta o testemunho dos padres, segundo o qual o maior obstáculo à catequese eram os colonos europeus e, entre eles, claro, os famosos degradados.
 
(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2, 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 291.
(2) Ibid., pp. 52 e 53.


Veja também:

2 comentários:

  1. Lá diz o ditado, "pau que nasce torto..."
    Marta, estive aqui a refletir, vc faz uma pesquisa histórica tão rica que é um desperdício ficar só aqui no blog. Vc está a preparar algum livro?
    Beijinhos, uma linda semana
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    Respostas
    1. Quem ler as atas da Primeira Visitação do Santo Ofício (à Bahia) logo vai descobrir o que, de verdade, aprontavam os "degradados". Havia até um padre que certamente deixaria o Papa Francisco furioso (se a coisa acontecesse hoje, é claro).
      Sobre o livro, o caso é o seguinte: Meu marido falava nisso sem parar (quando morreu, havia acabado de lançar o terceiro, dele, na Bienal do Rio de Janeiro). Acho que, no meu caso, há uma possibilidade, mas não sei se haveria público leitor para isso. Vende-se muito livro no Brasil, mas sobre outros assuntos :-))))))))))))))))
      O blog, mesmo, está muito longe de ter o público que seria esperado, depois de quase cinco anos. Há blogs no Brasil que chegam a ter mais de cem mil acessos em um só dia. Naturalmente, têm outra temática... Mas tenho pensado no assunto. Quem sabe?

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