segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Mau comportamento na igreja (não só das crianças!)

Você, leitor ou leitora deste blog, é do tipo de pessoa que tem alergia ao mau comportamento de crianças, principalmente em lugares públicos - uma igreja, digamos?
Pois bem, na década de 70 do Século XIX uma professora de escola pública na então capital do Brasil, o Rio de Janeiro, publicou um pequeno livro que logo foi adotado como útil à prática da leitura em muitos estabelecimentos de ensino. O título do livro era Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade (¹); Guilhermina de Azambuja Neves era o nome da autora.
Na página 11 do dito livrinho encontramos:
"Que feia coisa não é ver meninos a correr para um e outro lado no sagrado recinto, comendo gulodices, como se estivessem no passeio ou no teatro."
Cai por terra aquela ideia de que, antigamente, a criançada era rigidamente controlada pelos pais que, com um domínio absoluto, garantiam a disciplina de seus pequenos. Se todos fossem verdadeiros anjinhos, onde teria ido a Professora Guilhermina buscar a figura do pestinha que faz algazarra na igreja?
Continuemos. Para instruir seus hipotéticos educandos a autora prossegue com um "estudo de caso", no qual o menino Adolfo apronta das suas:
"Tem bem em vista estes meus conselhos e nunca imites o proceder do estouvado Adolfo, que se dobra hipocritamente como se estivesse rezando, mas em verdade não está.
Sua mãe já lhe tem feito muitas advertências, mas Adolfo não se corrige.
Sabes o que faz ele de cabeça baixa?
Leva a contar os ladrilhos da igreja, a fazer caretas e a espiar para um e outro lado para ver o que fazem os outros.
Ainda há poucos dias pendurou-se por tal modo na grade da comunhão que caiu desastradamente, fazendo um galo na testa e chamando a geral atenção das pessoas circunspectas que ali estavam em silêncio, ouvindo piedosamente o ofício divino.
Mas ainda bem que no dia seguinte o Senhor Vigário o repreendeu asperamente, ameaçando-o de o não admitir mais na igreja se não se corrigir." (²)
Podem sorrir, leitores. É coisa ingênua, mesmo, mas que no Século XIX era vista como muito apropriada à educação de meninos e meninas.
Missa na Igreja de N. Sra. da Candelária
em Pernambuco, de acordo com Rugendas (⁵)
Agora, é hora de falar sério. Pelo testemunho de ninguém menos que o naturalista Auguste de Saint-Hilaire, podemos deduzir que desordens na igreja não eram, no Brasil do passado, um privilégio de crianças. O autor francês, aliás muito devoto, notou com horror que, durante um serviço religioso no Rio Grande do Sul, as pessoas presentes não pareciam nada preocupadas em, pelo menos, alardear religiosidade:
"Durante todo esse tempo ficara exposto o Santíssimo Sacramento, mas a assistência nem por isso guardava respeito, portando-se quase como se estivesse num mercado." (³)
Observou, depois, algo parecido em São Paulo, desta vez na Semana Santa de 1822, durante a liturgia de quinta-feira:
"No ofício de quinta-feira santa, a maioria dos presentes recebeu a comunhão da mão do bispo. Olhavam todos à direita e à esquerda, conversavam antes deste solene momento e recomeçavam a conversar imediatamente depois." (⁴)
Sejamos justos: nada muito diferente do "estouvado Adolfo"...
Apenas algumas observações, a título de conclusão. Primeiro, é bom recordar que, ao contrário do que sucede hoje em dia, quando só vai a alguma igreja quem quer, no Século XIX o comparecimento às cerimônias religiosas era visto como um absoluto dever cívico e social; além disso, o Brasil - fosse sob governo joanino ou já Império - era um país oficialmente de religião católica, o que conferia ao comparecimento à igreja um aspecto muito diferente daquele que se tem hoje; por último, como esperar que a criançada desse um espetáculo de santidade se os bem crescidos estavam longe daquela conduta que, segundo os costumes do tempo, poderia ser chamada de "exemplar"?

(1) A edição consultada, cujo original pertence ao acervo da BNDigital, foi:
NEVES, Guilhermina de Azambuja. Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade 2ª ed. Rio de Janeiro: 1875.
(2) Ibid., pp. 12 e 13.
(3) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 85.
(4) Idem.  Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 104.
(5) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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2 comentários:

  1. Super divertido o seu post. É caso para dizer, "olha para o que eu digo e não para o que eu faço". Mas devia ser mesmo um suplício para as crianças que não entendiam toda aquela algaraviada. As missas no Brasil, nessa época, eram ditas em português ou latim?
    Abraço
    Ruthia d'O Berço do Mundo

    P.S. Adorei esse menino Adolfo, com um galo no alto da cabeça!

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    1. Eram oficiadas em latim, como acontecia no mundo todo, até o Concílio Vaticano II (Década de 60 do Século XX). Não era preciso ser criança para não entender. A maioria dos adultos também não fazia ideia de coisa alguma. Gente devota levava um missal (livro de missa) para acompanhar o serviço religioso. Aliás, os missais eram espaço para vaidades: havia alguns muito sofisticados, com lindas encadernações, detalhes em ouro, etc., etc., etc.

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