segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Tomé de Sousa não era dado a brincadeiras

Como um livro didático do Século XIX demonstrou a severidade do primeiro governador-geral do Brasil


Após a Independência, surgiu a necessidade de livros destinados ao ensino de História do Brasil em escolas públicas e particulares. Logo havia, pois, alguns títulos à disposição de professores e estudantes. Um deles veio a público em 1843 e foi escrito por José Inácio de Abreu e Lima, um militar brasileiro de vida algo aventurosa. Filho de um padre executado por envolvimento com a Revolução Pernambucana de 1817, Abreu e Lima deixou o Brasil e, ao lado de ninguém menos que Simón Bolívar, lutou pela independência das colônias espanholas na América.
De volta ao país de origem, publicou seu Compêndio de História do Brasil, dedicado ao Imperador D. Pedro II. Embora a proposta da obra fosse servir como recurso didático em salas de aula, o autor entreteceu, ao longo do texto, alguns episódios interessantes, que hoje dificilmente apareceriam em livros escolares, justamente porque não seriam considerados politicamente corretos. Veremos um deles, útil para demonstrar que Tomé de Sousa, o primeiro governador-geral do Brasil, não era um tipo com o qual se devia brincar.
Lá vai. Foi durante a construção da primeira capital do Brasil, Salvador, então chamada Cidade da Bahia. Um colono português foi morto por um índio. Tomé de Sousa, por certo na intenção de evitar novos incidentes, não tardou em mostrar autoridade - no melhor estilo da época:
"Infelizmente um dos colonos foi morto por um tupinambá, a oito léguas distante da cidade; o governador, para prevenir o mau exemplo, exigiu que o homicida lhe fosse entregue, e mandando-o atar à boca de uma peça (¹), foi feito em pedaços. Não havia execução menos dolorosa para o culpado [sic], nem mais horrorosa para os espectadores; o terror se espalhou entre os tupinambás e os colonos que receberam também uma lição terrível se abstiveram de ir imprudentemente meter-se em meio dos selvagens." (²)
Que tal, senhores leitores? Bom discurso para instruir crianças? (³)
Esse acontecimento ilustra com perfeição o trato que, em última análise, era dado aos indígenas que reagiam desfavoravelmente à colonização. Estava, no entanto, de acordo com os costumes do Século XVI. Não seria nenhuma surpresa se, em outra circunstância, o governador-geral mandasse executar do mesmo modo um português.
Entretanto, será interessante não nos esquecermos de que, publicado em 1843, o livrinho de Abreu e Lima aparecia em uma época na qual, saído o País há pouco do Período Regencial, enfrentava ainda as consequências de uma série de revoltas. Talvez a intenção do autor, acostumado a comandar e disciplinar tropas nas lutas pela independência da América do Sul, fosse ensinar à molecada das escolas brasileiras que atos de insubordinação não eram, afinal, uma boa ideia, ainda que, em meados do Século XIX, já não fosse costume atar um infrator à boca de um canhão para, em seguida, reduzi-lo a pó.

(1) Peça de artilharia. Um canhão ou outra coisa similar.
(2) LIMA, José Inácio de Abreu e. Compêndio de História do Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert, 1843, pp. 40 e 41.
(3) O mesmo episódio é contado por vários outros autores. O que chama a atenção, aqui, é sua inclusão em uma obra com propósitos educacionais.


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2 comentários:

  1. Muito bom. Será que inspirava o terror dos petizes? Duvido.
    Abraço
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    Respostas
    1. Acho que nesse tempo, entre os colonos europeus, havia ainda poucos pequenos. Não eram numerosas as famílias de colonos, mas muitos os aventureiros que vinham sós, tentando enriquecer na América. Já meninos índios havia muitos. Tomé de Sousa deve ter tentado impor respeito em meio a índios e colonos acostumados a viver sem muitas regras.

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