quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Como se fazia justiça nas Minas no começo do Século XVIII

O rei e demais autoridades estavam muito longe - do outro lado do Atlântico. Magistrados que eram mandados ao Brasil levavam meses para chegar, tendo depois que, por terra, seguir até as minas. A dificuldade era tanta, que havia quem recusasse o cargo. Num cenário desses, será fácil imaginar os desmandos que aconteciam nas minas, nas quais, durante muito tempo, chorava menos quem mais podia. Ou seja, na ausência do Estado, os habitantes das regiões mineradoras não vacilavam em fazer justiça com as próprias mãos.
O padre Manoel da Fonseca, que escreveu a famosa biografia do também padre Belchior de Pontes (¹), tendo vivido no Século XVIII, devia saber muito bem do que tratava quando observou:
"Não faltavam contudo alguns poderosos que, usurpando a jurisdição que não havia naqueles lugares, se intrometiam a fazer justiça, prendendo em um círculo, que com um bastão faziam ao redor do delinquente, impondo-lhe logo pena de morte se saísse dele, sem satisfazer à parte que o acusava. A mesma pena se impunha muitas vezes aos devedores, para que pagassem (...)." (²)
O mesmo autor atribui a maioria dos tais desmandos aos paulistas, o que não vem a ser nenhuma surpresa, já que, sendo eles os descobridores das minas, foram, também, por algum tempo, a maioria entre a população, ainda que o padre Manoel da Fonseca visse outras causas para a arrogância dos chefões da mineração:
"Eram os cúmplices mais frequentes destes delitos os paulistas, porque como viviam abastados de índios que tinham trazido do sertão, e de grande número de escravos, que com o ouro tinham comprado, se fizeram notavelmente poderosos, chegando alguns a tanta soberania [sic], que falando com os forasteiros (³) os tratavam por vós, como se fossem escravos; e por isso eram deles maiores as queixas, ainda que em grande parte nasciam dos mamelucos que tinham em casa, sem que talvez chegassem à notícia dos amos os seus desmanchos." (⁴)
Curiosíssimo costume, este, de tratar forasteiros por "vós", como mostra de desprezo - afinal, devia ser este o tratamento de cerimônia... Entre paulistas, no entanto, acabava funcionando como forma de indicar distanciamento, tanto que era usado para com escravos e subalternos em geral. Puro deboche. Indício certo de prepotência da parte de quem assim falava.
Tão logo a notícia da certeza do ouro das Gerais chegou ao Reino, houve prontidão em mandar instalar um governo que controlasse as minas. Os fatos iriam mostrar, porém, que assumir o controle não era tarefa simples. Não foram poucas as rebeliões, sob as mais diversas causas, que ocorreram na fase áurea da mineração (não consigo evitar o trocadilho). Uma boa mostra é dada pelo movimento conhecido como Revolta de Filipe dos Santos, ocorrido em 1720, contra o estabelecimento de Casas de Fundição.
A propósito, Filipe dos Santos (que, em obediência às Ordenações (⁵) foi cruelmente executado) não fazia parte dos bandos de paulistas mandões: era português do Reino.

(1) FONSECA, Manoel da S.J. Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes, da Companhia de Jesus da Província do Brasil. Lisboa: Off. de Francisco da Silva, 1752. 
(2) Ibid., p. 205.
(3) Qualquer um que não fosse paulista, em especial os portugueses, a quem denominavam "emboabas".
(4) FONSECA, Manoel da S.J. Op. cit., p. 205.
(5) Legislação portuguesa compilada e publicada no começo do Século XVII, que vigorou no Brasil durante o Período Colonial.

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