sexta-feira, 27 de março de 2015

Um padre que dizia que borboletas viravam beija-flores

Uma postagem sobre o beija-flor (sim a ave!) pode parecer fora de lugar em um blog cujo principal tema é a História. Sustento, porém, que o assunto é perfeitamente adequado, já que, com ele, perceberão os leitores como andava a ornitologia do Século XVII - ornitologia de um padre, que fique bem entendido e, sendo mais específica, do Padre Simão de Vasconcelos, jesuíta e autor, entre outras obras, das Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil.
Mas vamos ao beija-flor. O Padre Simão de Vasconcelos principia por explicar os nomes indígenas que lhe eram atribuídos, passando depois a uma descrição, digamos, algo mais objetiva ou nem tanto:
"Chamam a este passarinho em geral os naturais da terra goanhambig; em particular a umas espécies, chamam goaraciaba, que quer dizer raio do sol; a outras quoaraciaba, que quer dizer cabelo do sol, e a outras põem outros nomes, segundo o modo de sua formosura, que é tão vária e aprazível, que não poderá arremedá-la o mais destro pintor com as mais finas tintas: rouba o verde do colo do pavão, o amarelo do pintassilgo, o louro do papagaio e o vermelho do guará ou tié, porém quebradas todas estas cores, e modificadas com tal primor, que parece que nem são aquelas, nem delas deve coisa alguma àqueles pássaros. [...] É ave mui pequena, quatro delas não fazem o corpo de um só pintassilgo. Tem a cabeça redonda, bico comprido, vive somente do orvalho das flores [sic], por cuja falta, sendo tomada viva, morre logo. Seu voo é ligeiríssimo, quase não se enxerga no ar [...]." (¹)

Veja se a descrição do Padre Simão de Vasconcelos corresponde à realidade...

Até aqui, a descrição chega a ser aceitável, sabendo que o objetivo do jesuíta Vasconcelos era informar a quem vivia na Europa sobre o que de mais interessante podia ser visto no Brasil. É muito boa, inclusive, a menção aos nomes indígenas. Começam agora, porém, as mais incríveis heresias que alguém poderá imaginar em se tratando de pássaros e, especificamente, de beija-flores:
"Esta avezinha, suposto que fomenta seus ovos e deles nasce, é coisa certa que é produzida muitas vezes de borboletas [sic!]. Sou testemunha, que vi com meus olhos uma delas meio ave e meio borboleta, ir-se aperfeiçoando debaixo da folha de uma latada, até tomar vigor e voar [sic!!!]." (²)
Convenhamos: o pior de tudo é, sem dúvida, a alegação de ser testemunha ocular dessa asneira cabeluda. Querem mais, leitores? Lá vai:
"Maior milagre se afirma dela constantemente e por tantos autores, que parece não  pode duvidar-se, que como só vive de flores, em acabando estas, acaba ela na maneira seguinte: prega o biquinho no tronco de uma árvore, e nela está imóvel como morta, enquanto tornam a brotar as flores (que são seis meses), passado o qual tempo torna a viver e voar [sic!!!!!]." (³)
Já é tempo de falar sério. Vejam quanto foi preciso mudar, em termos de mentalidade, para que um método de investigação científica, digno desse nome, chegasse a ser adotado. Sim, já houve gente envolvida com a ciência que afirmava candidamente que camisas sujas adicionadas a espigas de milho produziam ratos, ou mesmo que comida em decomposição gerava moscas. Havia também os homúnculos, claro. Como esperar que o Padre Simão de Vasconcelos, que não tinha nenhuma grande pretensão científica e que, além disso, devia estar impregnado da mentalidade religiosa de sua época, intensamente voltada ao misticismo, deixasse de acreditar que um beija-flor era meio ave, meio borboleta? 

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, pp. 282 e 283.
(2) Ibid., p. 283.
(3) Ibid., pp. 283 e 284.


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