sexta-feira, 3 de abril de 2015

O uso da religião como instrumento para garantir a submissão dos escravos

É de amplo conhecimento que religiões foram e são, às vezes, usadas para propósitos, digamos... nada religiosos. A surpresa vem quando a coisa torna-se tão  escandalosa quanto ostensiva. 
Chama a atenção, senhores leitores, como uma obrinha até progressista em alguns aspectos, escrita originalmente na primeira metade do Século XIX, tornava-se, com apenas um punhado de linhas, a expressão da máxima perversidade do sistema escravista. Refiro-me à Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro, cujo autor foi o segundo barão de Paty do Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck. Vamos à citação:
"O escravo deve ter domingo e dia santo, ouvir missa, se a houver na fazenda, saber a doutrina cristã, confessar-se anualmente: é isto um freio que os sujeita muito, principalmente se o confessor sabe cumprir o seu dever, e os exorta para terem moralidade, bons costumes, amor ao trabalho e obediência cega a seus senhores e a quem os governa." (*)
Os leitores hão de convir que será difícil encontrar alguma coisa mais explícita quanto ao uso da religião como instrumento para subordinação dos cativos.
Nos tempos coloniais era raro que a regra de descanso aos domingos e dias de festas religiosas fosse respeitada, sendo porém mais frequente sua observância durante o Império. Por outro lado, salta aos olhos a expectativa do barão/fazendeiro/escritor de que o confessor dos escravos entendesse ser um dever doutriná-los para o "amor ao trabalho e obediência cega a seus senhores e a quem os governa". Ora, se o religioso vivesse na própria fazenda, às expensas do proprietário, é bem provável que, fazendo silenciar a consciência que lhe apontava a desumanidade do sistema, apoiasse, do púlpito e do confessionário, aquele que lhe garantia o sustento.
Fica claro, então, que, por inteligente e progressista que fosse o escritor da Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda, era ele um senhor de escravos, e como tal é que raciocinava. Talvez não houvesse, mesmo, como ser diferente. O sistema era brutal e a maioria das pessoas que lhe moviam as engrenagens jamais conseguiria romper com a lógica que possibilitava aos "proprietários" de seres humanos o enriquecimento mediante a extorsão da força de trabalho de seus escravos, mesmo porque eram em extremo beneficiadas por ela.

(*) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, p. 40.


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