segunda-feira, 29 de junho de 2015

Deuses adormecidos

Como eram castigados os deuses gregos que contavam mentiras


Os deuses gregos estavam longe de ser modelos de virtude, ética ou moralidade. Eram briguentos, ciumentos, invejosos, armavam as maiores intrigas e não conheciam limites às perversões. Mas não podiam ser mentirosos. Jurar falso era, entre eles, crime gravíssimo, punido por Zeus Olímpico com grande severidade. 
A regra que proibia mentir valia para toda a multidão de divindades  do panteão grego, e não apenas para os mais famosos, até porque, ao longo dos séculos, os deuses, assim como os homens, sofreram variações de popularidade.
Conta-nos Hesíodo, em sua Teogonia, que Íris era encarregada por Zeus de trazer, em uma vasilha de ouro, a água gelada do juramento, sempre que alguma querela entre os imortais sugeria que um deles estava proferindo uma inverdade.
Ora, o que sucedia é que o mentiroso, ao derramar a água do juramento, era, no mesmo instante, acometido por um sono profundo, a tal ponto que deixava de respirar. Esse estranho fenômeno durava exatamente um ano. Néctar ou ambrosia? Nem pensar! O mentiroso estava de castigo.
Transcorrido um ano, o deus ou deusa acordava, mas, por longos nove anos, não podia conviver com as demais deidades, muito menos participar de seus formidáveis banquetes ou, ainda, dar palpites nas reuniões do Conselho do Olimpo. 
Ao décimo ano, porém, o suplício acabava, e o ex-mentiroso voltava a desfrutar das prerrogativas divinas.
Ora, senhores leitores, imaginem que alguma coisa semelhante ocorresse entre os mortais - em pouquíssimo tempo este planeta seria transformado em um vasto dormitório... Convenhamos que a água do juramento, com a qual Zeus era capaz de manter um mínimo de respeito em meio à algazarra do Olimpo, até que poderia ser útil para fins políticos se, por acaso, seu uso estivesse facultado aos humanos.
Por falar em mentira, alguém dos leitores já experimentou óleo de fígado de bacalhau? Eu não. Nunca. Mas todo mundo que eu conheço e que diz que, quando criança, era obrigado pelos pais a engolir tal coisa, afirma que tem sabor detestável, e não tenho nenhuma razão para crer que seja peta. Mas vejam só este anúncio que apareceu em uma edição (*) da revista paulistana A Cigarra, no ano de 1929:


"Em forma saborosa"? Não sei, não, mas acho que Zeus Olímpico não iria gostar.

(*) Primeira quinzena de junho de 1929, Ano XVI, nº 350

sexta-feira, 26 de junho de 2015

A mortalidade infantil entre filhos de escravas no Brasil do Século XIX

No Século XIX a mortalidade infantil era muito alta. Isso não era coisa apenas de lugares paupérrimos. Embora não haja estatísticas totalmente confiáveis, sabe-se que em alguns países da Europa só um pouco mais da metade dos bebês que vinham ao mundo conseguia crescer o suficiente para alcançar o final da adolescência. Os restantes iam "ficando pelo caminho", em grande parte até os sete ou oito anos de idade, ainda que crianças maiores também fossem vitimadas por doenças e desnutrição severa. 
Mesmo na primeira metade do Século XX as condições não eram muito melhores. Idosos contavam - ou ainda contam - de como em sua infância os funerais de meninos e meninas - seus companheiros de brinquedo ou estudo - eram uma realidade nada incomum. Detalhes como a roupa ou o caixão usual para os pequenos falecidos ainda fazem parte das memórias dos sobreviventes.
Essa situação passaria por transformações radicais ao longo do Século XX. Vacinas, antibióticos, desenvolvimento da puericultura, maior escolaridade materna, melhoria no padrão nutricional, foram alguns fatores que contribuíram para que a mortalidade infantil, em muitos lugares, despencasse.
Mas vamos retornar ao Século XIX. Se a mortalidade infantil era alta entre crianças de condição livre, o que não ocorreria aos filhos nascidos de escravas no Brasil?
Fato é que, antes da abolição do tráfico de africanos, a maioria dos senhores não dava a menor importância ao nascimento dos filhos de suas escravas. O motivo era simples: parecia pouco econômico ter despesas com a criação de alguém que somente aos dezesseis ou dezoito anos poderia, enfim, trabalhar como um adulto. Era preciso também levar em conta que não poucos dentre esses meninos e meninas podiam morrer antes de atingir a "idade produtiva". Muito mais barato era comprar um escravo forte e saudável, que saia do mercado de cativos e ia direto para a roça. Um relato feito por Cristiano B. Ottoni, no calor dos debates que cercaram a chamada Lei do Ventre Livre, dá uma ótima ideia de qual era o raciocínio de um típico senhor de escravos:
"Em todas as palestras entre fazendeiros se ouvia este cálculo: "Compra-se um negro por 300$000; colhe no ano cem arrobas de café, que produzem líquido pelo menos o seu custo; daí em diante tudo é lucro; não vale a pena aturar as crias que só depois de dezesseis anos darão igual serviço."" (¹)
A crueza da argumentação talvez venha a causar espanto aos leitores, mas trata-se de um retrato fidedigno do que ocorria nas fazendas de café. Escravas gestantes continuavam a ir diariamente ao trabalho na roça, não recebiam, como regra, qualquer cuidado especial com a alimentação, e os bebês, quando nasciam, dificilmente eram alvo de alguma consideração. Cresciam junto às mães, partilhando, com elas, as péssimas condições de vida das senzalas. Testemunhavam quotidianamente a opressão a que estavam submetidos os cativos, prenúncio da vida desgraçada e sem perspectivas favoráveis a que estavam destinados. Alguns, por sorte ou robustez natural, acabavam sobrevivendo. A maior parte morria na infância. Mesmo sem dados exatos vê-se que, sob tais condições, a mortalidade infantil entre escravos era brutal.

Em imagem de Debret (²), o cortejo fúnebre de um menino negro (³)
Há quem imagine que a estapafúrdia Lei do Ventre Livre, com todas as suas contradições, pôs fim ao problema, mas não foi assim. Afinal, a escravidão, que nunca deveria ter existido, estava com os dias contados e, se durou ainda alguns anos, foi, entre outras razões, pela pressão política dos que detinham o poder econômico e que morriam de medo que suas fazendas ficassem desprovidas de mão de obra. Sofriam de severa falta de imaginação, que os tornava incapazes de visualizar um mundo sem a existência do trabalho compulsório.

(1) OTTONI, Cristiano Benedito. A Emancipação dos Escravos. Rio de Janeiro: Typographia Perseverança, 1871, p. 67.
(2) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 3. Paris: Firmin Didot Frères, 1839. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Cortejo fúnebre para negros, particularmente escravos, ocorriam, em geral, apenas em áreas urbanas, nas quais as confrarias existentes (como de N. Sra. do Rosário ou de Santa Ifigênia, por exemplo) zelavam pela assistência religiosa quando algum de seus membros falecia. Escravos que morriam em fazendas eram, quase sempre, sepultados em alguma área que o proprietário destinava para cemitério dos cativos. A consequência prática é que, nesse caso, sequer havia um registro legal dos óbitos.


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quarta-feira, 24 de junho de 2015

Doação de sesmarias

Índios recebiam sesmarias... Em terras que já eram suas


Nas Ordenações do Reino (¹), Livro 4º, Título XLIII, as sesmarias eram assim definidas:
"Sesmarias são propriamente as dadas de terras, casais ou pardieiros (²) que foram ou são de alguns senhorios, e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas, e agora o não são." (³)
Antes que uma terra ou propriedade fosse doada em sesmaria, no entanto, era indispensável que o sesmeiro ou doador verificasse quem antigamente a ocupara, dando-lhe um ano de prazo para habitá-la e/ou torná-la produtiva. Somente após esse período é que a legislação permitia que se fizesse nova doação, para assegurar que a terra fosse bem aproveitada e não se deixassem as construções em ruínas. Usualmente, quem recebia uma sesmaria tinha pelo menos cinco anos de prazo para fazê-la produzir. Se, findo esse tempo, tal não ocorresse, a sesmaria podia ser transferida a outra pessoa. 
Determinava-se ainda nas Ordenações que não se desse a uma pessoa mais terra do que seria capaz de bem aproveitar:
"E serão avisados os sesmeiros que não deem maiores terras a uma pessoa de sesmaria que as que razoadamente parecer que no dito tempo poderão aproveitar." (⁴)
A intenção era, lemos ainda nas Ordenações, que as terras fossem sempre cultivadas, para que não houvesse falta de gêneros alimentícios: "porque proveito comum e geral é de todos haver na terra abastança de pão e dos outros frutos". (⁵)
Martim Afonso de Sousa, que veio com expedição ao Brasil em 1530, recebeu do rei D. João III de Portugal uma autorização para doar sesmarias, escrita nestes termos:
"Dom João, a quantos esta minha carta virem, faço saber para que as terras que Martim Afonso de Sousa, do meu conselho, descobrir na terra do Brasil onde o envio por meu capitão-mor se possam aproveitar, eu por esta minha carta lhe dou poder para que ele, dito Martim Afonso, possa dar às pessoas que consigo levar, que na dita terra quiserem viver e povoar aquela parte das terras que assim achar e descobrir, que lhe bem parecer e segundo o merecerem as ditas pessoas por seus serviços e qualidades, para as aproveitarem, e as terras que assim der serão somente nas vidas daqueles a quem as der e mais não, [...] e das que assim der às ditas pessoas lhes passará suas cartas declarando nelas como lhas dá em suas vidas somente, e que dentro de seis anos do dia da dita data cada um aproveitar a sua, e se no dito tempo assim o não fizerem, as poderá tornar a dar com as mesmas condições a outras pessoas que as aproveitem [...]." (⁶)
Apesar do estilo arrevesado da linguagem jurídica do documento, fica claro que a intenção, ao ser concedida uma sesmaria, era que a terra se tornasse produtiva. Produtiva, sim, segundo a ótica dos colonizadores, que supunha que as terras do Brasil estavam desocupadas, e tanto isso é verdade que, posteriormente, seriam feitas doações de sesmarias... aos índios!
Frei Gaspar da Madre de Deus, escrevendo no Século XVIII, registrou, quanto à doação de uma sesmaria aos guaianases:
"Os guaianases oriundos de Piratininga, e mais índios ali moradores, vendo que iam concorrendo portugueses e ocupando suas terras, desampararam São Paulo e foram situar-se em duas aldeias, que novamente edificaram, uma com o título de N. S. dos Pinheiros, e outra com a invocação de S. Miguel. Depois de alguns anos Jerônimo Leitão, locotenente de Lopo de Sousa, Donatário de São Vicente, concedeu-lhes terras por uma só sesmaria lavrada aos 12 de outubro de 1580, na qual consignou aos índios dos Pinheiros seis léguas em quadro na paragem chamada Carapicuíba, e outras tantas aos de S. Miguel em Uraraí. Hoje quase nada possuem os miseráveis índios descendentes dos naturais da terra, porque injustamente os desapossaram da maior parte das suas datas, não obstante serem concedidas as sesmarias posteriores dos brancos com a expressa condição de não prejudicarem aos índios, nem serem deles as terras que se davam." (⁷)
Consta, também, que se doaram terras, a título de sesmaria, ao chefe indígena Arariboia, que lutou com sua tribo ao lado dos portugueses na guerra de expulsão dos franceses do Rio de Janeiro. Os exemplos são muitos, mas esses dois citados são já suficientes para mostrar que nem mesmo os povos indígenas escapavam do sistema de ocupação da terra estabelecido a partir do início do processo de colonização.

(1) A compilação das Ordenações foi publicada no princípio do Século XVII, mas constitui-se, em grande parte, de leis que existiam há muito tempo.
(2) Um "casal" é, neste caso, uma pequena povoação ou vilazinha; já "pardieiro" refere-se a uma antiga habitação em mau estado de conservação.
(3) Ordenações do Reino, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(4) Ibid.
(5) Ibid. 
(6) De acordo com o Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa.
(7) MADRE DE DEUS, Frei Gaspar da. Memórias para a História da Capitania de São Vicente, Hoje Chamada de São Paulo, do Estado do Brasil. Lisboa: Typografia da Academia, 1797, pp. 112 e 113.


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segunda-feira, 22 de junho de 2015

Elefantes de guerra

Imaginem esta cena: estamos andando por uma rua qualquer e, em dado momento, levantamos os olhos e vemos, à distância, uma manada de dinossauros que caminha em nossa direção... 
Absurdo? Claro que sim. Mas admitamos, só por um instante, que a coisa fosse real. A sensação seria, com enorme probabilidade, semelhante à experimentada pelos soldados romanos que viram os elefantes de guerra (¹) que marchavam à frente das tropas cartaginesas (durante as Guerras Púnicas, 264 a.C. a 146 a.C.). Não é sem causa que representações da Antiguidade mostravam romanos pequenininhos diante de elefantes enormes. Era questão de como os próprios romanos viam a si mesmos no campo de batalha.
Ora, meus leitores, com alguma prática, os romanos perceberam que era possível fazer frente aos elefantes de Cartago. Como? 
Bem, os elefantes lá estavam com o objetivo de causar terror aos cavalos. Portanto, antes de mais nada, era preciso evitar um confronto imediato entre a cavalaria romana e os elefantes de Cartago - pensaram que eu iria dizer "elefantaria" cartaginesa?!!!
O caso dos elefantes na guerra foi tão sério que
mereceu a cunhagem de uma moeda (²)
Perversamente, os comandantes romanos, estruturando a formação de suas tropas para o combate, começaram a colocar na linha de frente as forças auxiliares, compostas geralmente por estrangeiros pedestres, que acabavam muitas vezes massacrados, mas dando tempo para que os "romanos de verdade" fizessem cair uma chuva de setas sobre os elefantes. Conta Políbio de Megalópolis (c. 203 a. C. - 120 a.C.) que, a partir disso, os elefantes faziam um grande estrago, porque, feridos, tornavam-se incontroláveis, e o dano sobrevinha a quem estivesse por perto, fosse aliado ou inimigo. Ganhava-se tempo e os elefantes eram inutilizados. O combate retornava aos postulados clássicos, nos quais as forças romanas, muito bem treinadas, eram, naquela época, quase insuperáveis.

(1) Ao que parece, a primeira vez que os romanos enfrentaram elefantes em combate foi quando lutaram contra os exércitos de Pirro, rei do Épiro, no Século III a.C.; os cartagineses, porém, faziam uso maciço de elefantes na guerra, e isso causava forte impressão sobre o exército romano.
(2) LIDDELL, Henry G. A History of Rome. London: John Murray, 1865, p. 219. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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sexta-feira, 19 de junho de 2015

Sociabilidade e religião no Brasil Colonial

O costume colonial de benzer um engenho na primeira vez que moía cana


As oportunidades para convivência social eram, no Brasil dos tempos coloniais, bastante restritas, ao menos para a população que residia em áreas rurais e que era, então, a maioria. Quem vivia perto de uma cidade ou vila podia, pelo menos aos domingos, dar-se ao luxo de ir com a família assistir missa, vindo daí o costume de muitos fazendeiros, que dispunham de uma moradia urbana só habitada nos finais de semana, permanecendo vazia e fechada nos outros dias. Não é, portanto, sem razão, que viajantes estrangeiros que percorreram o Brasil notaram que, em algumas povoações, o único morador permanente era o padre.
Nas propriedades agrícolas havia também ocasiões para festas, que incluíam as comemorações pelo batismo de um bebê (as populares "festas de batizado"), os aniversários e os casamentos, assim como os festejos juninos ou de algum santo da devoção do proprietário. Mesmo o falecimento de alguém costumava ser seguido de um banquete, já que era preciso receber com decência os parentes e conhecidos que vinham de longe para os funerais.
É fácil perceber que o elemento comum subjacente a quase todas essas celebrações era de caráter religioso. Não cabe agora discutir o quanto a sociedade era hipócrita ou o quanto um verniz de religião era útil para mascarar as enormes injustiças e desigualdades, desde o âmbito das famílias até, de forma mais ampla, a própria estrutura colonial. O fato é que assim era, e as maiores perversidades eram varridas, com pouca, muita ou nenhuma sutileza para baixo do tapete das ostensivas demonstrações de suposta fé.

Engenho de cana-de-açúcar (¹)
Todo mundo sabe o quanto podia ser opressiva a vida em um engenho colonial de cana-de-açúcar. Não obstante, os senhores de engenho tinham por hábito, conforme relatou o padre Fernão Cardim (²), providenciar uma cerimônia religiosa sempre que era inaugurado um empreendimento açucareiro:
"Costumam eles [os senhores de engenho] a primeira vez que deitam a moer os engenhos benzê-los, e neste dia fazem grande festa convidando uns aos outros." (³)
Neste caso, como em muitos outros, sociabilidade (a "grande festa") e religião ("benzê-los") andavam de mãos dadas no Brasil Colonial.

(1) Engenho de cana-de-açúcar, imagem do Século XIX. Os engenhos do Período Colonial não eram muito diferentes desse. O original pertence ao acervo da Biblioteca Nacional. A imagem foi restaurada digitalmente e editada para facilitar a visualização.
(2) Este jesuíta acompanhou o visitador de sua Ordem em viagem pelo Brasil entre 1583 e 1590.
(3) CARDIM, Pe. Fernão, S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, p. 67.


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quarta-feira, 17 de junho de 2015

Casas de fundição

A descoberta de ouro no Brasil, em fins do Século XVII, levou a administração portuguesa a adotar uma série de medidas para garantir que os Reais Quintos (um imposto de 20%) fossem, de fato, pagos à Coroa lusitana, como determinava a lei. Ora, a obrigação de pagar ao rei o quinto do ouro era bem conhecida, e os mineradores não podiam, de modo algum, supor que não lhes seria exigida.
O Livro Segundo, Título XXXIV, § 4 das Ordenações do Reino determinava: 
"E de todos os metais que se tirarem, depois de fundidos e apurados, nos pagarão o quinto, em salvo de todos os custos." (¹)
Porém, a ordem para o estabelecimento de casas de fundição provocou insatisfação geral, inclusive com a rebelião de 1720 em Vila Rica, conhecida como Revolta de Filipe dos Santos (²).
Ora, que vinha a ser uma "casa de fundição"? 
Era um estabelecimento público onde todos os mineradores deveriam levar todo o ouro encontrado; lá o ouro era obrigatoriamente transformado em barras e "quintado", ou seja, descontavam-se os 20% que eram encaminhados ao Reino. Depois disso, o ouro que sobrava, em barras que levavam o selo real, era devolvido ao dono. Fica entendido que era formalmente proibido na Colônia o transporte e comércio de ouro em pó, mas entre uma coisa proibida e aquilo que de fato acontece vai, às vezes, uma distância muito grande.
Excetuando-se o fato de que a criação de casas de fundição era irritante porque muitos mineradores pretendiam simplesmente sonegar os Reais Quintos, havia, porém, uma queixa justificada contra elas, de que o ouro que era devolvido em barras nunca correspondia aos 80% devidos. Recebia-se sempre menos, e os senhores leitores não terão dificuldade em imaginar o motivo. Funcionários das casas de fundição encontravam meios fáceis de subtrair ouro para si mesmos. Não é estranho, portanto, que a ordem para o estabelecimento de casas de fundição fosse vista com tanta antipatia, de modo que levou tempo para que finalmente fossem criadas e postas em pleno funcionamento. A despeito delas, ou quem sabe por causa delas, o contrabando de ouro era brutal. Autores da época afirmavam que muito mais era o ouro dos "descaminhos" que aquele que era transformado em barras e quintado.

*****

A ideia de fundir o ouro para entesourá-lo é muito antiga. De acordo com Heródoto, os monarcas da Pérsia já adotavam a prática:
"O monarca persa, para guardar as riquezas no tesouro, costuma colocar ouro e prata derretidos em formas de barro, até que estejam completamente preenchidas e, quando o metal endurece, as formas são retiradas. Assim, sempre que precisa de dinheiro, as peças de ouro e prata vão sendo cortadas." (³)
Os leitores percebem que, na ocasião em que o método descrito por Heródoto era empregado, o uso de um padrão monetário que poderia ser chamado de moeda ainda não estava em uso entre os persas, ao menos para as grandes quantidades de metais preciosos de que o monarca costumava dispor.

(1) De acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) Filipe dos Santos, minerador português que liderou a revolta de 1720, foi preso e executado, com requintes de crueldade - tudo plenamente de acordo com a legislação da época.
(3) Tradução de Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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segunda-feira, 15 de junho de 2015

Queimados vivos

César, em De Bello Gallico, relatou, a respeito de Caio Valério Procilo, que fora feito prisioneiro pelos germanos comandados por Ariovisto:
"Contava que, diante dele próprio, três vezes lançaram sortes para decidir se seria queimado vivo imediatamente ou mais tarde, e que somente em decorrência do resultado da sorte é que ainda estava vivo." (¹)
Parece horrível? Pois é mesmo. Mas a ideia de queimar gente viva atravessou os séculos, e, infelizmente, como sabem muito bem os leitores, ainda tem seus adeptos.
Cristãos, nos dias de Nero, acusados injustamente de cumplicidade no incêndio de Roma, eram untados com algum tipo de gordura e, então, postos a queimar, depois que anoitecia, para iluminar os jardins do imperador, onde se realizavam festejos.
Dizem que o mundo dá muitas voltas e, neste caso, a volta foi tão acentuada que, sob a condenação da Igreja, através do Santo Ofício da Inquisição, não foram poucos os sentenciados por heresia que, queimados vivos em autos de fé,  pagaram pelo crime de pensar diferente da maioria. 
Ocorre, porém, e isso já é menos conhecido, que contemporaneamente às condenações do Santo Ofício, o Estado português também sentenciava à morte por fogo, em alguns casos considerados de jurisdição civil. Senão, vejamos, primeiro, a penalidade para quem fizesse moeda falsa em Portugal ou em seus domínios ultramarinos, de acordo com o Livro V das Ordenações do Reino (²), no Título XII:
"E por a moeda falsa ser coisa muito prejudicial [...] e merecerem ser gravemente castigados os que nisso forem culpados, mandamos que todo aquele que moeda falsa fizer, ou a isso der favor, ajuda ou conselho, ou for disso sabedor e o não descobrir, morra morte natural de fogo, e todos seus bens sejam confiscados para a Coroa do Reino."
Não era só. A mesma pena, cuidadosamente descrita, era aplicada em casos de sodomia, também de acordo com o Livro V, desta vez no Título XIII:
"Toda a pessoa, de qualquer qualidade que seja, que pecado de sodomia por qualquer maneira cometer, seja queimada e feita por fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memória, e todos seus bens sejam confiscados para a Coroa de nossos Reinos, posto que tenha descendentes."
Mais ainda, no Título XIII, § 2:
"Outrossim, qualquer homem ou mulher que carnalmente tiver ajuntamento com alguma alimária, seja queimado e feito em pó. [...]."
Cabe, aqui, esclarecer que, para que alguém fosse considerado culpado, era preciso haver pelo menos duas testemunhas...
Finalmente, conforme o Título XVII, também seria queimado vivo aquele ou aquela que se envolvesse em relação incestuosa:
"Qualquer homem que dormir com sua filha, ou com qualquer outra sua descendente, com sua mãe, ou com outra sua ascendente, seja queimado, e ela também, e ambos feitos por fogo em pó."
O mundo ocidental olha, hoje, com horror, para essas penas cruéis. Mesmo onde se aplica a pena de morte, existe uma preocupação (nem sempre alcançada, é verdade) com que a morte seja rápida e, tanto quanto possível, sem demasiado sofrimento. Ninguém se esqueça, no entanto, de que, há apenas uns poucos séculos, a execução por fogo consistia em um espetáculo público muito concorrido. Sem nenhum exagero, havia quem preparasse lanche para ir, com a família, apreciar um auto de fé. Vejam, senhores leitores, a que abismos é capaz de ir a humanidade quando a selvageria suplanta a razão!

(1) Tradução de  Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) De acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra. Publicadas no início do Século XVII, as Ordenações eram, em grande parte, uma compilação de leis vigentes há muito tempo.


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sexta-feira, 12 de junho de 2015

A chamada dos escravos

Escravos respondiam à chamada pela manhã e à noite, e seguiam em fila para o trabalho


O dia de trabalho de um escravo da lavoura começava muito cedo, embora o horário variasse um pouco, de acordo com a região e as regras que cada senhor fazia executar em sua propriedade. Invariavelmente, porém, tudo principiava pela "chamada", uma contagem de cativos para garantir que ninguém cometesse o equívoco de esquecer o trabalho. Era também um meio para verificar se alguém, durante a noite, havia conseguido fugir.
O segundo barão de Paty do Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, com a intenção de instruir o filho que, ainda jovem, ia assumir uma propriedade agrícola, escreveu a Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro, na qual detalhou o modo pelo qual, segundo seu ponto de vista, devia ser conduzida a chamada:
"O administrador (¹), meia hora antes de romper o dia, deve mandar tocar a chamada, à qual acode, de pronto e a um ponto já designado, toda a escravatura dos diversos trabalhos; formam-se os escravos com separação dos dois sexos e por alturas, ficando os mais altos à direita, e as mulheres defronte dos homens e os feitores no centro. Passa-lhes o administrador uma revista, para ver os que faltam, tomando nota se por doentes, se por omissão ou fuga; dá alta aos restabelecidos do hospital e recolhe a ele os que se acham enfermos; observa se os escravos têm a ferramenta própria do trabalho do dia, cuja ordem deve ser dada de véspera. Imediatamente os mandará persignar e rezar duas ou três orações e seguir logo ao seu destino, acompanhados do feitor." (²)

Escravos em fila, a caminho da roça (⁴)
O toque de chamada era, nas grandes propriedades, feito com uso de um sino. Em algumas menores, porém, na falta do sino, era costume bater um objeto metálico em uma enxada. 
Prosaico? Certamente.
Ninguém deve supor, porém, que a mesma ordem fosse rigorosamente seguida em todas as fazendas, mas a rotina era algo parecida. A chamada, é bom lembrar, podia ser feita a qualquer hora do dia ou da noite, sempre que se desconfiasse de alguma fuga ou tentativa de revolta.
A rotina da chamada repetia-se ao anoitecer:
"O administrador, de noite, quando chegar a escravatura, deve de novo formá-la, passar uma segunda revista, ver se trouxeram capim para a cavalariça ou lenha para si ou para gasto da casa, se dela precisar. Ordenará então o serão da noite, ou no paiol ou no engenho de mandioca, únicos que a humanidade e o seu interesse toleram [sic], porém que não exceda das oito e meia às nove horas; findo o serão irão os escravos cear e logo depois recolher-se às suas senzalas, proibindo-se que saiam até ao toque da chamada da madrugada." (³)
A duríssima jornada dos escravos não terminava, portanto, ao cair da tarde - prolongava-se noite adentro, sempre de acordo com o costume da fazenda ou a conveniência do senhor. O fato de que se proibia sair das senzalas até a hora da chamada na madrugada seguinte mostra, no entanto, que, a despeito do cansaço muito natural, resultante das longas horas de trabalho sob sol ou chuva, com uma alimentação nem sempre adequada, havia escravos que tinham outras ideias e, escapulir podia ser uma tentação, quer para simples conversas, para correr até a venda mais próxima, ou mesmo para planejar uma tentativa de fuga.

(1) Um trabalhador assalariado, que devia supervisionar todo o trabalho na fazenda.
(2) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, pp. 32 e 33.
(3) Ibid, pp. 35 e 36.
(4) RIBEYROLLES, Charles. Brazil Pittoresco. Paris: Lemercier, 1861. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 10 de junho de 2015

Tentativa de suborno

No Século XVI, um índio tentou subornar o padre Luís da Grã para ser o primeiro em sua aldeia a receber o batismo


O Padre Simão de Vasconcelos, jesuíta, registrou em sua Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil um episódio interessante, numa ocasião em que o padre Luís da Grã, provincial da Ordem, foi visitar uma certa aldeia indígena, onde outros religiosos já faziam, há tempos, o trabalho de catequese.
Pois bem, tendo Luís da Grã empreendido a pé a jornada até a aldeia, foi, no caminho, rodeado por indígenas que, com alegria, já o aguardavam, pois que a tão festiva data destinava-se ao batismo dos que, tendo sido doutrinados, eram considerados aptos para o sacramento. Foi exatamente por esse motivo que um dentre os índios, ávido pela honra de ser o primeiro dentre os seus a ser batizado, resolveu obter a tão almejada graça por nada menos que uma tentativa de suborno. Escreveu o padre Simão de Vasconcelos:
"[...] Houve tal que determinou levar a coisa por modo de peita, vindo para isso carregado de cera e um bugio, que oferecia ao padre para que o batizasse entre os primeiros, dando juntamente por causa que era velho, e podia faltar-lhe a vida, e perder a dita daquela água que leva ao lugar do descanso." (¹)
É bem possível que Luís da Grã tenha sorrido interiormente diante do que via... De qualquer modo, segundo o registro de Simão de Vasconcelos, tratou os afoitos indígenas bondosamente, tanto os que, ao vê-lo caminhar queriam transportá-lo em rede, como quem ousava tentar suborno para receber o batismo:
"Abraçou o padre a todos: aos que traziam as redes, disse que os pés dos servos de Deus não cansavam; aos que festejavam, que celebrassem embora as vésperas do dia de sua maior ventura (pelo batismo que ao outro dia haviam de receber); aos que pediam ser dos primeiros, disse que teria lembrança, mas fez-lhes uma prática sobre o presente da cera e bugio, e declarou-lhes a grande pureza dos sacramentos da Lei da Graça [...]." (²)
Depois de gentilmente repelir o suborno, o padre Luís da Grã, que devia crer firmemente que corrupção é pecado, impôs suave penitência ao índio que quisera comprar com cera e bugio a primazia entre os catecúmenos: "Em penitência ordenou ao velho que tornasse carregado e entregasse aquelas coisas a sua mulher e filhos." (³)
Exemplo sábio, que bem poderia ter feito adeptos, não apenas nos tempos coloniais, mas pelos séculos dos séculos.

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 1 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 167.
(2) Ibid.
(3) Ibid.


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segunda-feira, 8 de junho de 2015

O templo de Diana em Éfeso e o direito de asilo concedido pelo governo romano

Vai aqui uma história que bem merecia começar com um "há muitos e muitos anos..".
Pois bem, há muitos e muitos anos, no nono ano de governo de Tibério em Roma (¹), levantou-se uma polêmica no mundo governado pelos romanos quanto ao direito de asilo em templos e altares de diferentes deuses.
Explica-se: era crença geral que pessoas acusadas injustamente de alguns crimes podiam obter asilo, de modo que não fossem presas e punidas, se conseguissem adentrar certos templos, chegando ao altar consagrado a um certo deus. Não era todo e qualquer templo que detinha esse privilégio, e aí é que começou a confusão, porque todo mundo queria que deuses e altares de suas respectivas cidades fossem reconhecidos como locais de asilo. 
Está ficando complicado, senhores leitores? Vem mais: o privilégio de asilo tornou-se alvo da mais ignóbil corrupção, uma vez que reles bandidos de toda espécie, culpados de crimes comuns, corriam a buscar refúgio nos templos. Diante disso, o governo romano, que queria moralizar a questão do asilo, estipulou um prazo para que representantes das cidades cujos templos se pretendiam com o tal direito comparecessem a Roma para defender sua posição.
Através dos Annales registrados por Tácito, historiador romano, ficamos sabendo que os primeiros que chegaram à capital foram os enviados de Éfeso:
"Os primeiros homens que se apresentaram foram os de Éfeso, alegando que, contrariamente à crença popular, Diana e Apolo (²) não haviam nascido em Delos, mas sim no território que pertencia a Éfeso em Ortígia, às margens do Cencrium, onde, junto a uma oliveira, sua mãe, Latona, vendo chegada a hora do parto, apoiou-se para dar à luz." (³)
Ártemis ou Diana, Século V a.C. (⁴)
Acrescentando outras aventuras da mesma espécie, afirmavam os habitantes de Éfeso que o privilégio de asilo no templo de Diana jamais fora contestado, sendo, ao contrário, alvo de respeito por persas, macedônios e pelos próprios romanos.
Ora, sucede que outras cidades também arrazoavam com fatos (que nós consideraríamos mitológicos), reclamando para si o privilégio de asilo com base no culto da caçadora Diana. Tantas alegações cabeludas eram demais para os veneráveis senadores romanos. Repassaram o caso aos cônsules, que, não podendo terceirizar a tarefa, fizeram alguma investigação do assunto e responderam que era comprovada a antiguidade e legitimidade de asilo em um altar consagrado a Esculápio na cidade de Pérgamo. Tudo o mais era obscuro, perdendo-se na noite dos tempos:"ceteros obscuris ob vetustatem initiis niti..."
Algum leitor talvez esteja curioso quanto ao fim de tanta confusão. Fique então dito que os senadores, tendo considerado o caso, responderam de forma respeitosa, para que ninguém se ofendesse, determinando limites para que o privilégio de asilo fosse conservado, mas sem abusos. 
Prudente decisão, essa do Senado romano. 

(1) Ano 775 da fundação de Roma, de acordo com Tácito.
(2) Na mitologia grega, Diana era chamada Ártemis. 
(3) Tácito, Annales, Livro III. Tradução de Marta Iansen exclusivamente para uso no blog História & Outras Histórias.
(4) FAIRBANKS, Arthur.  Greek Gods and Heroes. Boston: Museum of Fine Arts / Houghton Mifflin Company, 1915, p. 23.


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sexta-feira, 5 de junho de 2015

Mercadorias que, no Século XIX, eram transportadas por mulas na Província do Rio de Janeiro

Antes da existência das ferrovias, o transporte de carga no Brasil era feito por animais. Em distâncias menores ou em terrenos muito acidentados, como o Caminho do Mar, quase tudo era carregado por escravos. Rapidez, portanto, não era exatamente uma virtude desse sistema, e as quantidades transportadas também não podiam ser enormes. Além disso, a condição de chegada das mercadorias variava de forma significativa, em particular no caso de alimentos e outros artigos perecíveis. Quem podia garantir a qualidade do charque, por exemplo, depois de exposto à chuvarada de certas épocas do ano?
Tratando do transporte de mercadorias na Província do Rio de Janeiro durante o Império, o segundo barão de Paty do Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, escreveu:
"Ainda na nossa província se fazem todos os transportes às costas de bestas, e nelas se conduz milhões de arrobas de café, muito açúcar, aguardente, toda a casta de legumes que vão ao nosso mercado, galinhas, os toucinhos, carnes de porco, os belos queijos que nos vêm das províncias do interior, os seus algodões em tecido e em rama, o chá que nos principia a vir como um gigantesco ensaio, tudo, em uma palavra, vem carregado às costas destes animais, que nos trazem também o ouro das minas, os seus diamantes e pedras preciosas." (¹)

Caravana de mercadores, de acordo com Rugendas (²)
Quando são considerados todos os inconvenientes do transporte por animais, parece difícil crer que tenha demorado tanto a iniciativa da implantação de ferrovias. Faltava vontade política (³), os investimentos necessários eram, de fato, muito altos, porém o mais chocante era a conformação e mesmo a ignorância que impregnava a mentalidade dos grandes produtores rurais da época, perfeitamente convencidos de que tudo o que precisavam para garantir bons lucros era de um ótimo plantel de escravos e de animais de carga. Não soará espantoso, diante de tanta falta de visão, que chegassem a confundir uns com os outros. Não tinham a capacidade de perceber que o mundo passava por uma rápida evolução no âmbito industrial e tecnológico e que, no ritmo moroso das mulas, as exportações brasileiras, já muito comprometidas pela monocultura, acabariam perdendo o reduzido espaço de que dispunham.

(1) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, pp. 117 e 118.
(2) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence ao acervo da Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização.
(3) No Rio de Janeiro a iniciativa privada foi decisiva, ainda que tenha se mostrado um desastre para o ousado Mauá; em São Paulo foram espantosos os debates travados em torno do assunto das ferrovias na Assembleia Provincial. A ignorância e a teimosia eram, em alguns casos, notáveis.


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quarta-feira, 3 de junho de 2015

Músicos livres e escravos no Império do Brasil

A maioria de nós considera que aprender música é importante, até fundamental, para uma boa educação. Não quer isso dizer que todo mundo deveria fazer música como profissão, até porque a maioria das pessoas ou não tem talento natural para isso, ou não tem a disposição necessária aos longos (e muitas vezes) cansativos estudos requeridos para a formação de um executante. A questão é aprender alguma coisa que possibilite cantar e/ou tocar pelo prazer de fazê-lo, desenvolvendo, igualmente, a capacidade de apreciação. 
Ora, senhores leitores, devo dizer-lhes, no entanto, que, no Brasil, o aprendizado de música já teve um outro aspecto.
É verdade: pelas alturas do Século XIX, esperava-se que moças e rapazes de alta posição social tivessem conhecimentos suficientes para tocar, ao piano, peças de Beethoven ou Chopin nas reuniões com familiares e amigos, sendo também desejável que aprendessem um pouco de canto lírico. A essas habilidades concedia-se, na época, mais ou menos a mesma importância dada à aprendizagem de francês. Quem não tinha ditos atributos era visto como grosseiro, pouco civilizado, sem fineza, mesmo. Pior seria ainda o defeito se ocorresse em uma jovem...
Nem toda música, porém, vinha dos profissionais (nos teatros) ou dos filhos da nobreza imperial. Em muitas fazendas, para garantir a sonoridade dos bailes nos quais latifundiários ostentavam seu poderio econômico, havia uma banda ou simulacro de orquestra - formada por músicos que eram escravos.
Relatando uma "festa de batizado" que presenciou em Vila Bela, Hércules Florence, desenhista francês que acompanhou a Expedição Langsdorff, observou:
"No dia do batizado tudo foram festas. Os músicos da fazenda que eram negros cativos tocaram desde a aurora árias debaixo das janelas da casa e passearam em bando ao redor do pátio grande." (¹)
Em um romance ambientado em uma fazenda do Vale do Paraíba, nos dias de D. Pedro II, José de Alencar escreveu:
"A ausência de Mário diminuiu o prazer e alegria da festa; mas não transtornou o programa. Principiou o banquete e prolongou-se até a noite ao som da banda de música dos pretos da fazenda, que tocava quadrilhas e valsas." (²)
Não há como saber, ao certo, qual era o nível de conhecimento musical dos escravos-músicos (ou músicos-escravos...). Uma vez que eram raríssimos aqueles que sabiam ler e escrever (³), era pouco provável que muitos deles fossem capazes de ler uma partitura. 
Essa era a situação no Império. No entanto, quando observamos fotografias antigas de corporações musicais, pouco posteriores à Abolição (1888), logo percebemos que vários de seus integrantes deviam ser ex-escravos ou seus descendentes, algumas vezes atuando junto a músicos imigrantes de origem europeia. Novos estilos musicais estavam, portanto, em fermentação, como recurso para exprimir as vivências da nascente estrutura social livre e urbana que ganharia forças ao longo das décadas seguintes.

(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 186.
(2) ALENCAR, José M. de. O Tronco do Ipê.
(3) Em geral os senhores consideravam que era um absurdo ensinar um escravo a ler; isso poderia torná-lo esperto demais e, talvez, mais qualificado a organizar uma rebelião.


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segunda-feira, 1 de junho de 2015

Soldados de Roma contra a fúria do Mar do Norte

No ano 16 d. C. as legiões romanas comandadas por Júlio César Germânico, um general destacado e irmão do futuro imperador Cláudio, alcançaram, por uma rota marítima, as terras dos bárbaros germanos que viviam além do Reno. Lá entraram em combate contra os comandados de Armínio e venceram. Do ponto de vista romano, lavava-se a honra das legiões lideradas por Públio Quintílio Varo, que em 9 d.C. haviam sido destroçadas pelos germanos.
A ação das forças de Germânico foi bem planejada. Sabendo que ir por terra resultaria em grande desgaste tanto para seus soldados como para os cavalos, o comandante romano preparou transporte pelo Mar do Norte, cuidando em viajar numa ocasião de clima favorável e, tanto quanto possível, buscando combater em campo aberto, uma situação mais propícia ao raciocínio militar de Roma do que os combates em meio a densas florestas, visivelmente preferidos pelos germanos.
Tendo alcançado a vitória, as forças romanas prepararam-se para retornar. Aí, porém, tiveram que enfrentar um inimigo poderoso, com o qual não havia a possibilidade de qualquer negociação: o mar em fúria. Tendo deixado a terra com tempo bom, logo as embarcações foram batidas por vento fortíssimo, acompanhado de chuva, de modo que ondas gigantescas jogavam as embarcações de um lado para outro. Em desespero, a soldadesca, que nunca tinha enfrentado nada semelhante, atrapalhava as manobras dos marinheiros, ao mesmo tempo procurando jogar ao mar tudo o que era possível - segundo Tácito, historiador romano, não foram poupados cavalos, animais de carga, bagagem, suprimentos e nem mesmo as armas.
Tudo em vão. Muitos morreram afogados, enquanto outros, com um pouco mais de sorte, foram arremessados em ilhas desertas. Ainda de acordo com Tácito, os que se recusaram a comer os cavalos mortos que eram jogados na praia pelas ondas simplesmente morreram de fome. O próprio comandante Júlio César Germânico sobreviveu a duras penas. 
Cessado o furor da tempestade, fez-se uma tentativa de reparar as embarcações que ainda existiam, com o uso de velas improvisadas. Uma busca em algumas ilhas permitiu reunir um número maior de soldados. Soube-se, posteriormente, que alguns tinham ido parar na Inglaterra. 
É certo que esses sobreviventes tinham muito a contar, e pode-se supor que não faltou quem quisesse ouvir. Diz o relato de Tácito, no Livro Segundo dos Annales:
"De quanto mais longe voltavam, maiores eram as coisas fantásticas que contavam sobre a violência da tempestade, a existência de aves completamente desconhecidas, de monstros marinhos e de seres que eram metade humanos e metade animais" (¹). E o prudente Tácito concluiu: "Coisas vistas ou coisas que o medo fazia crer" (²). 

(1) O trecho citado é tradução de Marta Iansen para uso exclusivo no blog História & Outras Histórias.
(2) Ibid.


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