quarta-feira, 3 de junho de 2015

Músicos livres e escravos no Império do Brasil

A maioria de nós considera que aprender música é importante, até fundamental, para uma boa educação. Não quer isso dizer que todo mundo deveria fazer música como profissão, até porque a maioria das pessoas ou não tem talento natural para isso, ou não tem a disposição necessária aos longos (e muitas vezes) cansativos estudos requeridos para a formação de um executante. A questão é aprender alguma coisa que possibilite cantar e/ou tocar pelo prazer de fazê-lo, desenvolvendo, igualmente, a capacidade de apreciação. 
Ora, senhores leitores, devo dizer-lhes, no entanto, que, no Brasil, o aprendizado de música já teve um outro aspecto.
É verdade: pelas alturas do Século XIX, esperava-se que moças e rapazes de alta posição social tivessem conhecimentos suficientes para tocar, ao piano, peças de Beethoven ou Chopin nas reuniões com familiares e amigos, sendo também desejável que aprendessem um pouco de canto lírico. A essas habilidades concedia-se, na época, mais ou menos a mesma importância dada à aprendizagem de francês. Quem não tinha ditos atributos era visto como grosseiro, pouco civilizado, sem fineza, mesmo. Pior seria ainda o defeito se ocorresse em uma jovem...
Nem toda música, porém, vinha dos profissionais (nos teatros) ou dos filhos da nobreza imperial. Em muitas fazendas, para garantir a sonoridade dos bailes nos quais latifundiários ostentavam seu poderio econômico, havia uma banda ou simulacro de orquestra - formada por músicos que eram escravos.
Relatando uma "festa de batizado" que presenciou em Vila Bela, Hércules Florence, desenhista francês que acompanhou a Expedição Langsdorff, observou:
"No dia do batizado tudo foram festas. Os músicos da fazenda que eram negros cativos tocaram desde a aurora árias debaixo das janelas da casa e passearam em bando ao redor do pátio grande." (¹)
Em um romance ambientado em uma fazenda do Vale do Paraíba, nos dias de D. Pedro II, José de Alencar escreveu:
"A ausência de Mário diminuiu o prazer e alegria da festa; mas não transtornou o programa. Principiou o banquete e prolongou-se até a noite ao som da banda de música dos pretos da fazenda, que tocava quadrilhas e valsas." (²)
Não há como saber, ao certo, qual era o nível de conhecimento musical dos escravos-músicos (ou músicos-escravos...). Uma vez que eram raríssimos aqueles que sabiam ler e escrever (³), era pouco provável que muitos deles fossem capazes de ler uma partitura. 
Essa era a situação no Império. No entanto, quando observamos fotografias antigas de corporações musicais, pouco posteriores à Abolição (1888), logo percebemos que vários de seus integrantes deviam ser ex-escravos ou seus descendentes, algumas vezes atuando junto a músicos imigrantes de origem europeia. Novos estilos musicais estavam, portanto, em fermentação, como recurso para exprimir as vivências da nascente estrutura social livre e urbana que ganharia forças ao longo das décadas seguintes.

(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 186.
(2) ALENCAR, José M. de. O Tronco do Ipê.
(3) Em geral os senhores consideravam que era um absurdo ensinar um escravo a ler; isso poderia torná-lo esperto demais e, talvez, mais qualificado a organizar uma rebelião.


Veja também:

2 comentários:

  1. No caso dos escravos, a selecção de músicos devia ser feita com base no talento natural e ouvido musical, até porque a música seria um paliativo para a vida dura que levavam. O facto do ser humano necessitar de algum tipo de arte, mesmo quando a sobrevivência não é garantida, diz muito sobre ele.
    Beijinhos
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. Músicos escravos das fazendas não deviam ter grandes oportunidades com seu talento (embora, para algum ensaio, talvez tivessem a jornada de trabalho pesado reduzida); já os que viviam perto de vilas ou cidades podiam, às vezes, desde que o senhor consentisse, ganhar algum dinheiro nas poucas horas de folga, se tocassem em festas ou bailes.

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