segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Como eram examinados os escravos vendidos no mercado do Valongo

Em uma imagem de M. Rugendas, o desembarque de escravos no porto do Rio de Janeiro (¹)

Um dos aspectos mais grotescos da escravidão estava relacionado ao modo como eram tratados os escravizados, que, trazidos da África, chegavam ao Brasil e eram logo apresentados aos potenciais compradores. Infelizmente, para muitos brasileiros acostumados ao espetáculo diário da escravidão, a existência de um lugar em que seres humanos eram comprados e vendidos parecia uma coisa absolutamente normal, daí ser muito útil verificar o que é que pensava um estrangeiro ao observar o mercado de escravos do Valongo (²).
Temos um depoimento interessante, registrado por C. Schlichthorst, militar alemão contratado, pouco depois da Independência, como oficial para o 2º Batalhão de Granadeiros. Esse homem permaneceu pouco tempo no Brasil, mas foi o suficiente para que, pelo menos em assuntos relacionados à escravidão, tivesse uma visão bastante abrangente quanto ao que ocorria na capital do Império. Como poderia ser diferente, se os cativos estavam por toda parte, se ninguém parecia constrangido em ostentar o título de "senhor de escravos", se, afinal, os grandes do Império eram considerados tanto mais poderosos quanto maior o número de escravizados que tinham à disposição?
Mas vamos ao que Schlichthorst escreveu sobre o desembarque de africanos:
"Ao chegar ao porto, dá-se a cada escravo do sexo masculino ou feminino, um pano azul e um barrete vermelho, pois viajaram em trajes do Paraíso. Com essas tangas e barretes, veem-se longas filas de negros levados como rebanhos de ovelhas para os armazéns dos traficantes, onde as transações continuamente se realizam, feitas com a mesma cautela com que na Alemanha se compra um cavalo." (³)
Nesses armazéns cada escravo era examinado, ou pelos futuros senhores, ou por seus representantes comerciais encarregados de negócios na Corte:
"Verificam-se, para começar, mãos e pés. Mandam-se fazer vários movimentos, para ver que não têm defeitos. Examinam-se os dentes e o tórax. Afinal, levam-no repentinamente do escuro para a claridade, a fim de provar a sua vista. Não será preciso dizer que esse exame não é feito com muita delicadeza nas escravas. [...]." (⁴)
Imagino que os leitores estejam entre constrangidos e horrorizados. Schlichthorst ainda acrescentou:
"Numa palavra, este comércio de carne humana equivale ao comércio europeu de cavalos." (⁵)
C. Schlichthorst deixou, porém, de fazer uma observação que seria de todo pertinente: se é fato que o tráfico de africanos só existia porque havia gente interessada em comprar escravizados, é igualmente verdade que, desde os primórdios da colonização, o maldito comércio de seres humanos era feito por europeus, e de diversas nacionalidades. Não era coisa que envolvesse apenas os habitantes das jovens colônias do continente americano. Era, por assim dizer, um drama quase mundial.

(1) O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) No Rio de Janeiro, capital do Império do Brasil.
(3) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1924 - 1926). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 137.
(4) Ibid.
(5) Ibid., p. 138.


Veja também:

2 comentários:

  1. Há a acrescentar os próprios africanos pois, não raras vezes, os soberanos ou líderes tribais vendiam os seus compatriotas e, eles próprios possuíam escravos sobretudo resultantes de batalhas, etc. Como dizia Hobbes, o homem é o lobo do homem...
    Abraço
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. Isso é correto. E há mais: não eram raros, no Brasil, os casos de escravos libertos que enriqueciam e acabavam sendo, eles mesmos, proprietários de escravos.

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