quarta-feira, 20 de abril de 2016

Breves considerações sobre a sentença que condenou Tiradentes

Tiradentes foi condenado a morrer por enforcamento; a sentença foi executada em 21 de abril de 1792. Aquele era um tempo de grandes agitações político-ideológicas, em virtude da difusão das ideias do Iluminismo e de sua aplicação prática um tanto desastrosa (ao menos para monarcas e monarquistas) na França da Revolução. Horrorizados com as notícias que chegavam de Paris, governantes absolutos de outros países faziam aplicar com absoluta severidade a legislação pertinente aos chamados crimes de lesa-majestade. Isso explica, ao menos em parte, a repressão aparentemente exagerada à Inconfidência Mineira, um movimento (movimento?) de proporções reduzidas, mais teórico do que prático e que tinha pouca perspectiva de sucesso.
Na sentença que condenou Tiradentes há, para o leitor do Século XXI, alguns elementos que podem soar estranhos. Dizia ela: 
"[...] Condenam o réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, alferes que foi do Regimento pago da Capitania de Minas, a que, com baraço e pregão, seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca, e nela morra morte natural para sempre [...]."
Que história é essa de "morte natural para sempre"? Haveria alguma sentença de morte apenas temporária ou parcial? E como pode ser natural uma morte por enforcamento?
Para entender melhor o que dizia a sentença é preciso verificar o Livro Quinto das Ordenações do Reino, uma compilação das leis que regiam Portugal e, quando aplicáveis, também vigoravam no Brasil (¹). O Título CXXVI, § 7, informava: "[...] Se a condenação for de morte natural, sejam logo enforcados, ou degolados, segundo na sentença for conteúdo." Os leitores já sabem, então, o que é que se considerava "morte natural", para efeitos da execução de um condenado.
Outro ponto interessante na sentença do alferes Tiradentes era aquele que, sendo ele declarado infame, fazia a penalidade extensiva a seus descendentes até a terceira geração: "[...] declaram o réu infame, e seus filhos e netos, tendo-os [...]."
Para quem vive em uma democracia ocidental da atualidade, a ideia de sentenciar os descendentes pelo crime de um ancestral parece um grande absurdo. Mas não era assim que pensavam os legisladores de outros tempos. Voltando ao Livro Quinto das Ordenações, vamos encontrar uma justificativa para a sentença que incluía filhos e netos, ainda que eles não estivessem envolvidos na prática do crime de lesa-majestade:
"Lesa-majestade quer dizer traição cometida contra a pessoa do Rei ou seu Real Estado, que é tão grave e abominável crime, e que os antigos sabedores tanto estranhavam, que o comparavam à lepra; porque assim como esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar, e empece ainda aos descendentes de quem a tem e aos que com ele conversam (²), pelo que é apartado da comunicação da gente, assim o erro de traição condena o que a comete, e empece e infama os que de sua linha descendem, posto que não tenham culpa." (³)
Não será o caso de perguntar se a explicação foi convincente; vamos apenas saber o que é que, na prática, significava ser infame a descendência: 
"[...] Os filhos são exclusos da herança do pai, se forem varões, ficarão infamados para sempre, de maneira que nunca possam haver honra de cavalaria, nem de outra dignidade, nem ofício (⁴), nem poderão herdar a parente, a estranho abintestado, nem por testamento, em que fiquem herdeiros, nem poderão haver coisa alguma que lhes seja dada ou deixada, assim entre vivos como em última vontade [...]. E esta pena haverão pela maldade que seu pai cometeu, e o mesmo será nos netos somente, cujo avô cometeu o dito crime." (⁵)
Vejam, portanto, leitores, que, malgrado ser Tiradentes, no Brasil, considerado um herói da Independência, a sentença que o condenou estava prevista nas leis que vigoravam em fins do Século XVIII. É fato, no entanto, que as leis também envelhecem e, uma vez ou outra, precisam de ajustes ou mesmo de uma reconstrução completa, mas ninguém deveria esperar tal coisa em 1792, quando os monarcas europeus (não era exclusividade de Portugal), percebiam que trono e coroa corriam perigo. Estranho, mesmo, é admitir que as penalidades estipuladas nas Ordenações do Reino eram até moderadas, se as compararmos com as que são ainda aplicadas em alguns compartimentos obscuros deste planeta, nos quais a luz do sol (em sentido figurado, claro), não entra há muito tempo.

(1) A primeira publicação das Ordenações traz a data de 1603, mas sendo elas uma compilação, já existiam, em sua maioria, muito antes disso. Para esta postagem foi consultada a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) Os leitores devem entender essas declarações à luz do conhecimento médico disponível à época em que as Ordenações foram publicadas.
(3) Livro Quinto, Capítulo VI.
(4) Eram julgados indignos do exercício de qualquer emprego público.

2 comentários:

  1. Como podemos ver, a raça humana caminha a passos lentos rumo ao AMOR UNIVERSAL, aquele pregado pelo Cristo, que deveria unir todas as criaturas.

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    1. Hmmm, não sei, não. Amor universal? Nem a passos lentos. Acho que vai exatamente no rumo contrário rsrsrsrsssss...

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