segunda-feira, 4 de abril de 2016

Viajando com os monçoeiros paulistas do Século XVIII

As árvores já fazem sombra nas águas do Tietê, e o céu, a oeste, dá sinais de mudar de cor. Na densa floresta, a cantoria vespertina da passarada está por começar.
Os remeiros dos batelões se entreolham, à espera de um sinal dos respectivos proeiros, que param de marcar o ritmo. Diminuem a marcha, enxugam o suor que escorre pelo rosto e procuram, junto à margem, um lugar seguro em que amarrar as embarcações. Ligar cada uma delas a um tronco resistente é mais fácil, porém arriscado. Não correm de boca em boca os casos de canoas que, em meio a uma tempestade, foram levadas, com árvore e terra, pela correnteza reforçada com a água da chuva? Os batelões serão, portanto, arrastados mata adentro, o que é inevitável sacrifício em uma hora na qual os viajantes, já cansados, ainda terão de enfrentar o preparo da comida para o jantar e para o dia seguinte.
Os homens saltam em terra primeiro, tratando logo de ajudar no desembarque das poucas mulheres que acompanham a expedição. Em pouco tempo, ouvem-se os sons secos dos machados derrubando árvores, para abrir algum espaço onde cozinhar. Cada grupo de parentes ou conhecidos se reúne para cuidar da própria subsistência. A solidariedade é importante nessas circunstâncias. Acende-se fogo, e, entre duas forquilhas, um galho forte sustenta o caldeirão onde o feijão é posto a ferver. Alguns saem à caça. Se tiverem sorte de apanhar uma anta, o jantar acabará virando um festim, mas qualquer coisa que trouxerem será bem-vinda. Na falta de comida extra, o feijão será acompanhado por farinha de milho. 
Enquanto isso, já começa a procura por um lugar entre as árvores em que armar as redes para dormir. Gente de mais recursos traz também uma proteção contra chuva e mosquitos. Os outros torcem por não haver desses minúsculos seres sanguinários, que bem poderiam fazer parte dos suplícios do inferno, se Dante tivesse sabido de sua existência. E há, ainda, monçoeiros que nem uma simples rede têm, e irão buscar abrigo como for possível, no chão, perto da fogueira.  Ali, pelo menos, as cobras não costumam chegar.
Algumas horas depois, não havendo mais sol, os caçadores retornam. Não foram muito felizes, só trazem caça pequena, mas já é alguma coisa... O feijão borbulha nos caldeirões. Para os monçoeiros famintos, o aroma parece bom.
Enquanto todos jantam, sentados no chão, ouve-se um trovejar distante. Um murmúrio de desaprovação percorre o grupo. Com a roupa molhada e a água a cair sobre o rosto, poucos são os que conseguem conciliar o sono. Os sortudos que têm uma rede com proteção são os únicos que pouco sofrem. Mas o susto é passageiro. As nuvens se dispersam e logo a lua é perfeitamente visível por entre as árvores. 
Ao redor da fogueira, alguns arriscam uma canção. Há monçoeiros veteranos que se dispõem a contar casos que, por sua vez, também foram contados por outros monçoeiros. A maioria, porém, desgastada pela viagem, só pensa agora em descansar, e logo, no acampamento, serão ouvidos somente o crepitar do fogo e os sons de aves noturnas. 
Monçoeiros de primeira viagem tremem a qualquer ruído. Os mais experientes sabem disso, e, às vezes, algum gaiato resmunga: Olha, é miado de onça...
Os mais afoitos tratam de ter certeza de que as armas estejam ao alcance da mão, se, por acaso, precisarem delas. Para piorar, ouvem-se os latidos dos cachorros que acompanham a monção. Presos para não tentarem alguma aventura na mata, levantam a cabeça, rosnam, farejam o ar, tornam a latir. Depois de algum tempo, de novo o silêncio, apenas quebrado pelos ruídos monótonos da floresta, ou pela interjeição mais do que irritada de alguém que já não suporta piuns e borrachudos.
Amanhece. Uma névoa fina repousa sobre o rio. Sonolentos, os monçoeiros vão deixando as redes. Os remeiros já estão junto à margem, e, apontando para o chão, tagarelam entre si, com entusiasmo pouco usual. Os outros vão chegando perto. Na terra barrenta e repisada, as evidentes pegadas de um felino de grande porte não deixam dúvidas quanto à visitante que passeou pelas redondezas enquanto todos dormiam.
Mas é hora de levantar acampamento e seguir viagem. À frente, os rios com suas cachoeiras, as florestas, com sua beleza, mistério e perigos sem conta; muito longe, a miragem do ouro do Cuiabá.


Veja também:

2 comentários:

  1. Uau, que belo enredo. Marta, você tem uma veia de romancista. Fui transportada para o meio desses aventureiros. Grata.
    Beijinho, uma linda semana
    Ruthia d'O Berço do Mundo

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Haha, estar entre esses aventureiros? Só mesmo na imaginação. Na "vida real" havia mosquitos demais rsrsrsrssssss...

      Excluir

Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.