sexta-feira, 10 de junho de 2016

Gente que não queria que a escravidão acabasse

A época do debate sobre a questão abolicionista, em especial a partir de 1870, foi das mais intensas na vida política brasileira, não só pelas divergências que o tema levantava, mas pelo envolvimento, em algum grau, de parte considerável da população que vivia nas grandes e nas pequenas cidades.
É fácil perceber que os proprietários de escravos estavam entre os maiores interessados nas discussões abolicionistas, mas não eram os únicos que expressavam opiniões contrárias ao fim da escravidão. Havia muitas outras pessoas cujos empreendimentos estavam vinculados à existência e manutenção do sistema escravista e que, por isso mesmo, tinham horror ao movimento que queria, tão cedo quanto possível, arrancar o País da situação nada honrosa em que se encontrava diante de outros povos, pela insistência em manter gente cativa quase às portas do Século XX. Vejamos, pois, quais eram algumas atividades que subsistiam apenas porque ainda havia escravos.

1. Comércio de escravos

É verdade que o tráfico de africanos foi definitivamente abolido em 1850 (¹) pela Lei Eusébio de Queirós, mas ainda havia quem negociasse escravos que algum proprietário queria vender, aqueles que eram parte do espólio de um falecido e, durante certo tempo, os que iam de uma Província do Império para outra. No entanto, o comércio de escravos, apesar de ser considerado um "negócio sujo", foi, por muito tempo, altamente lucrativo. O militar alemão C. Schlichthorst observou, ainda nos dias de D. Pedro I: "Os traficantes de escravos são considerados os negociantes mais ricos da cidade" (²). A cidade em questão era a capital do Brasil naquela época, ou seja, o Rio de Janeiro.
O Almanaque Laemmert de 1854 trazia o seguinte anúncio de comerciantes de escravos (³):


Era importante assegurar que os escravos eram "ladinos", já que o comércio de "negros novos" estava proibido. Expliquemos: "negros novos" eram chamados os escravizados que chegavam da África, enquanto que "ladinos" eram os escravizados já experientes na condição de cativos, que estavam no Brasil há muito tempo ou mesmo que eram nascidos no País.

2. Avaliação de Escravos

A avaliação de escravos era feita habitualmente quando, tendo morrido um proprietário, os bens deixados (nos quais estavam incluídos os escravos) deviam ter seu valor estipulado para efeitos de partilha de herança ou para a quitação de dívidas. Além disso, uma avaliação podia ser solicitada sempre que escravos fossem parte do pagamento em alguma aquisição, ou quando fossem vendidos junto com uma propriedade.
Um anúncio, também do Almanaque Laemmert de 1854, listava avaliadores de escravos (⁴) disponíveis no Rio de Janeiro:


Havia avaliadores juramentados, cuja opinião quanto ao preço de um escravo tinha valor legal.
Mais tarde, à medida que o movimento abolicionista ganhava corpo, avaliadores passaram a ser requisitados sempre que um escravo comparecia em Juízo apresentado um pecúlio com o qual pretendia comprar a própria liberdade. Avaliadores deviam, então, arbitrar o valor, para que a Justiça determinasse se o escravo tinha o suficiente para a manumissão. O aspecto interessante, aqui, é que não era incomum que o pecúlio que o escravo apresentava fosse provido por uma sociedade abolicionista. Havia senhores que, insatisfeitos com a avaliação, chegavam a alegar que os abolicionistas estavam mancomunados com autoridades, que concediam a liberdade ao escravo por um valor muito baixo.

3. Aluguel de escravos

Em lugar de fazer uso direto dos escravos em uma propriedade agrícola ou em trabalhos urbanos, alguns senhores preferiam ter cativos para aluguel, que prestavam serviços a interessados por tempo limitado. É evidente que o pagamento pelo trabalho ia para o proprietário, e não para os cativos. "No Brasil não se pode empregar seu dinheiro melhor do que comprando escravos e alugando-os para trabalhar" (⁵), afirmou Schlichthorst. Talvez o mercenário alemão até sonhasse em virar alugador de escravos, a despeito das muitas encrencas em que andava metido e de viver contando os tostões... Façamos justiça: os militares recebiam pagamentos anoréxicos, isso quando chegavam a receber alguma coisa.
Voltando ao assunto dos alugadores de escravos, no Almanaque Laemmert de 1854 aparecia este anúncio (⁶):


Observem o detalhe, leitores, junto ao último endereço: "...asseguram boa conduta"!...

4. Fornecimento de roupas para escravos

Escravos recebiam, usualmente, roupas confeccionadas com algodão rústico. Durante muito tempo os tecidos eram feitos nas próprias fazendas, mas a gradual especialização nas atividades produtivas levou ao aparecimento de fábricas e de comerciantes de tecidos que, por suposto, não trabalhavam apenas com o fornecimento de roupas para escravos, mas tinham nisso um filão importante, que desapareceria tão logo a escravidão saísse de cena. Os leitores que tiverem interesse no assunto podem ver a postagem "Algodão Para a Roupa dos Escravos".

5. Seguro de vida de escravos

Talvez pareça estranho encontrar essa faísca de capitalismo no Brasil escravocrata. Mas era verdade. Havia, sim, quem oferecia seguro de vida de escravos, não para os próprios cativos, é claro, mas para os respectivos proprietários, que investiam na compra de mão de obra (principalmente para a lavoura), e que temiam perder o investimento com a morte de trabalhadores, bastando, para isso, o surto de uma doença letal, coisa que, no século XIX, não era acontecimento nada incomum.
Vejam, a título de exemplo, o anúncio que apareceu na edição de 1871 (⁷) do Almanaque Laemmert (que, nesse tempo, tinha já outro editor):


(1) Embora nos anos imediatos ainda tenha havido algumas tentativas de introduzir - ilegalmente - africanos escravizados no Brasil.
(2) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1924 - 1926). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 135.
(3) LAEMMERT, Eduardo. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1854. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1854, p. 500.
(4) Ib., p. 362.
(5) SCHLICHTHORST, C. Op. cit., p. 150.
(6) LAEMMERT, Eduardo. Op. cit., p. 509.
(7) HARING, Carlos Guilherme. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1871. Rio de Janeiro: E & H Laemmert, 1871, p. 396.


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