sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Leis sobre a venda de pão e vinho não eram cumpridas em São Paulo no Século XVII

Legisladores de todas as épocas foram e/ou são conscientes de que dificilmente haverá pólvora mais eficaz para iniciar uma revolução do que um número elevado de estômagos vazios, em particular quando reunidos em uma área pouco espaçosa. Mesmo no tempo das monarquias absolutas, quando o rei era visto como "lei animada sobre a terra" (¹), era prudente garantir ao povo pelo menos um suprimento dos alimentos considerados básicos, para evitar que a coroa trepidasse na cabeça dos monarcas.
Como sabem os leitores, no Período Colonial vigoravam no Brasil as leis portuguesas, sempre que aplicáveis. Se dermos uma olhada no que determinavam as Ordenações do Reino (²) em relação ao fornecimento de víveres, será fácil constatar que havia grande preocupação de que alimentos nunca estivessem em falta na Corte: 
"E serão obrigados os regatães trazer à nossa Corte em qualquer lugar que nós estivermos, pão, vinho, carne, pescado e todos os outros mantimentos abastadamente, que necessários forem [...]." (³)
Duas breves explicações: "regatães" eram mercadores ou barqueiros que vinham fazer comércio de seus produtos; "nós" era apenas o rei que, como era mania entre os monarcas, falava de si mesmo usando o chamado plural majestático... 
Fora da Corte, a obrigação de fiscalizar o abastecimento competia aos vereadores de cada localidade (⁴); mesmo tendo eles autoridade para lançar alguns impostos sob os moradores de sua jurisdição, jamais poderiam taxar o pão, o vinho e o azeite, pelo óbvio motivo de que tal medida acarretaria elevação nos preços de artigos considerados de primeira necessidade - isso era de competência exclusiva do rei: 
"Porém não porão taxa no pão, vinho e azeite. E quando houver alguma necessidade evidente de pôr taxa nos ditos mantimentos, no-lo farão saber, alegando as razões que para isso houver, para provermos como for nosso serviço." (⁵)
Ainda no sentido de impedir abusos no comércio de artigos de primeira necessidade, havia uma prescrição segundo a qual a venda de pão e outros alimentos acima dos preços fixados era crime inafiançável: 
"Não se passarão isso mesmo alvarás de fiança às pessoas que forem culpadas por venderem pão, carne e outros mantimentos e coisas a maiores preços das taxas por mim feitas, ou pelas Câmaras [...], porque passarem-se os tais alvarás às ditas pessoas não seja causa de se não guardarem as ditas taxas, visto o muito prejuízo que disto se segue ao povo." (⁶)
Havia, porém, no Brasil, uma pequena povoação de serra-acima, somente acessível pelo dificílimo e malsinado Caminho do Mar, em que as leis do Reino se não guardavam... Ou só se guardavam quando aprazia aos moradores. De acordo com Affonso de E. Taunay, a gente de São Paulo, no Século XVII, sofria com os desmandos de padeiros que vendiam pães abaixo do peso estipulado:
"Exploravam [...] os padeiros a paciência do bom povo. Em dezembro de 1623, representava o Procurador Luís Furtado contra tais extorsões: "Havia muito trigo na terra" e, no entanto, "o pão que vendia a este povo nas vendagens era pequeno"." (⁷)
Também o vinho, informa o mesmo autor, era alvo de trapaças nas tabernas:
"Contra os tratantes bramava, em Câmara, a 14 de fevereiro de 1609, o solícito Procurador Antônio Camacho, a lembrar "que na vila havia muitas tabernas em as quais se vendia vinho muito ruim e muito caro por medidas muito ruins e pequenas".
[...].
Tabelas de preço? Nem sinal! Medidas? Eram as que queriam, de pau ou de barro sem vestígio da aferição municipal." (⁸)
Lembremo-nos de que as leis do Reino determinavam a aferição periódica dos pesos e medidas usados no comércio. Mas, na pequena São Paulo do Século XVII, o Reino era uma realidade muito distante e, com danos e prejuízos de um lado, lucro ilícito de outro, a vida dos colonizadores seguia seu rumo de sempre, com os mais fortes levando vantagem. Nesse cenário, quem tinha juízo, mas não tinha poder, fechava a boca e fazia vistas grossas. Melhor era conservar a cabeça em cima do pescoço que ir brigar por diferenças no peso do pão ou na quantidade e qualidade do vinho, e acabar sem pão, sem vinho e sem vida.

(1) Ordenações do Reino, Livro Terceiro, Título LXXV, § 1º, de acordo com a Edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) Publicadas formalmente pela primeira vez no início do Século XVII, as Ordenações do Reino eram, em grande parte, uma compilação de leis que já existiam muito antes.
(3) Livro I, Título XVIII, § 1º.
(4) Cf. Livro I, Título XVIII, § 8.
(5) Livro I, Título XVIII, § 34.
(6) Regimento Novo dos Desembargadores do Paço, § 26, de 16 de setembro de 1586.
(7) TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 103.
(8) Ibid,. p. 117.


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