sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Na falta de médicos, jesuítas prestavam assistência aos doentes no Brasil Colonial

Os jesuítas que vieram ao Brasil desde meados do Século XVI tinham, como objetivo primário, empreender a catequese dos povos indígenas. Logo que chegaram, ficou evidente que, em grande parte, deles dependeria a assistência religiosa aos portugueses colonizadores. O trabalho junto aos indígenas tornou possível, também, que missionários da Companhia de Jesus andassem pelo interior do Brasil como verdadeiros exploradores do território ainda desconhecido para europeus. Logo, porém, os "padres da Companhia" perceberam que teriam ainda outra tarefa, diante das condições precárias em que vivia a maior parte da população colonial - deixemos que José de Anchieta explique por si mesmo:
"Neste tempo que estive em Piratininga servi de médico e barbeiro, curando e sangrando a muitos daqueles índios, dos quais viveram alguns de quem se não esperava vida [...]." (¹) 
Estas palavras foram escritas em uma carta datada de 1554. De saída, é necessário lembrar que, quando Anchieta diz que serviu como barbeiro, não queria isso significar que andava a cortar os cabelos ou fazer a barba de quem quer que fosse. É que nesse tempo, quando alguém tinha febre, costumava chamar um barbeiro que fazia sangria. Que é isso? Simples, acreditava-se, com base em ideias desenvolvidas ainda na Antiguidade greco-romana, que a febre era indício de um excesso "força vital". Portanto, para resolver o problema, retirava-se um pouco de sangue da pessoa febril, para que sarasse. Ora, com tal tratamento, às vezes a febre baixava mesmo. De uma vez para sempre. Sangrias, porém, não eram aplicadas apenas quando o paciente tinha febre. Eram recomendadas para quase tudo. E ninguém imagine que esse "tratamento" era praticado apenas em comunidades isoladas na América. Era o que se fazia em quase todo o mundo dito "civilizado", e assim continuaria a ser, ainda por centênios.
É verdade que, aos missionários, era vedado "derramar sangue", mas, depois de uma consulta ao Geral e Fundador da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola, foi-lhes dada uma permissão para que socorressem os doentes, face à situação de penúria na Colônia, pela absoluta falta de profissionais habilitados na área da saúde. Por isso é que Anchieta escreveu a seus irmãos de Ordem que viviam em Portugal sobre o trabalho que andava a fazer, de "médico e barbeiro". A assistência a indígenas e portugueses não estava restrita à pequenina São Paulo de Piratininga, fundada em 1554. Era praticada, havendo doentes, onde quer que estivessem os padres.
Não há dúvida de que, ao cuidar de enfermos entre os índios, os padres procuravam, com habilidade, obter a confiança também em seus ensinos de caráter religioso. Em outra carta, escrita dois anos mais tarde, Anchieta seria explícito nessa questão:
"[Os indígenas] não podem deixar de admirar e reconhecer o nosso amor para com eles, principalmente porque veem que empregamos toda a diligência no tratamento de suas enfermidades, sem nenhuma esperança de lucro." (²)
Faziam isso como estratégia de evangelização:
"Fazemos isto, na intenção de preparar para o recebimento do batismo, caso haja necessidade, os seus espíritos, em tais circunstâncias mais redutíveis e mais brandos [...]." (³)
Independente da opinião que se tenha sobre os métodos de catequese que estavam em uso no Século XVI, não podemos deixar de admirar a caridade manifestada por Anchieta, segundo um relato feito por ele mesmo ao padre Diego Laynez (Geral dos jesuítas entre 1558 e 1565), relativo ao período em que esteve com Nóbrega negociando a paz entre tamoios e colonizadores. Um índio que tencionava matá-los adoeceu gravemente, e recebeu os cuidados dos padres:
"[...] Se inchou uma mão em tanta maneira que toda se corrompeu, a qual eu lha abri em duas partes com uma lanceta [...], e junto com isto se lhe empolou o braço até os ombros de umas inflamações tão feias, que os outros não se ousavam de chegar a ele, mas mirando-o de longe, me diziam que o curasse e fizesse não se estendesse aquele mal pelos outros, e todos o desampararam sem se doer dele, nem dar-lhe de comer, nem houve entre todos seus parentes quem me buscasse um pouco de mel pelos bosques com que o curasse, e ainda que eu lho pagava; eu rompi uma camisa que tinha e curei-o com azeite, buscando-lhe de comer e dando-lho por minha mão, porque ele não podia [...]." (⁴)
Os padres da Companhia eram procurados inclusive para prestar assistência às mulheres em trabalho de parto, conforme explicou Anchieta em outra carta, desta vez escrita em São Vicente no ano de 1560:
"Muitas vezes nos levantamos do sono, ora para os enfermos e os que morrem, ora para as mulheres de parto, sobre as quais pomos as relíquias dos santos, e parem, e o que elas não ignoram, começando a sentir as dores, logo as mandam pedir, havendo-se primeiro confessado." (⁵)
Sim, leitores, entendo que estejam horrorizados. Explico, apenas, que a prática absurda de colocar relíquias de santos sobre parturientes eram coisa comum no Século XVI, e mesmo mais tarde. Parece absurdo para nós, mas as pessoas daquele tempo realmente criam que isso funcionava, tanto para a mãe quanto para o bebê que ia nascer. 
Anchieta, em seus escritos, sempre procurava deixar claro que os jesuítas eram chamados para socorrer não apenas indígenas, mas também colonizadores que viviam nas proximidades dos colégios da Companhia de Jesus. "Acudimos a todo gênero de pessoa, português e brasil, servo e livre, assim em as coisas espirituais como em as corporais, curando-os e sangrando-os, porque não há outro que o faça [...]" (⁶), observou ele, em uma carta datada de 1562. O ponto essencial, aqui, destacado pelo próprio missionário, é que não havia ninguém que cuidasse da saúde da comunidade colonial em Piratininga, de modo que, nesse aspecto, os jesuítas faziam o que podiam ou achavam que dava algum resultado. Esse fato é extremamente revelador sobre as condições sanitárias que vigoravam nos primeiros tempos coloniais. A procura pelo atendimento dos padres era tão frequente, que, tanto no caso de indígenas como de portugueses, se traduzia em uma verdadeira dependência, sobre a qual Anchieta ainda diria:
"É gente miserável [os indígenas], que em [...] enfermidades nem sabem nem têm com que se curem, e assim todos confugem a nós outros demandando ajuda, e é necessário socorrê-los não só com as medicinas, mas ainda muitas vezes com lhes mandar a levar de comer e dar-lho por nossas mãos, e não é muito isto em os índios, que são paupérrimos, os mesmos portugueses parece que não sabem viver sem nós outros, assim em suas enfermidades próprias, como de seus escravos: em nós outros têm médicos, boticários e enfermeiros, nossa casa é botica de todos, poucos momentos está quieta a campainha da portaria, uns idos, outros vindos a pedir diversas coisas [...]." (⁷)
O que concluímos disso tudo? Ora, se parece certo que os missionários jesuítas não procuraram para si a atribuição de prestar os primeiros socorros nas incipientes comunidades coloniais, fica também evidente que o rumo dos acontecimentos foi interpretado como uma oportunidade para a catequese e para o crescimento da influência que a Companhia de Jesus podia exercer entre portugueses que viviam no Brasil, face à vulnerabilidade ocasionada por situações de risco para a vida.

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 61.
(2) Ibid., p. 88.
(3) Ibid. 
(4) Ibid., pp. 227 e 228.
(5) Ibid., p. 149.
(6) Ibid., p. 179.
(7) Ibid., p. 240.


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