segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Escravas trabalhavam como intérpretes para comerciantes franceses

Na capital do Império do Brasil, a Rua do Ouvidor era um centro de comércio em que as madames podiam encontrar os artigos de moda mais recentes - recentes, é claro, depois de uma longa viagem de navio entre a Europa e o porto do Rio de Janeiro. Era lá, portanto, que muitos comerciantes franceses estabeleciam suas lojas. Porém, como é que esses empreendedores podiam fazer contato com a clientela, tendo em vista o obstáculo da diferença de idioma?
Será bom lembrar, primeiro, que, nesse tempo, as meninas de famílias ricas começavam a receber aulas de francês (¹), um conhecimento que passaria a ser considerado indispensável à boa educação. Por isso, letreiros das lojas e mesmo anúncios em jornais e revistas de moda que circulavam no Império vinham, muitas vezes, escritos em francês - essa mania foi longe, e existiu até em tempos já republicanos. Supõe-se, pois, que pelo menos algumas freguesas eram capazes de falar a língua dos lojistas. 
Por outro lado, C. Schlichthorst, um militar alemão contratado como oficial para o Segundo Batalhão de Granadeiros entre 1824 e 1826, fez um registro muito interessante sobre quem eram as pessoas que, em caso de necessidade, atuavam como intérpretes para os comerciantes franceses que não falavam português (²):
"Os franceses são na generalidade negociantes a retalho ou de modas, o que para eles torna indispensável o uso da língua. Contudo não a aprendem e na Rua do Ouvidor se encontram muitas lojas com negras servindo de intérpretes." (³)
A visão popular de escravos no Brasil é a de homens suando nos canaviais do Nordeste ou nos cafezais de São Paulo - quem imaginaria, então, que escravas pudessem atuar como intérpretes? Mas, se Schlichthorst está correto (e, neste caso, não parece haver razão para suspeita de engano), podemos concluir, sem levar sua observação longe demais, que:
a) Escravas atuavam como intérpretes para comerciantes franceses que não falavam português;
b) Para que pudessem servir como intérpretes, essas escravas deviam falar não somente português, mas também o suficiente de francês - eram, no mínimo, bilíngues;
c) Para um país como o Brasil, no qual grande parte da população era analfabeta, essas escravas, a seu modo, eram bastante instruídas.
Ainda assim, eram escravas. 
Por hoje é só, leitores. Ponto final.

(1) E também de piano, além dos clássicos trabalhos de agulha, etc., etc., etc...
(2) Schlichthorst tinha uma explicação sobre o motivo pelo qual comerciantes franceses que viviam no Rio de Janeiro não aprendiam português, mas deixei de transcrevê-la aqui porque, ao que parece, seria antes um reflexo dos velhos revanchismos nacionalistas da Europa que propriamente uma justificativa.
(3) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1824 - 1826). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 68.


Veja também:

2 comentários:

  1. Será que essa "especialização" as elevaria da sua triste condição, nem que fosse por uns momentos? Sentir-se-iam mais dignas das suas pessoas, ao mostrarem a sua habilidade linguística?
    Muito interessantes esta pequena descoberta.
    Abraço
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    Respostas
    1. O espectro de possibilidades dentro da escravidão era amplo. Não há dúvida de que a situação dessas "escravas-tradutoras" era, em regra, muito melhor que a das escravas que trabalhavam na lavoura. Ainda assim, eram escravas, com tudo o que esse rótulo significava.

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