quarta-feira, 16 de novembro de 2016

O grande incêndio de Roma em 64 d.C.

"O homem que anda pelos bairros mais populosos da cidade", escreveu Sêneca, o professor de Nero, "sempre terá ocasião para resvalar em muita gente, em um lugar ou outro acabará caindo ou será impedido de andar tão rápido quando quer, e mesmo acabará por sujar-se de barro [...]." (¹) Esta observação nos permite entrever como era a cidade de Roma pela época do grande incêndio ocorrido em 64 d.C. - com exceção do centro político e religioso e dos locais em que residia a gente endinheirada, as ruas eram estreitas, tortuosas e lamacentas. Se não fosse assim, por que alguém iria esbarrar nos transeuntes ou ficar sujo de barro?
Acrescente-se a isso que, nos bairros mais pobres, as construções para moradia e comércio eram bastante precárias, amontoadas irregularmente, e não será difícil perceber que, em tão lastimáveis condições, um incêndio poderia progredir com rapidez, sem precisar de qualquer "ajuda" humana para tanto.
Ocorre que nos dias do Império, incêndios não eram acontecimentos raros em Roma. Quando as chamas se espalhavam era sempre um desespero, correria, lamentações pelos bens perdidos, regadas a incontáveis maldições contra o governo romano, contra os vizinhos descuidados, até contra os deuses que não cumpriam a obrigação de proteger a cidade. O modo de apagar as chamas - usualmente com baldes de água - tinha óbvias limitações, e a população devia ficar muito satisfeita se o dano se restringisse a bens materiais.
Ora, se incêndios não eram fenômenos incomuns, por que, afinal, o de 64 d.C. é lembrado até hoje? São duas as razões principais: as proporções do sinistro e os eventos que acarretou.
Vejamos, então, de acordo com Tácito, o que foi que aconteceu. É verdade que esse historiador, nascido em 47 d.C., era ainda um adolescente quando o incêndio ocorreu, porém, mais tarde, ao escrever sobre o assunto, devia ter vivos na memória os comentários que ouvira naqueles dias de falares exaltados. Seus registros (²) nos informam que, tendo começado perto do circo, junto aos montes Célio e Palatino, passou o incêndio à área das tabernas (onde deve ter achado muito "combustível"), à medida que, sob a ação do vento, as chamas ficavam mais e mais altas, chegando a atingir as casas. O desespero era geral, havendo, segundo Tácito, quem, diante das perdas, se lançasse às chamas.
É aí que entra o detalhe interessante, para o qual temos a palavra do autor dos Annales, mas cuja veracidade é de difícil comprovação: em lugar de tratar de conter o fogo, as autoridades romanas, aos berros, proibiam sua extinção, havendo mesmo que buscasse ampliar os estragos, sob a alegação de ter recebido ordens nesse sentido.
Estranho? Não na Roma de Nero.
Quando, por falta do que queimar, as labaredas sumiram, o prejuízo, ainda de acordo com Tácito, era gigantesco:
  • Das quatorze regiões em que Roma era dividida na época, apenas quatro não foram atingidas;
  • Três regiões foram completamente arruinadas;
  • Em sete regiões poucas casas subsistiram, ainda que bastante danificadas;
  • Dentre os templos antigos, foram afetados o templo dedicado à lua por Sérvio Túlio, o altar de Hércules, o templo de Júpiter Stator, que se dizia construído sob voto do próprio Rômulo, fundador lendário da cidade e o templo de Vesta. O fogo consumiu também o palácio de Numa e enormes tesouros acumulados em decorrência das guerras desapareceram para sempre - entre eles, preciosidades da arte grega. É mesmo para se lamentar, leitores, até hoje.
Apesar de tanto estrago, o incêndio de 64 d.C. seria apenas mais um dentre muitos, não fosse o fato de que o povo extravasou a insatisfação acusando o imperador de envolvimento em provocar a catástrofe. Nunca se conseguiu definir com exatidão como é que as chamas tiveram início, mas pode-se ao menos dizer que, se é que teve alguma relação com os fatos, Nero não ateou fogo à cidade com as próprias mãos, e isso por uma razão muito simples: não estava lá. As línguas - boas ou más - diziam, porém, que olhando à distância, o imperador teria, ao som da lira, cantado um poema sobre o incêndio que pôs fim à guerra de Troia...
É claro que isso poderia ser somente um boato a mais, porém o caráter do imperador favorecia a verossimilhança. De qualquer modo, é fato: voltou à cidade e, tão logo chegou, tomou providências enérgicas para reduzir o transtorno, mandando prover abrigos temporários para os que haviam perdido suas casas e ordenando uma redução no preço do trigo. Pouco depois, seriam também adotadas normas para assegurar que, ao ser reconstruída, a cidade fosse menos vulnerável ao fogo.
Ainda assim, crescia entre a plebe o rumor de que Nero ordenara o incêndio. À vista disso, era preciso encontrar alguém a quem culpar e, dessa vez, a acusação recaiu sobre uma minoria religiosa que parecia muito estranha à mentalidade romana. Vocês sabem, leitores, que falo dos cristãos.

(1) Da Ira. O trecho citado é tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Annales, Livro XV.


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