segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Esmolas para as almas do purgatório

François Biard, pintor francês que esteve no Brasil entre 1858 e 1859, fez registros interessantes que resultaram na publicação de um livro, Dois Anos no Brasil. A obra apresenta, às vezes, um tom sarcástico, mas tem lá sua importância por documentar aspectos do dia a dia da capital do Império e de outras localidades, que, parecendo "comuns" ou "normais" aos habitantes do Brasil, talvez não fossem preservados, a não ser pelo olhar de curiosidade desse visitante estrangeiro. Assim é que encontramos este relato:
"Entre as notas e esboços apanhados nessa época pelas ruas do Rio, encontro um gordo burguês que usa sobre sua impecável roupa preta uma opa de seda verde, e estende numa das mãos aos transeuntes uma bolsa encarnada. Que faria esse homem, assim encostado à esquina da casa que ficava fronteira ao meu hotel? Soube-o de sua própria boca: tirava esmolas e dizia invariavelmente aos que por perto passavam:
"Para as almas do purgatório, por amor de Deus!"" (¹)
No Século XIX havia muita gente que acreditava que, quando alguém morria, não sendo santo o bastante para que sua alma fosse para o céu e nem perverso ao extremo, a ponto de ir diretamente ao inferno, tinha de comparecer ao purgatório, de onde, depois de algum tempo, havendo se purificado de seus pecados, podia ir ao céu. Para quem adotava esse ponto de vista, era importante a celebração de missas por intenção das "almas do purgatório", na convicção de que isso ajudaria a libertá-las de seu inferno temporário. Portanto, as esmolas, que o burguês visto por Biard pedia, eram destinadas a custear a celebração de missas.

Coletores de esmolas para fins religiosos (²)

Se você, leitor, tem curiosidade em saber se muita gente contribuía, considere: quem de fato acreditava na existência do purgatório, tinha boas razões para doar, não fosse o caso de parentes e amigos terem de sofrer por longo tempo em virtude da negligência dos vivos; além disso, a ideia de que, ao morrer, o avarento que não fizera doações em favor dos mortos podia muito bem pagar por isso no purgatório ou até, de uma vez por todas, no inferno, devia funcionar como um estímulo poderoso para induzir à generosidade. Na dúvida, era melhor não arriscar...  

(1) BIARD, Auguste François. Dois Anos no Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 121.
(2) __________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada digitalmente para facilitar a visualização neste blog. 


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2 comentários:

  1. O costume foi, quase de certeza, importado de Portugal onde proliferou até à década de 60, nos meios rurais.
    Não tinha este "décor" nem porventura técnicas de "marketing" : resumia-se a uma ladainha chorada à saída das Igrejas donde almas dos penitentes saíam.

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    1. Sim, certamente é tradição de origem lusitana. Também no interior do Brasil, mesmo já avançado o Século XX, havia ainda quem fizesse coleta de esmolas para as "almas do purgatório".

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