sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

O poder dos faraós no Egito Antigo

No Egito Antigo vigorava uma monarquia hereditária, absoluta e teocrática. Isso quer dizer que, salvo os inúmeros golpes, assassinatos, revoltas e mesmo invasões estrangeiras, o sucessor de um faraó seria seu filho mais velho. O poder de um faraó era, teoricamente, absoluto, ou seja, sua vontade era lei, e ele próprio não estava sujeito a responsabilidade alguma. Por quê? Simplesmente porque era visto como uma figura divina, que governava pela vontade dos deuses ou, quando seu poder chegava ao auge, porque era considerado, ele próprio, uma divindade.
De onde vinha tanto poder? Heródoto, que, como grego, tinha uma visão sobre o exercício do governo muito diferente daquela que predominava no Egito, observou, em suas Histórias, que os habitantes da região do Nilo diziam que, num passado remoto, os deuses é que reinavam no Egito, em perfeito intercâmbio com os mortais, que eram por eles governados... Percebe-se então que, com uma crença assim, era relativamente simples fazer constar à mentalidade popular que o faraó era um legítimo descendente dos deuses. Isso explica, ao menos em parte, a importância da camada sacerdotal e as regalias que ela desfrutava: seu papel era decisivo em perpetuar as crenças que sustentavam a "teocracia"; explica, além disso, o motivo para as querelas nada incomuns entre monarcas e sacerdotes, bem como mortes aparentemente misteriosas de faraós que ousavam desafiar o establishment sacerdotal.
Ramsés II (²)
Por seu turno, escribas também tinham um papel relevante em garantir a estabilidade do trono. Como dominavam a arte de escrever (¹), competia a eles registrar os acontecimentos, dando destaque, naturalmente, às façanhas dos reis. Por essa razão é que as crônicas descambavam, não raro, em desbragados encômios. Essa prática tem resultado em muita dor de cabeça para pesquisadores de nosso tempo, já que nem sempre é fácil separar aquilo que é autêntico da bajulação que garantia o emprego dos escribas. Sabe-se, por exemplo, que Ramsés II (Século XIII a.C.) liderou o exército egípcio contra as forças hititas na batalha de Kadesh. Ora, durante longo tempo pareceu que o combate resultara altamente favorável ao monarca do Nilo, tal a quantidade de elogios à sua conduta que foram encontrados. De acordo com um deles, em face do combate teria sido esta a declaração de Ramsés II:
"Como sou amado por Rá e protegido por Amon, e como meu nariz cresce e vive poderosamente cada vez mais, eu irei por este caminho. Se vocês quiserem, podem ir por outro caminho; senão, sigam-me!"
Até parece que sua majestade iria à luta sozinho!... Hoje sabemos que tanta bazófia tinha por finalidade impressionar a população de camponeses e outros trabalhadores que, não tendo ido à guerra, ficava suando ao sol do Egito para sustentar as camadas superiores. A batalha de Kadesh, em termos práticos, não apresentou resultados decisivos, nem para egípcios e nem para hititas.
Vale notar que, por muitos séculos, o Egito permaneceu no topo do poder em relação a seus vizinhos da região mediterrânica. À medida, porém, que outros grandes impérios se desenvolveram e passaram a ter condições de enfrentá-lo, mudanças vieram. Não chega a ser surpreendente que, quando conquistadores pisaram em terras da milenar civilização do Nilo, passaram logo a humilhar faraós derrotados, solapando na base a lógica de poder que sustentava o trono. 

(1) Com a escrita hieroglífica era arte mesmo...
(2) RAWLINSON, George. Ancient Egypt. London: T. Fisher Unwin Ltd., 1887, p. 251. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Quantos governantes seriam necessários?

A surpreendente resposta do padre Antônio Vieira, quando consultado sobre governantes para as Capitanias do Maranhão e do Pará


Antônio Vieira (sim, o padre dos famosos "Sermões") era figura de destaque na Corte portuguesa, ao tempo do rei D. João IV. Ainda assim, meteu na cabeça a ideia de que devia vir ao Brasil para trabalhar na catequese dos povos indígenas. Depois de algumas peripécias, chegou ao Maranhão, apenas para descobrir que não seria nada fácil o seu trabalho, e não por culpa dos índios. Governantes e governados tinham, na Capitania, pensamento muito diverso, em relação aos ameríndios, daquele que defendiam os missionários jesuítas. Governantes e governados achavam que os índios eram muito úteis, utilíssimos, mesmo, mas para trabalho escravo, ainda que legalmente o dito trabalho recebesse outros nomes.
Valendo-se do favor com que era visto na Corte, Vieira tratou de, por carta, levar ao conhecimento do rei os desmandos que se faziam contra a população nativa. Ora, em uma das respostas vindas do Reino, D. João IV perguntou ao padre se achava que seria melhor que as capitanias do Maranhão e do Pará tivessem governos separados, ou que fosse um só o governante de ambas. A resposta, surpreendente, foi esta:
"Eu, senhor, razões políticas nunca as soube, e hoje as sei muito menos; mas por obedecer direi toscamente o que me parece. Digo que menos mau será um ladrão que dois, e que mais dificultosos serão de achar dois homens de bem, que um." (¹)
Notável franqueza! Vieira não deixava dúvidas, portanto, quanto à ideia que fazia dos governantes que, do Reino, eram mandados às terras do Brasil. Já chegavam com o objetivo de acumular toda a riqueza que pudessem, uma vez que seu mandato não duraria para sempre. Portanto, tratavam do estabelecimento de lavouras para produzir tabaco. A mão de obra era, invariavelmente, dos índios, que, explorados até o limite de suas forças, pouco ou nada recebiam em troca. Nas palavras de Vieira, relativamente aos índios do Pará, "se serve quem ali governa como se foram seus escravos, e os trazem quase todos ocupados em seus interesses, principalmente no dos tabacos [...]." (²)
Detalhando o que acontecia, explicou ainda:
"Primeiramente, nenhum destes índios vai senão violentado e por força, e o trabalho é excessivo, e em todos os anos morrem muitos [...]; os nomes que lhes chamam e que eles muito sentem, feiíssimos, o comer é quase nenhum, a paga tão limitada que não satisfaz a menor parte do tempo, nem do trabalho [...]." (³)
Alguém teria dificuldade em perceber que tudo isso emperrava a catequese pretendida por Vieira, daí sua manifesta irritação com os administradores coloniais? 
A bombástica missiva, escrita no Maranhão, seguiu para Lisboa com a data de 4 de abril de 1654.

(1) VIEIRA, Pe. Antônio S. J.  Cartas vol. 1. Lisboa Ocidental: Oficina da Congregação do Oratório, 1735, p. 49.
(2) Ibid., p. 51.
(3) Ibid. 


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segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Crianças em um cenário de guerra

Nos últimos tempos, o sofrimento de crianças em cenário de guerra tem sido explorado às últimas consequências, para bem e para mal. Contendores usam fotografias chocantes de meninos e meninas estraçalhados durante bombardeios, a fim de chamar a atenção do mundo para objetivos políticos - alguns bastante explícitos; outros, nem tanto. Potencializadas pela rede mundial de computadores, cenas que antigamente levariam semanas para chegar ao conhecimento de apenas uma parte da humanidade conseguem varrer o planeta quase instantaneamente. Se é que geram alguma conscientização, nem por isso essas imagens têm a capacidade de barrar o ódio beligerante e as ambições ilimitadas dos que detêm o mando e o controle dos arsenais.
Sem muita consciência dos reais motivos que ocasionam conflitos, muitos pequenos crescem achando que o mundo deve ser assim mesmo - um inferno, portanto. Privados da frequência regular à escola, submetidos à escassez de alimento e água potável, vítimas indefesas em bombardeios, para cúmulo de tudo são, não raro, recrutados, e, quando deveriam brincar livremente, aprendem as primeiras lições de como manejar uma arma. Infância, de verdade, é algo que não existe em tal cenário.
Fenômeno de nossos dias? Não só. Que diriam os leitores se soubessem que uma situação assim foi a realidade de muitas crianças no Brasil, durante a chamada Guerra de Canudos (*)? Engana-se quem imagina que entre os adeptos de Antônio Conselheiro estavam apenas homens adultos. Havia mulheres, havia idosos. Havia também muitas crianças, e, em meio à luta contra as forças governamentais, meninos eram mandados para o combate. Se caíam prisioneiros, eram alvo imediato de interrogatório, na suposição de que seria mais fácil arrancar das crianças as informações que os adultos teimavam em esconder. 
Ledo engano. Por um trecho de Os Sertões, sabemos que havia guris tão hábeis nas manhas da guerra como se fossem homens feitos. Basta ver o que escreveu Euclides da Cunha, ao narrar o interrogatório de um menino que não teria ainda nove anos completos:
"Respondia entre baforadas fartas de fumo de um cigarro, que sugava com a bonomia satisfeita de velho viciado. E as informações caíam, a fio, quase todas falsas, denunciando astúcias de tratante consumado. Os inquiridores registravam-nas religiosamente. [...]. Num dado momento, porém, ao entrar um soldado sobraçando a Comblain, a criança interrompeu a algaravia. Observou, convicto, entre o espanto geral, que a "comblé" não prestava. Era uma arma à toa, "xixilada": fazia um "zoadão danado", mas não tinha força. Tomou-a: manejou-a com perícia de soldado pronto, e confessou, ao cabo, que preferia a manulixe, um clavinote de "talento". Deram-lhe, então, uma Mannlicher. Desarticulou-lhe agilmente os fechos, como se fosse aquilo um brinco infantil predileto.
Perguntaram-lhe se havia atirado com ela, em Canudos.
Teve um sorriso de superioridade adorável:
"E por que não! Pois se havia tribuzana velha!... Havera [sic] de levar pancada, como boi acuado, e ficar quarando à toa, quando a cabrada fechava o samba desautorizando as praças?!""
Por um instante, graças ao registro de Euclides da Cunha, nos é dado ouvir a voz desse pequeno combatente. Quantos outros meninos não terão lutado e morrido em Canudos? Ninguém sabe, ao certo. Multiplique-se o efeito por todas as guerras que já ocorreram neste planeta - fato é que o desrespeito à infância não é monopólio de alguma época ou lugar. Apesar de todos os protestos, a barbárie continua, sem nenhum constrangimento, a fazer vítimas. A insanidade parece ser muito mais forte que a razão. 

(*) 1896 - 1897.


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sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Natal no verão

A imagem clássica do Natal, retratada em cartões de boas-festas, é a de casas, igrejas e pinheiros cobertos de neve. Bonecos e crianças esquiando também são frequentes. Tudo isso no Brasil, onde o Natal acontece em pleno verão. 
Tendo a colonização começado no Século XVI, não demorou para que navegadores e colonos que vinham ao Brasil percebessem que, "passando a linha", as estações do ano eram invertidas em relação ao Hemisfério Norte. Neve no Brasil, portanto, só em poucas ocasiões a cada ano, nos meses mais frios, ou seja, entre junho e setembro. Fora disso, é uma raridade. Anchieta, missionário jesuíta, escreveu, em maio de 1560, em uma carta destinada ao Geral da Companhia de Jesus: "A divisão das estações do ano (se se considerar bem) é totalmente oposta à maneira por que aí se compreende [...]." (¹) E, em outro documento, datado de 1585 e também atribuído a Anchieta (²), pode-se ler: "O inverno começa cá em março e acaba em agosto; o verão começa em setembro e acaba no fim de fevereiro, e por isso o Advento e o Natal são em sumo estio." (³) Vê-se, pois, que, ao menos quanto a ser o Natal no verão, Anchieta estava certíssimo.
Por conta disso, mesmo sob temperaturas elevadas, em torno de 30º C, toda a propaganda voltada para as vendas de Natal é feita como se o Brasil estivesse quase no Polo Norte. Há até shopping centers que anunciam quedas de neve artificial em horários pré-definidos, tudo para atrair clientes e, com tamanha inspiração, ensejar um volume maior de vendas.
Alguns amigos meus chegam a queixar-se de que é uma injustiça que não haja neve no Brasil em dezembro. Até já vi gente dando rédea solta à fantasia e imaginando como seria se, de repente, viesse uma frente fria pesada e tudo ficasse branquinho...
Sim, sim, o clima deste planeta está maluco, mas (ainda) não a esse ponto (⁴). Portanto, quem quiser um verdadeiro white christmas, vai ter que viajar para bem longe do Brasil.

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 106.
(2) Informação da Província do Brasil Para Nosso Padre. Nessa ocasião Anchieta era o Provincial da Companhia de Jesus no Brasil. 
(3) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J.  Op. cit. pp. 424 e 425.
(4) Talvez alguns leitores ainda se recordem de que, no último dia dos Jogos Olímpicos de 2016, quando era realizada a prova masculina da maratona, a temperatura no Rio de Janeiro era de 22º C; enquanto isso, nevava no Estado de Santa Catarina. De qualquer modo, era inverno - oficialmente - em um e outro lugar. 


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quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Jean de Léry, a França Antártica e as galinhas brancas criadas pelos tupinambás

Jean de Léry era francês. Protestante calvinista. Pelo primeiro motivo, indesejado no Brasil, ao menos sob o ponto de vista das autoridades portuguesas. Pelo segundo motivo, era visto com horror pelos missionários jesuítas, que o tinham na conta de uma praga ou doença contagiosa. Uma espécie de varíola ideológica, digamos.
A despeito de tudo isso, Léry chegou ao Brasil em 10 de março de 1557. Tendo participado da fracassada tentativa de estabelecimento de uma colônia francesa no Rio de Janeiro - a França Antártica - fez, do que viu em quase um ano na América do Sul, um relato inteligente e cuidadoso, pelo qual lhe somos, ainda hoje, muito agradecidos. Publicou-se esse relato na forma de livro com o título de Histoire d'un Voyage Faict en la Terre du Brésil, e é através dele que sabemos de muita coisa interessante sobre os índios tupinambás. Detalhe: como os tupinambás tinham os franceses como seus aliados, permitiam que circulassem livremente por suas aldeias, sem que corressem o risco de virar petisco em algum festim antropofágico. Foi em virtude dessa convivência pacífica que Léry, um jovem artesão quando chegou ao Brasil, pode aprender alguma coisa do vocabulário dos indígenas, de suas cantigas (que teve o cuidado de registrar) e dos hábitos que pautavam sua vida diária. 
Lembram-se os leitores do que aconteceu aos primeiros indígenas que foram à embarcação que trouxe Cabral ao Brasil? Sim, falo do episódio relatado por Pero Vaz de Caminha, de acordo com o qual os jovens índios ficaram apavorados quando viram uma galinha... É que essas aves eram ainda desconhecidas na América, mas não para sempre. Segundo Léry, os tupinambás que viviam nas redondezas da França Antártica, tendo obtido dos europeus algumas galinhas brancas, passaram a criá-las, não pela carne (que detestavam), e nem pelos ovos (achavam que eram venenosos), e sim pelas penas. Tingidas de vermelho com a tinta extraída do pau-brasil, as penas eram usadas não somente para enfeitar tacapes, arcos e flechas, mas também para adornar o corpo dos nativos. Léry assegurou ter visto um tupinambá, no maior garbo, completamente coberto por penas vermelhas. 
Que dizer? Tanto melhor para as araras-vermelhas que voejavam na Mata Atlântica!
A permanência de Léry no Brasil não chegou a durar um ano. Como se sabe, Villegagnon, o francês que comandava a França Antártica, decidiu "mudar de lado" quanto à religião, e a ideia de uma colônia calvinista de povoamento foi por água abaixo. Algum tempo depois, os franceses seriam expulsos pelos portugueses, que passaram a ver o Rio de Janeiro com outros olhos: não apenas um belo lugar, mas também um porto muito conveniente, em se tratando de conservar a posse das preciosas terras na América.
Quando isso aconteceu, porém, Jean de Léry já estava longe do Brasil. Depois de uma viagem trabalhosíssima, retornou à França, viveu mais aventuras e, indo a Genebra, onde estudou Teologia, veio a ser um pastor protestante. Morreu em Berna no começo do Século XVII.

Combate entre indígenas, de acordo com a edição de Histoire d'un Voyage Faict
en la Terre du Brésil
publicada em Genebra no ano de 1580


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segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Como morreu o primeiro bispo do Brasil

Intrigas administrativas, antropofagia e escravização de indígenas no palco da colonização no Século XVI


Uma carta escrita pelo jesuíta Manuel da Nóbrega em 1549, cujo destinatário era o padre-mestre Simão Rodrigues, trazia a seguinte observação, com respeito àquele que viesse a ser indicado para o cargo de primeiro bispo do Brasil: "Venha para trabalhar e não para ganhar." (¹) Alguns anos depois, o mesmo Nóbrega, em carta ao cardeal infante Dom Henrique, ainda diria: "Certifico a Vossa Alteza que nesta terra, mais que em nenhuma outra, não poderá um governador e um bispo, e outras pessoas públicas, contentar a Deus Nosso Senhor e aos homens, e o mais certo sinal de não contentar a Nosso Senhor é contentar a todos, por estar o mal mui introduzido na terra por costume." (²)
D. Pedro (ou Pero) Fernandes Sardinha foi o escolhido para primeiro bispo do Brasil. Autores de seu tempo descreveram-no como homem virtuoso e atento às questões pertinentes à Igreja no território colonial, o que não impediu (ou até favoreceu) que entrasse em atrito com o governador-geral Duarte da Costa, cujo filho era tido pelo bispo como um péssimo exemplo para os habitantes da Bahia. O resultado da contenda foi que D. Pedro Fernandes Sardinha deixou a função que ocupava e se preparou para voltar ao Reino, a fim de prestar contas dos entreveros com o governador. O que aconteceu em seguida contribuiu para tornar este bispo tristemente famoso. Gabriel Soares, autor do Século XVI, escreveu:
"Aqui se perdeu o bispo do Brasil Dom Pedro Fernandes Sardinha com sua nau vinda da Bahia para Lisboa, em a qual vinha Antônio Cardoso de Barros, provedor-mor, que fora do Brasil, e dois cônegos e duas mulheres honradas e casadas, muitos homens nobres e outra muita gente, que seriam mais de cem pessoas brancas, afora escravos, a qual escapou toda deste naufrágio, mas não do gentio caeté, que neste tempo senhoreava esta costa da boca deste rio de São Francisco até o da Paraíba. Depois que estes caetés roubaram este bispo e toda esta gente de quanto salvaram, os despiram e amarraram a bom recado, e pouco a pouco os foram matando e comendo, sem escapar mais que dois índios da Bahia com um português que sabia a língua, filho do meirinho da correição." (³)
Mais conciso e mais virulento, o jesuíta Simão de Vasconcelos assim registrou o caso um século mais tarde, em suas Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil:
"Em uma enseada, junto a este rio [São Francisco], alguns anos depois sucedeu o triste desastre do naufrágio do bispo Dom Pedro Fernandes Sardinha, primeiro do Brasil, que dando nela à costa, foi cativo dos índios caetés, cruéis e desumanos, que conforme o rito de sua gentilidade, sacrificaram à gula e fizeram pasto de seus ventres, não somente aquele santo varão, mas também a cento e tantas pessoas, gente de conta, a mais dela nobre, que lhe faziam companhia voltando ao Reino de Portugal." (⁴)
É verdade, leitores. Dom Pedro Fernandes Sardinha e seu ilustre séquito foram vítimas de antropofagia em julho de 1556. É difícil saber o quanto andavam más as relações entre colonizadores e caetés anteriormente ao naufrágio, já que os registros da época, à exceção dos feitos por missionários, tendem a generalizar as características dos povos indígenas, atribuindo a eles toda a responsabilidade quando se declarava uma situação de confronto. Sabemos, porém, que, alguns anos mais tarde, sendo Mem de Sá o governador-geral, determinou-se que todos os "gentios do Caeté" deviam, como castigo, ser escravizados, independente de quem estivesse ou não envolvido na morte do bispo e de seus companheiros de viagem. Uma informação atribuída a José de Anchieta mostra que, afinal, a ordem do governador foi vista como uma licença para matar e escravizar todos os indígenas que fossem encontrados, de tal maneira que um massacre (o de Dom Pedro Fernandes Sardinha) foi seguido de outro ainda maior:
"Neste [...] ano de 1562, estando todos os índios com muita paz e quietação em suas igrejas, e fazendo-se muito fruto nas almas, quis o governador Mem de Sá castigar os índios do Caeté [...], por terem morto o bispo Dom Pedro Fernandes, e outra muita gente que desta Bahia partiu para o Reino em uma nau [...], pronunciou o dito governador sentença contra o dito gentio do Caeté, que fossem escravos onde quer que fossem achados sem fazer exceção nenhuma, nem advertir no mal que podia vir à terra.
[...] Nas igrejas dos padres (⁵) havia muito gentio que procedia daquele, mas criados e nascidos nesta parte da Bahia, que não viram e nem foram em tais mortes, mas como o demônio sabia que era esta a melhor invenção que podia haver para destruir o que estava feito e impedir que não fosse por diante a conversão do gentio, ajudou-se do desejo que os portugueses tinham de haver escravos, tanto que em breves dias se despovoou toda a terra [...]." (⁶)
Abreviando a história: quando os indígenas compreenderam o que estava acontecendo, trataram de fugir com suas famílias para o sertão. Quem esperaria outra coisa?
O governador ainda tentou consertar o erro, mas sem muito resultado: 
"Vendo o governador quão mal isto saíra, e quantos males e pecados daqui resultaram, que pagavam os inocentes pelos culpados, e que a terra se destruíra em tão pouco espaço de tempo, revogou a sentença dos caetés, mas a tempo que já não havia remédio, porque como os homens andavam já tão metidos no saltear dos índios, como ainda agora hoje em dia se vê [...], usavam outra manha não menos perigosa, onde os índios se iam esconder para fugir deles, e faziam com eles que se vendessem uns aos outros, dizendo que eram caetés [...]." (⁷)
Vejam, leitores, que a morte do bispo Dom Pedro Fernandes Sardinha ocorreu em 1556, e foi somente uns seis anos mais tarde que o novo governador-geral resolveu punir os responsáveis. Não se trata, aqui, de defender a antropofagia - isto está fora de questão - mas, como duvidar de que, tanto tempo depois, o suposto castigo aos caetés não passasse de um reles subterfúgio, de uma tentativa de aplicar um verniz de legalidade para o apresamento e escravização de indígenas? 

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 296.
(2) Ibid., p. 313.
(3) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, pp. 37 e 38.
(4) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, pp. 52 e 53.
(5) Referência aos missionários da Companhia de Jesus.
(6) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 355.
(7) Ibid., p. 356.


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sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Como era a vida dentro de uma cidade cercada por inimigos

Cidades antigas tinham muralhas. Quando havia guerra, quem morava em povoações menores ou em áreas agrícolas menos protegidas, buscava refúgio dentro dos muros da fortaleza mais próxima. Os portões - quase sempre enormes e, por isso, muito pesados - eram fechados, de modo que, por um lado, inimigos não conseguiriam entrar facilmente, mas, por outro, quem estava do lado de dentro também não podia sair. 
Começava então o cerco. Fora, o objetivo maior do exército atacante era, se possível, danificar o muro em algum ponto, de modo que soldados pudessem entrar na cidade. Com o tempo, surgiram máquinas de guerra para esse propósito - os aríetes, por exemplo. Ainda que sempre acarretasse um número elevado de baixas, outra prática era a construção de uma rampa que atingisse o alto do muro. Torres rodantes também faziam parte do cardápio. Às vezes, a captura de algum fugitivo podia resultar na revelação de segredos militares da cidade atacada. Não é preciso lembrar que, na intenção de descobrir os pontos fracos de uma localidade, a tortura era uma útil ferramenta para fazer falar quem, de outra maneira, não abriria a boca de jeito nenhum.
Enquanto isso, o exército defensor procurava manter os inimigos à distância. Chuvas de flechas caíam sobre a cabeça dos soldados que vinham lutar junto ao muro e enormes pedras eram roladas, matando vários combatentes de uma só vez. Na Idade Média, tachos de óleo fervente eram entornados do alto das torres. Ninguém, fosse homem ou mulher, jovem ou idoso, ficava isento de alguma responsabilidade na defesa, a menos que estivesse completamente incapacitado.
Uso de torre sobre rodas para ataque a
uma cidade sitiada (³)
Entretanto, a defesa era difícil. Com os alimentos racionados, não tardava a declinar a saúde geral da população. Mais ainda, as condições de higiene, nem sempre boas em uma cidade, ficavam muito piores com a chegada de mais gente. Doenças encontravam assim terreno fértil para propagação (¹), de modo que, não poucas vezes, eram mais os que morriam por causa de uma epidemia do que os que caíam em combate. Todas essas calamidades, atingindo a população civil, faziam também muitas baixas entre os soldados, enquanto os sobreviventes, pela parca alimentação, ficavam cada vez mais fracos para lutar.
Até quando resistir? Houve guerras em que cidades sitiadas resistiram por anos (²). Tudo dependia, basicamente, do estoque de alimentos disponível (⁴) e de um bom suprimento de água. A menos que o inimigo levantasse o cerco, a derrota dos defensores, com seu cortejo de desgraças, era apenas uma questão de tempo (⁵), tanto que, em alguns casos, houve populações inteiras que cometeram suicídio, considerando esta uma solução melhor e mais honrosa que a rendição.
Eventualmente, porém, os invasores também sofriam com epidemias e decidiam ir embora; podia ser que os suprimentos que traziam chegassem ao fim, ou que não achassem água potável; outras vezes, era algum exército estrangeiro que vinha em socorro dos sitiados. Havia, ainda, a possibilidade de discórdia entre comandantes, e mesmo a morte de um monarca, abrindo questões sucessórias, podia significar uma retirada, ao menos temporária. Quando alguma dessas coisas acontecia, não era hora para festas, ainda que celebrações religiosas, em honra dos deuses, pudessem acontecer. Era tempo, sim, para muito trabalho, reparando os muros, reforçando as torres e as portas, protegendo as fontes e poços que estavam dentro e inutilizando os que estivessem do lado de fora da cidade. A experiência ensinava que era grande a possibilidade de que, algum dia, os inimigos voltassem. 

(1) Como aconteceu em Atenas, durante a Guerra do Peloponeso.
(2) Sabe-se que Siracusa, por exemplo, cercada por terra e mar pelas forças romanas durante as Guerras Púnicas, manteve a defesa por aproximadamente de dois anos.
(3) DODGE, Theodore Ayrault. A History of the Art of War Among the Romans. Boston, New York: Houghton, Mifflin & Company, 1900, p. 394.
(4) Heródoto, em Histórias, afirmou que os moradores de Babilônia não tiveram receio dos persas, quando estes cercaram a cidade, porque havia, dentro dela, um estoque considerável de alimentos. Ainda assim, a cidade foi tomada. 
(5) De acordo com Políbio de Megalópolis, os antigos romanos, quando conquistavam uma cidade que resistira a seus ataques, tinham por hábito matar a todos os que encontravam, fossem homens ou animais.


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quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

A atuação dos missionários jesuítas durante uma epidemia de varíola no Século XVI

A varíola foi um dos maiores terrores dos tempos coloniais. Matava, muitas vezes, mas a sobrevivência a ela era igualmente temida - não raro, desfigurava e/ou resultava em cegueira. Sendo desconhecida na América antes da chegada de europeus em fins do Século XV, mostrou-se particularmente letal entre a população indígena, havendo mesmo quem tenha acusado os conquistadores espanhóis de tê-la deliberadamente "apresentado" à população asteca. A vacinação foi introduzida no Brasil em fins do Século XVIII, mas, até lá, muita gente, de todas as idades, perderia a vida por causa da terrível doença. 
Se levarmos em conta o terror que a varíola inspirava, torna-se ainda mais surpreendente o comportamento dos missionários jesuítas quando uma epidemia de varíola irrompeu no Brasil, fazendo mortes numerosas entre indígenas. No primeiro século da colonização, a assistência médica aos colonizadores era praticamente nula - que se poderia supor, então, que ocorresse relativamente à população nativa? Vejamos o que diz um documento atribuído a Anchieta (¹):
"Em tempo das bexigas [varíola] [...], os padres andavam com alguns moços pelas casas dos índios, lavando-os e limpando-os; era tal a doença das bexigas que, curando-os desta maneira, muitas vezes lhes ficava a pele e a carne dos doentes pegada nas mãos, e o cheiro era tal que se não podia sofrer; os padres lhes acudiam com lenha e água, e andavam com os índios sãos buscando e repartindo isto, e em casa dos que tinham mandavam fazer de comer para os mais necessitados, e em alguma parte se fazia de comer cada dia para sessenta a setenta pessoas, e se os padres lhes faltavam com isto, faltava-lhes o remédio." (²)
Por suposto, ao lidar com os enfermos, os missionários tinham em vista a catequese. Prossegue o mesmo documento:
"De noite e de dia andavam os padres ministrando-lhes os sacramentos da confissão e unção sem descansar, nem terem tempo para rezar suas horas, enterrando cada dia dez e doze, ajudando-lhes a fazer as covas e trazê-los à igreja para os encomendar e enterrá-los [...]." (³)
Ao que se supõe, os padres não tinham qualquer ideia quanto ao modo como a doença se propagava, ou, se tinham, parece que enfrentavam corajosamente a possibilidade de contágio. No entanto, devido às condições de higiene em que atuavam, é razoável perguntar se, no empenho por atender às necessidades básicas dos enfermos, não acabavam, eles mesmos, quando iam de casa em casa, contribuindo para que mais gente adoecesse. Vários dentre os jesuítas estiveram doentes, embora não fique claro, pela maneira como se expressa o autor do documento (quem quer que seja ele), se tiveram varíola ou outra moléstia qualquer:
"[...] Dos grandes trabalhos que nestas doenças os padres tiveram com eles, vieram a adoecer, de que estiveram muito mal [...]." (⁴)

(1) Embora haja alguma dúvida quanto ao verdadeiro autor, esse documento é autenticamente do Século XVI. É provável que a epidemia de varíola referida seja a de 1563.
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 380.
(3) Ibid.
(4) Ibid., pp. 380 e 381.


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segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Esmolas para as almas do purgatório

François Biard, pintor francês que esteve no Brasil entre 1858 e 1859, fez registros interessantes que resultaram na publicação de um livro, Dois Anos no Brasil. A obra apresenta, às vezes, um tom sarcástico, mas tem lá sua importância por documentar aspectos do dia a dia da capital do Império e de outras localidades, que, parecendo "comuns" ou "normais" aos habitantes do Brasil, talvez não fossem preservados, a não ser pelo olhar de curiosidade desse visitante estrangeiro. Assim é que encontramos este relato:
"Entre as notas e esboços apanhados nessa época pelas ruas do Rio, encontro um gordo burguês que usa sobre sua impecável roupa preta uma opa de seda verde, e estende numa das mãos aos transeuntes uma bolsa encarnada. Que faria esse homem, assim encostado à esquina da casa que ficava fronteira ao meu hotel? Soube-o de sua própria boca: tirava esmolas e dizia invariavelmente aos que por perto passavam:
"Para as almas do purgatório, por amor de Deus!"" (¹)
No Século XIX havia muita gente que acreditava que, quando alguém morria, não sendo santo o bastante para que sua alma fosse para o céu e nem perverso ao extremo, a ponto de ir diretamente ao inferno, tinha de comparecer ao purgatório, de onde, depois de algum tempo, havendo se purificado de seus pecados, podia ir ao céu. Para quem adotava esse ponto de vista, era importante a celebração de missas por intenção das "almas do purgatório", na convicção de que isso ajudaria a libertá-las de seu inferno temporário. Portanto, as esmolas, que o burguês visto por Biard pedia, eram destinadas a custear a celebração de missas.

Coletores de esmolas para fins religiosos (²)

Se você, leitor, tem curiosidade em saber se muita gente contribuía, considere: quem de fato acreditava na existência do purgatório, tinha boas razões para doar, não fosse o caso de parentes e amigos terem de sofrer por longo tempo em virtude da negligência dos vivos; além disso, a ideia de que, ao morrer, o avarento que não fizera doações em favor dos mortos podia muito bem pagar por isso no purgatório ou até, de uma vez por todas, no inferno, devia funcionar como um estímulo poderoso para induzir à generosidade. Na dúvida, era melhor não arriscar...  

(1) BIARD, Auguste François. Dois Anos no Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 121.
(2) __________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada digitalmente para facilitar a visualização neste blog. 


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sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Sobre a esperteza de homens e animais

Documentários de televisão e revistas de curiosidades abordam, de vez em quando, a questão da inteligência dos animais. Chegam a apresentar listas, algumas mostrando uma hierarquia de inteligência entre as raças de cães, outras com um índice de esperteza entre os primatas, e por aí adiante. Sim, leitor, eu sei que o mais inteligente entre os cães é aquele que você tem em casa (todo mundo acha a mesma coisa de seus animais de estimação), mas não é preciso ser um grande observador para constatar que, na natureza, há mesmo alguma variação quanto à habilidade, astúcia, inteligência, afinal.
E os humanos, onde ficam nessa escala? 
Nada de sorrisos. Políbio de Megalópolis, um grego que viveu entre romanos e foi contemporâneo de parte das Guerras Púnicas, escreveu (e já posso ouvir latidos, miados e outros ruídos em comemoração):
"O homem parece o mais esperto dentre os animais, porém há razão de sobra para crer que é o mais miserável. Todos os outros animais estão submetidos apenas às paixões do corpo, e só por elas é que erram, enquanto o homem, além de servir às paixões do corpo, é também escravo de suas próprias opiniões e, portanto, erra contra a natureza e contra a razão." (*)
É direito seu, leitor, concordar ou não com Políbio. Devo lembrar, no entanto, que, de brigas de torcedores de futebol a guerras e massacres por divergências religiosas, passando por uma quantidade inumerável de outras ausências de bom senso, há provas incontestes de que a escravidão às opiniões, sejam elas próprias ou alheias, não é exatamente um fato que contribua para honrar a espécie humana.

(*) O trecho citado da História de Políbio é tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Colombo não encontrou monstros na América

Ilustração de um exemplar manuscrito (c. 1475 - 1525) de As Viagens de Marco Polo

Em uma carta datada de 18 de fevereiro de 1493, cujo destinatário era Dom Gabriel Sanchez, escrivão dos "Reis Católicos", Fernando de Aragão e Isabel de Castela, Cristóvão Colombo, que há pouco havia chegado à América Central Insular com sua pequenina frota, composta por apenas três embarcações, fez a seguinte observação:"Ao contrário do que se imaginava, não encontrei aqui monstros, mas homens de grande respeito e bondosos." Mais adiante, na mesma carta, reiterou: "Não vi monstros, nem há quem deles tenha conhecimento [...]."
Parece evidente que, se foi necessário a Colombo dizer duas vezes que não havia monstros nas terras a que acabara de chegar é porque, em seu tempo, muitos criam piamente que, para além das terras já conhecidas dos europeus, quer em seu próprio continente, ou em lugares da Ásia e da África, haveria, sim, criaturas disformes, estranhas, brutalmente agressivas, monstruosas, enfim. Não que haja alguma prova de que Colombo, homem de certa instrução que era, fosse um adepto dessas tolices, mas seu relato trabalhava com a expectativa dos europeus de seu tempo. Além disso, mesmo autores eruditos do século seguinte ao da chegada de europeus à América costumavam incluir em suas obras alguma menção a seres mitológicos como se, de fato, existissem, talvez porque dessem sua existência como certa, ou, ainda, para não decepcionar os leitores.
É fato que Colombo, a essa altura dos acontecimentos, ainda pensava que havia circunavegado o globo terrestre e chegado às "Índias", Catai e Cipango (os dois últimos, China e Japão, respectivamente), terras orientais referidas por Marco Polo e que ele, Colombo, supunha ser possível alcançar e agregar às possessões da Espanha, navegando para o Ocidente. Portanto, devia esperar que, a qualquer momento, pudesse avistar as maravilhas de que falara o mercador veneziano mais de dois séculos antes. Nesse sentido, a espetacular viagem de Colombo seria uma enorme frustração. É que no caminho para Cipango e Catai havia todo um continente - a América - mas ele ainda não sabia disso. 


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segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Capitanias hereditárias

Capitanias hereditárias foram chamadas as (enormes) faixas de terra que a Coroa portuguesa doou a leais vassalos de el-Rei, suposta a obrigação que teriam de colonizá-las com seus próprios recursos, além de colocá-las a salvo de invasores de várias nacionalidades que olhavam cobiçosamente para o belo litoral brasileiro e tudo o mais que poderia haver interior adentro. Teoricamente, o território de cada capitania era limitado, a leste, pelo Oceano Atlântico, e, a oeste, pela linha do Tratado de Tordesilhas. Ora, como ninguém sabia exatamente onde ficava a dita linha, a colonização avançou, salvo um ou outro protesto da Coroa de Espanha, até onde o apetite descobridor dos colonizadores conseguiu ir.
Ao donatário de uma capitania correspondiam direitos nada desprezíveis, dentre os quais o de deixar as terras como herança ao filho mais velho, fazer aplicar a justiça (ainda que com certos limites), fundar novas povoações, cobrar alguns impostos, doar sesmarias e requerer, dos moradores, serviço militar quando a capitania ou outras áreas coloniais estivessem sob ameaça. Diante de tanto poder, não chega a ser surpresa que alguns autores tenham entendido os donatários como uns verdadeiros senhores feudais. 
Curiosamente, a ideia de que as capitanias eram uma espécie de feudos, semelhantes aos existentes na Europa Medieval, não nasceu na cabeça de nenhum fervoroso marxista que tentasse, à unha, encaixá-las em uma lógica de modos de produção que pudessem justificar, no plano teórico, a luta por uma revolução socialista no Brasil. Longe disso! Dentre outros autores, Varnhagen (¹), Capistrano de Abreu (²) e Euclides da Cunha (³) referiram-se às capitanias com linguagem emprestada das tradições feudais. No entanto, Frei Gaspar da Madre de Deus, autor setecentista, ao tratar da questão das capitanias hereditárias, cuidou em explicar que eram "grandes províncias em que el-Rei d. João III dividiu a Nova Lusitânia [...]." (⁴) Não deixa de ser interessante que, vivendo quando algumas capitanias ainda existiam, não ocorresse ao religioso beneditino, natural de São Vicente, a ideia de que elas eram de algum modo comparáveis aos feudos medievais. Só mais tarde apareceriam tentativas nesse sentido.
É verdade que as capitanias tinham algumas características que podiam recordar a autonomia dos feudos, mas, em última análise, os donatários e os administradores por eles indicados estavam submetidos a uma autoridade inconteste, a do rei de Portugal. Jamais seria formada, no Brasil, uma autêntica teia de relações de suserania e vassalagem, marca típica do feudalismo no medievo. Colonos nunca foram servos da gleba, e, quanto à escravidão de indígenas e de africanos, nem vale a pena comentar, tamanha a distância entre um fenômeno e outro. Sim, havia a hereditariedade na sucessão, certa mania de grandeza heráldica entre as famílias de donatários, mas não ia muito além. Prova disso é que, ao instituir no Brasil o Governo-Geral, a Coroa reduziu sensivelmente a esfera de poder dos donatários, que até estrebucharam contra as novidades, porém inutilmente. Era também a Coroa que arbitrava questões sucessórias, que comprava capitanias de seus herdeiros sempre que isso lhe parecia bom negócio e que também, quando lhe deu na telha, acabou com o sistema, que, de resto, se não foi um fracasso absoluto, sempre andou bem longe de ser classificado como um êxito retumbante.

(1) "Pouco antes, o governo português [...] viu-se obrigado a adotar o plano de colonizar pelo simples meio de ceder essas terras a uma espécie de novos senhores feudais, que, por seus próprios esforços, as guardassem e cultivassem, povoando-as de colonos europeus, com a condição de prestarem preito e homenagem à Coroa."
VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 1, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 130.
(2) "Em suma, convicto da necessidade desta organização feudal, D. João III tratou menos de acautelar sua própria autoridade que de armar os donatários com poderes bastantes para arrostarem usurpações possíveis dos solarengos vindouros, análogas às ocorridas na história portuguesa da média idade."
ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de História Colonial: 1500 - 1800. Brasília, Ed. Senado Federal, 1998, p. 49.
(3) "Enfeudado o território, dividido pelos donatários felizes, e iniciando-se o povoamento do país com idênticos elementos, sob a mesma indiferença da metrópole, voltada ainda para as últimas miragens da "Índia portentosa", abriu-se separação radical entre o Sul e o Norte."
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 
(4) MADRE DE DEUS, Frei Gaspar da. Memórias para a História da Capitania de São Vicente, Hoje Chamada de São Paulo, do Estado do Brasil. Lisboa: Typografia da Academia, 1797, p. 1.


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sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Férias escolares no Século XVI

Nos próximos dias, quase todos os estudantes brasileiros estarão deixando os estabelecimentos de ensino para as férias de verão. Dificilmente haverá tempo mais aguardado no ano, é não é de hoje que é assim. Em um documento datado de 31 de dezembro de 1585 e que é atribuído ao padre José de Anchieta, ficamos sabendo que nos colégios que os jesuítas tinham no Brasil, as férias escolares aconteciam nos meses de dezembro e janeiro:
"Das férias gozam os estudantes em dezembro e janeiro. Os estudos começam em 4 de fevereiro." (¹)
Entre as razões para as férias nessa época estavam os festejos associados ao Natal e ao Ano-Novo e as altas temperaturas de dezembro e janeiro, consideradas desfavoráveis aos estudos (²).
Há mais de quatrocentos anos, portanto, as férias escolares acontecem na mesma época, e é pouco provável que alguém esteja seriamente interessado em introduzir alguma mudança. Quem foi que disse que coisas antigas sempre devem dar lugar a inovações? 

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 425.
(2) Alguém discorda?


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